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A cidadania Europeia e as Igrejas

D. Teodoro de Faria
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Bispo do Funchal contra a onda de fundamentalismo laicista

A cidadania europeia repousa sobre o direito de livre circulação dos trabalhadores, direito de votar e ser candidato às eleições municipais europeias no Estado de residência, os tratados de Amsterdão (1997) e Nice (2001) continuaram este processo no direito à educação, greve, disposições anti-discriminatórias, etc. A Comissão dos Episcopados da Comunidade Europeia (COMECE) teve a sua reunião habitual de Outono em Bruxelas, no mês de Novembro. Uma das notas positivas e actuais dessa reunião foi a participação dos bispos representantes dos nove países, com ausência de Chipre. Quase todos os bispos delegados das suas Conferências Episcopais vinham de Leste, de países que estiveram sob a esfera comunista, da Cortina de Ferro, traumatizados pelo totalitarismo. Notava-se neles uma alegria pela entrada na Comunidade Europeia, mas ao mesmo tempo uma preocupação. Havia muitas incertezas, interrogações, temores. Todos queriam trabalhar e unir-se à construção deste grande projecto para a Europa, tanto mais que os cristãos têm uma função vital para enriquecer este conceito de cidadania europeia, sobre o qual só uma minoria de europeus está bem informada sobre o seu real significado. A Carta dos Direitos Fundamentais, incorporada na Constituição, é uma afirmação clara dos objectivos da União e das disposições previstas para uma democracia participativa onde se apresentam claramente os direitos, e a natureza do projecto europeu e a possibilidade de nele participar. A cidadania europeia repousa sobre o direito de livre circulação dos trabalhadores, direito de votar e ser candidato às eleições municipais europeias no Estado de residência, os tratados de Amsterdam (1997) e Nice (2001) continuaram este processo no direito à educação, greve, disposições anti-discriminatórias etc. Apesar do conhecimento deste projecto, e do apelo do Papa na Exortação Apostólica a «Igreja na Europa» a pedir para cada cidadão assumir as suas responsabilidades no futuro da Europa, as Igrejas de leste conhecem um sistema de separação hostil entre Igreja e Estado, apesar das consideráveis transformações jurídicas dos últimos anos. Nalguns desses países estabeleceram acordos com a Santa Sé, mas a separação ainda continua, apesar da cooperação já conseguida no direito matrimonial e liberdade na nomeação dos bispos. O direito fundamental sobre a liberdade religiosa, de consciência e crença é, finalmente, protegido por todas as constituições. Função pública das religiões 2 - O tema da função pública das religiões na Europa é, particularmente, importante, para estabelecer a coesão e identidade na União Europeia. Nos últimos séculos as sociedades democráticas na Europa tentaram remover a religião da esfera política considerando que ela dividia mais do que unia os europeus. Na realidade, para além de factos reais neste campo, as religiões têm um potencial muito grande para colocar os povos da Europa em conjunto, tiveram uma componente muito forte nas várias culturas da Europa e um real efeito na sociedade e nos indivíduos. Apesar da modernização e secularização atingirem fortemente a sociedade europeia, é inconcebível a vida pública na Europa sem a religião. Muitos conflitos, aparentemente religiosos, têm causas políticas e sociais. Alguns episcopados de leste, que durante tantos anos foram subjugados pelos regimes comunistas, sentiram-se desiludidos ao entrarem na União Europeia, ao considerarem a oposição sistemática à referência das «raízes cristãs» no Preâmbulo da Constituição. Esta preocupação aumentou com a «reacção histérica dos membros socialistas ao Parlamento europeu» às declarações de Rocco Buthiglioni, que não induzem a concluir que o filósofo seja um fundamentalista cristão ou inapto para o cargo que devia assumir. A comprovar este extremismo secular dos seus acusadores, o Comissário da Hungria, velho comunista, e com responsabilidades na morte de muitas pessoas, não foi vetado o seu ingresso no Parlamento, como também não houve reacção a uma Comissária que se assume como lésbica. O preconceito anticristão é fruto da vasta secularização operada na Europa, onde os cristãos parecem ser tolerados só se «acomodarem» às ideologias dominantes. Estes bispos de leste conheciam as reacções opostas de vários pensadores europeus, entre eles o Cardeal Pompedda que, a respeito de Buttiglione, disse tratar-se de «um acto discriminatório contra um verdadeiro católico», e do Cardeal Martino que, acerca dos direitos humanos afirmou «que as vozes do Papa e da Igreja Católica são pouco ouvidas... e deliberadamente feitas desaparecer no barulho e na confusão orquestrados por poderosos lobbies culturais, económicos e políticos movidos, prevalentemente, pelo preconceito contra tudo o que é cristão». Tratado Constitucional 3 – Perante a onda de fundamentalismo laicista, mas considerando o bem comum de toda a Europa, que acontecerá naqueles países cujos governantes decidiram pedir às suas populações para através do Referendo adoptarem o tratado constitucional aprovado em Roma a 29 de Outubro? Oito países, entre os quais Portugal, já se decidiram pelo Referendo, dez ignoram ainda se o farão, sete excluíram esta eventualidade. Só após a ratificação do texto é que o tratado constitucional entrará em vigor. Se a versão definitiva do Preâmbulo não contém uma referência explícita do cristianismo, o que foi lamentado até pelo Papa, ele contém ao menos uma referência de ordem geral à religião. O artigo 52 da Constituição, retirado do tratado de Amsterdão, evoca expressamente um diálogo aberto, estruturado e regular com a sociedade civil, refere-se à protecção do estatuto das Igrejas ao diálogo entre a União e as Igrejas, e dá amplas garantias na questão da liberdade de culto. Apesar dos limites que se possam apontar ao Tratado Constitucional, ele não deve ser rejeitado. Mas antes disso, os cidadãos devem ser honestamente informados quanto aos objectivos, porque eles foram cruelmente descurados pelos seus líderes e a confiança dos cidadãos nos seus dirigentes criou um fosso entre eles e a Europa. O Tratado Constitucional não tem nada de revolucionário porque deriva directamente de tratados já aprovados anteriormente. Mas tem defeitos que não se podem dissimular e merecem ser debatidos. Os europeus devem ter consciência de que o texto não é um dogma que não se possa modificar. Esta é uma tarefa árdua que nalguns países, como a França, provocou discussões tão vivas e acesas que não preanunciam uma aprovação pacífica. A Europa e o seu projecto de integração são muito importantes para serem deixados só nas mãos dos políticos. Para os países que tiveram a experiência negativa da repressão das religiões sob o desumano regime comunista, pensamos que a Constituição será aprovada, se não com entusiasmo ao menos por conveniência, após um longo período de espera para fazer parte na nova Europa. O que eles pedem é que a integração não deve nem pode equivaler ao abandono da sua identidade e da sua cultura. † Teodoro de Faria, Bispo do Funchal


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