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A Cruz como aurora de esperança

D. Jorge Ortiga
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D. Jorge Ortiga, na celebração de Adoração da Cruz

A cruz como aurora de esperança - Sexta-Feira Santa - “Hão-de olhar para Aquele que trespassaram”. Acabamos de ouvir a síntese-conclusão da Paixão de Cristo e recordamos que o Santo Padre nos sugeriu esta atitude como programática para a Quaresma que chega ao fim. “Olhar” para acontecer por curiosidade mórbida, por desinteresse de quem vai ignorar ou esquecer ou como pretexto para contemplar uma realidade repleta de conteúdos e desafios. É esta meditação interpelativa que nos interessa. Reassumir os propósitos que talvez tenhamos delineado no início da Quaresma ou acordar para a mensagem, silenciosa mas eloquente, dum coração entregue em amor oblativo pela humanidade, conciliando o gratuito com a correspondência, ou seja, deixar-se “tocar” pelo amor patenteado e tornar esse “amor” não experiência única e irrepetível mas permanente programa para o discípulo e para a comunidade daqueles e daquelas que querem ser fieis. “Olhar” é, deste modo, reconhecer a Igreja como comunidade de salvados e sacramento de salvação, ou seja, um sinal e um instrumento mergulhado na problemática do mundo hodierno. Do coração de Jesus surgiu uma Igreja comprometida com a humanidade e pronta a tudo arriscar para lhe dar sentido e traçar caminhos de verdadeira felicidade. O passado histórico mostrou-nos, muitas vezes, uma Igreja refugiada na sua superioridade teocrática, ditando orientações que o mundo foi rejeitando. Hoje, no espírito do Vaticano II sabemo-nos no mundo e para o mundo sem ser do mundo. Daí que “olhar” para aquele que trespassaram deve significar “olhar” para o nosso mundo apaixonando-nos por ele, ou seja, arriscar passar por uma paixão para o salvar. Diante da Cruz detentora do amor pela humanidade e com o Concílio Vaticano II nas mãos (Gandium et Spes) vejo uma sociedade com sinais de poder e de debilidade; capaz do melhor e testemunho do pior; propagadora da ideia da liberdade mas mergulhada numa escravidão sem precedentes; apologista do progresso em todas as áreas mas testemunha duma regressão em qualidade de vida; aliada ao mundo da fraternidade e igualdade mas campo permanente de violências, ódios, racismos, terrorismos, guerras fraticidas; eloquente nos discursos da transparência mas vencida pela corrupção, clientelismo e arrangismo; capaz duma educação verdadeira e integralmente humana mas servida por interesses e programas redutores de conteúdos; senhora da técnica surpreendente na área da saúde e esmagada pelo drama de coisas que parecem pequenas mas que significam e manifestam a serenidade duma vida feliz. É este olhar que me assegura a verdade das palavras do Concílio “Os desequilíbrios de que sofre o mundo moderno ligam-se a um desequilíbrio mais profundo que se enraíza no coração do homem” (G. S. 9). “Cada dia são mais numerosos aqueles que, em face da actual evolução do mundo, põem a si mesmos ou sentem com maior acuidade as questões fundamentais: Que é o homem? Qual o significado do sofrimento, do mal e da morte, que, apesar de tão grandes progressos, continuam a existir? Para que servem semelhantes vitórias, pagas por tal preço? Que contributo pode o homem dar à sociedade, que pode esperar dela? Que há para além desta vida terrena?” (G. S. 10). A estas e muitas outras perguntas – e conscientes de que o homem moderno parece não querer interrogar-se sobre o sentido da vida – o caminho da Igreja está em redescobrir modos novos de propor, através da Cruz e do abandono de Cristo, que Ele, e só Ele, é “o centro e o fim de toda a história humana” e que no meio das grandes transformações e mutações culturais Ele é o mesmo ontem, hoje e para sempre. O profeta Isaías recordava-nos que Ele seria “desprezado e repelido pelos homens”, “era aquele de quem se desvia o rosto”, “pessoa desprezível e sem valor para nós”, “como ovelha muda ante aqueles que a tosquiam”. Não estará a Igreja a ter medo deste Cristo Salvador e apaixonado pela humanidade? Na meditação da Paixão de Cristo há um pormenor que me chama sempre a atenção. Não estava no programa daqueles que eram condenados à morte. Ele foi coroado de espinhos e manteve-se impávido e sereno. A sociedade moderna manifesta muitos irmãos e irmãs verdadeiramente coroados de espinhos e sem capacidade ou vontade para mostrar a sua situação. Paremos um pouco e vejamos se nos nossos caminhos quotidianos não nos cruzamos com estes homens e mulheres sofredores. Na caminhada para a Páscoa tinha elaborado um itinerário a partir duma opção pela vida. Hoje quero recordar aqueles a quem está faltando amor na sua vida. Podem ser crianças impedidas de nascer ou idosos que ainda não encontraram ternura pois permanecem mergulhados na solidão, podem ser famílias marcadas pela carência de elementos essenciais para o mínimo de dignidade. Se o véu do templo se rasgou e as trevas adeusaram os céus na hora da morte do Senhor, tomemos consciência da “noite” da humanidade e sem pessimismos desmotivadores saibamos ser esperança que reconhece que estamos escravos de muitas realidades e doutrinas quando nascemos para a liberdade de quem entrega a vida por amor. A aurora começará a raiar. Temos um Salvador. A Páscoa do Amor vai acontecer vencendo a morte. Dentro de momentos procederemos à adoração da Cruz. Mais do que um gesto litúrgico deveria ser uma graça. Beijar é contemplar e contemplar conduz-nos à vida, nossa e dos outros. Entre os hinos a cantar poderíamos dizer: “Deus quis vencer o inimigo/ Com as sua próprias armas/ A sabedoria aceitou/ O tremendo desafio/ E onde nascera a morte/ Brotou a fonte da vida”. A Cruz como fonte da vida. Eis o que nos diz o silêncio desta tarde. Ò Senhor de coração trespassado, concedei-nos o dom da sensibilidade às dores do próximo. Conduz-nos ao encontro das “chagas” existentes nas famílias das nossas comunidades e torna-nos, onde quer que vivamos, protagonistas dum amor que sabe que do íntimo de cada um pode surgir uma família nova, uma comunidade mais solidária. Toca-nos Senhor com a Tua solicitude pelo mundo e faz-nos protagonistas duma sociedade mais justa e fraterna. Por Ti não nos contentaremos com a sociedade que os outros querem edificar. No mundo seremos a pequena semente que frutificará no momento justo. Sé Catedral 06/04/2007 + Jorge Ferreira da Costa Ortiga, Arcebispo Primaz


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