Homilia do Cardeal-Patriarca no Dia da Igreja Diocesana
1. Mais uma vez, desde há 25 anos, no dia da Solenidade da Santíssima Trindade, a Igreja diocesana de Lisboa reúne-se, para celebrar o mistério de que é sinal e sacramento: uma comunhão de irmãos, reunidos no amor que recebem de Deus, Trindade Santíssima. Como ensinou o Concílio Vaticano II, a Igreja é um Povo reunido na unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo (cf. L.G. n. 4).
Reunimo-nos, hoje, celebrando a memória de vários acontecimentos da Igreja diocesana: o vigésimo quinto aniversário da celebração do Dia da Igreja Diocesana; o quinquagésimo aniversário da publicação da Revista “Voz da Catequese”, o que nos sugeriu a convocação especial, para esta celebração, dos nossos catequistas. Um relevo especial é hoje dado às famílias cristãs, primeira célula da comunhão eclesial e comunidade natural para a comunicação da fé. No contexto do Congresso Internacional da Nova Evangelização, tudo isto me sugere que aprofunde convosco este mistério de uma Igreja concreta, que somos nós, que brota deste amor de Deus, no qual participa por Jesus Cristo, com a força criadora do Espírito, que está consciente de que toda a catequese deve ser iniciação a esta vida divina e de que a família, Igreja doméstica, é o modelo de comunidade de vida e de amor, que inicia à vida e ao amor.
2. Está claro na Sagrada Escritura que o desejo de Deus, a que chamamos o Seu desígnio de salvação, foi o de revelar aos homens o Seu amor e fazê-los participar na plenitude da vida e da alegria, introduzindo-os na Sua comunhão de amor. Para isso escolheu um Povo, com quem celebrou uma aliança de amor que os Profetas compararam ao amor nupcial. Essa consciência de um chamamento à intimidade com Deus, ressalta na oração de Moisés, no texto do Êxodo que hoje lemos: “Se encontrei, Senhor, aceitação a vossos olhos, digne-se o Senhor caminhar no meio de nós. É certo que se trata de um povo de dura cerviz, mas Vós perdoareis os nossos pecados e iniquidades e fareis de nós a Vossa herança” (Ex. 34,8-9).
Essa “dura cerviz” significa toda a resistência ao amor de Deus, que tem a sua origem no pecado, que provocou aquilo a que os Profetas e o próprio Jesus chamaram a “dureza do coração humano”. Essa “dureza do coração” não anulou, no homem, o seu instinto e desejo de amor, mas fê-lo perder a notícia de que só em Deus se encontra o verdadeiro amor e que nenhuma expressão do amor humano é caminho para a plenitude da vida e da alegria, se o homem não aprender a amar, acolhendo o amor de Deus. Esta vitória sobre a “dura cerviz”, este desfazer a “dureza do coração”, só pode ser obra criadora de Deus, em Jesus Cristo. Toda a formação cristã é iniciação a esta experiência do amor divino e tem como ponto de partida a transformação do nosso coração, participando no mistério pascal de Jesus Cristo, pelo baptismo, e só pode ser feita participando numa comunidade eclesial, reunida no amor de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo.
A “dureza do coração” levou os homens a perderem a notícia de que Deus os ama e quer reuni-los no amor. Para vencer essa “dura cerviz”, Deus, no Seu misterioso desígnio, exprime o Seu amor pelos homens de forma radical, enviando-lhes o Seu próprio Filho. Ouvimo-lo, agora, no Evangelho de São João: “Deus amou tanto o mundo que entregou o Seu Filho Unigénito, para que todo o homem que acredita n’Ele não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo. 3,16-17). Toda a catequese tem de ser iniciação à relação de fé com Jesus Cristo, fonte da Vida Divina, identificando n’Ele a máxima expressão do amor de Deus por nós.
3. É missão de Jesus Cristo, vivo na Sua Igreja, celebrando continuamente, com ela, a Sua Páscoa, desfazer a dureza do nosso coração, tornando-nos sensíveis ao amor, capazes de o desejar e de nos sentirmos amados por Deus. E o Senhor fá-lo connosco, como nosso Bom Pastor, preparando-nos para a festa das núpcias. A simbologia nupcial desta pedagogia do amor está bem presente no Novo Testamento. Ao formar para Si um Povo novo, a Igreja, que Ele purifica com o banho baptismal Ele prepara para Si a esposa que Ele quer amar com amor de esposo (cf. Ef. 5,25 e ss).
A pedagogia de Jesus, vivo na Sua Igreja, continua a ser a mesma que seguiu com os Seus discípulos: atraí-los. “Ninguém vem a Mim, se o Pai não o atrair” (Jo. 6,44). Provocá-los para a decisão de O seguirem. Mostrar-lhes, na Sua Páscoa, que o amor a que os chama, inclui todo o ser, o espírito e o corpo, entregando-lhes o Seu próprio corpo, como dom de amor. “Este é o Meu corpo que é para vós”, dizendo-lhes, ao mesmo tempo, que o nosso corpo precisa de uma purificação radical, participando da Sua Páscoa, para ser capaz de exprimir o amor a que Deus nos chama. Só depois dessa purificação pascal o Espírito é derramado nos nossos corações, verdadeira plenitude do amor.
Na sua pedagogia catequética a Igreja, conduzida pelo Espírito, percorre com os cristãos o itinerário sugerido nesta pedagogia de Jesus: atrair, mostrando que Cristo continua hoje a atrair; provocar a decisão de O seguir, com confiança e sem reservas, momento em que pode ganhar forma uma vocação ou chamamento pessoal; aceitar a exigência da purificação pascal de todo o nosso ser, mesmo do nosso corpo, para o tornar capaz do amor. E este itinerário é uma caminhada em grupo, comunidade de vida, onde os que o dirigem têm de dar testemunho desta vitória sobre a “dureza do coração”, cativados por Jesus Cristo, sentindo-se, n’Ele, amados por Deus, dispostos a mergulhar continuamente na exigência purificadora do sacramento pascal, todo o seu ser, todas as manifestações da “dureza do coração”. Não há iniciação cristã sem conversão contínua. Num grupo de iniciação à vida, o catequista tem uma missão pastoral, participando do “múnus” pastoral da Igreja. Isto exige que a catequese não se refugie no “modelo escolar” de lugar de comunicação de conhecimentos, mas se abra ao modelo de “comunidade de vida” que ao ritmo da descoberta da vida, aprofunda a sua compreensão. A própria formação dos catequistas deveria revestir-se deste carácter de comunidade de vida, que aprofunda, em conjunto, o mistério da vida, em Jesus Cristo.
4. A família cristã, com consciência de Igreja doméstica é o grupo de vida que, espontaneamente, enquadra a iniciação cristã dos seus filhos. De qualquer modo, no caso das crianças e dos adolescentes, a família tem de ser envolvida no processo da iniciação cristã dos seus filhos. Os modos deste envolvimento podem ser tantos quantas as circunstâncias o sugerirem, mas a paróquia não pode ser uma espécie de escola a que os pais entregam a educação cristã dos seus filhos. A paróquia é, tão só, o rosto visível da Igreja, essa outra família dos filhos de Deus, que integra todos numa caminhada de vida, no realismo da situação de cada um.
Não são hoje muitas, é certo, as famílias cristãs que vivem a sua vida familiar também como uma comunidade de fé e de aprendizagem da vida divina. Mas identifiquemos e valorizemos as que se deixam dinamizar por este ideal. A todas as outras procuremos cativá-las, suscitando nelas aquele sentimento de atracção por Jesus Cristo, que as há-de predispor para encetar uma caminhada de descoberta da vida e do amor.
5. Um dos frutos que esperamos do Congresso que se aproxima é que ele leve a Igreja de Lisboa a conceber a evangelização como esse testemunho atraente de Jesus Cristo Vivo, e da vida em que Ele nos introduz, levando outros, sobretudo os jovens, a sentirem-se atraídos por Ele. A todos Ele continua a dizer: “Vinde a Mim vós todos que andais sobrecarregados e Eu vos aliviarei” (Mt. 11,28). Só Ele nos pode conduzir, vencendo a dureza do nosso coração, à epifania do amor, que experimentamos, mergulhando no amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Seminário dos Olivais, 22 de Maio de 2005
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca