Iniciamos hoje a Semana Santa, que a tradição cristã chama Semana Maior, porque nela celebramos os mistérios da Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo.
A Paixão de Cristo, como sofrimento e como amor, é uma revelação ou manifestação eloquente de Deus e do Homem. Como toda a Revelação Divina, as acções e as palavras conjugam-se e mutuamente se harmonizam para nos dar a conhecer quem é Deus para nós e o que somos nós, perante Deus, para com Deus, apesar de Deus. E se a Ressurreição de Cristo vem no termo do processo cuja celebração iniciamos hoje, não será estranho que hoje comecemos por nos debruçar sobre a pessoa humana neste processo, já que nele se revela a pessoa humana na sua natureza, carácter e tendências.
Assim, em primeiro lugar, importa reflectir sobre a amizade, valor humano tão apreciado quanto volúvel e inseguro. O Evangelho diz que “quando chegou a hora, Jesus sentou-Se à mesa com os Apóstolos” (Lc. 22, 14), e logo a seguir preveniu: “Está comigo à mesa a mão daquele que Me vai entregar”( (Lc. 22, 21). E se a amizade é volúvel e perecível, também pode ser fruto de conveniências, de interesses e de consensos reprováveis. Cristo andou empurrado entre Pilatos e Herodes, que eram inimigos e nesse dia ficaram amigos. Pela mesma causa e por igual mentira e desonestidade para Cristo.
A desonestidade é capaz da maior fraqueza e da mais gritante injustiça, e fonte de todas as demagogias. Nem Pilatos nem Herodes encontraram em Jesus qualquer crime. Apesar das acusações. Mas entretanto Pilatos disse: “Vou soltá-lo depois de O mandar castigar” (Lc. 23, 16). E esta demagogia era critério de governo, garantia de segurar o poder. “Decidiu fazer o que eles pediram” (Lc. 23, 24).
Quando Jesus, ainda infante, foi apresentado no Templo para cumprimento da Lei, Simeão profetizou: “Este menino está aqui para queda e ressurgimento de muitos em Israel e para ser sinal de contradição” (Lc. 2, 34). Deste modo introduziu o capítulo das grandes preocupações dos discípulos de Jesus em tempo de Paixão. Melhor, introduziu o tema da Paixão: Primeiro, “qual deles iria fazer semelhante coisa – entregar o Mestre” (Lc. 22, 3). E a seguir: “Qual deles se devia considerar o maior?” (Lc. 22, 24). Perante esta covardia escondida no anonimato, e perante a ambição presunçosa, o Mestre lembrou-lhes os critérios e usos deste mundo quanto ao domínio e a autoridade, para ensinar e avisar: “Vós não deveis proceder desse modo. O maior entre vós seja como o menor e aquele que manda seja como quem serve” (Lc. 22, 26-27).
Estava assim, no contexto do mistério de Cristo e do mistério da Igreja, enunciada, repetida e prevenida, a tensão entre os poderes deste mundo e o Reino de Deus, que não é deste mundo nem se constrói por imitação, nem por favor, nem por facilidades buscadas e conseguidas nos caminhos e por critérios deste mundo.
S. Paulo explica os passos descritivos da Paixão em conceitos categóricos: Cristo é de condição divina, igual a Deus, é Deus. Para levar a efeito a nossa salvação, fez-se semelhante a nós, servo, reduzido ao nada que somos. E foi por isso que Deus O exaltou, pois Ele é o Senhor. Viveu entre nós, morreu e ressuscitou para dizer como disse e continua a dizer “uma palavra de alento aos que andam abatidos” (Is. 50, 4). Os povos andam abatidos e precisam de alento, confiança e esperança. Mas é necessário que “ao nome de Jesus todos se ajoelhem... e toda a língua proclame que Jesus é o Senhor” (Fil. 2, 11). Esta é a nossa mensagem cristã.
Porto, 4 de Abril de 2004
D. Armindo Lopes Coelho, Bispo do Porto