Homilia proferida na Solenidade de São Vicente,
Padroeiro Principal do Patriarcado de Lisboa
Sé Patriarcal, 22 de Janeiro de 2007
1. Celebramos, mais uma vez, a Solenidade de São Vicente, Diácono e Mártir, padroeiro principal do Patriarcado e especial protector da Cidade de Lisboa, que logo a seguir à reconquista cristã, acolheu com devoção as suas relíquias e sempre o honrou com a presença de símbolos vicentinos no escudo da Cidade.
São Vicente diácono: Saúdo, hoje de modo particular, todos os diáconos da nossa Diocese, que encontram em São Vicente o modelo e o protector. Desde a sua instituição, o ministério diaconal é a afirmação de que a caridade é expressão constitutiva da Igreja. Bento XVI escreveu na sua primeira Encíclica: “Para a Igreja, a caridade não é uma espécie de actividade de assistência social que se poderia mesmo deixar a outros, mas pertence à sua natureza, é expressão irrenunciável da sua própria essência” (BENTO XVI, Carta Encíclica “Deus Caritas est”, nº 25).
Isto é assim porque a caridade, nome cristão do amor, tem uma dimensão transcendente. Como dizia Santo Agostinho, “se vês a caridade, vês a Trindade”. Depois da efusão do Espírito Santo, a força que leva o cristão a amar não é, apenas, a capacidade da sua natureza, mas o próprio amor trinitário, que jorra da Igreja e do coração de cada cristão como “rios de água viva”.
O amor marca toda a acção da Igreja enquanto sacramento de salvação. “O Espírito é a força interior que harmoniza os seus corações com o coração de Cristo e os leva a amar os irmãos como Ele os amou, quando Se inclinou para lavar os pés dos discípulos (cf. Jo 13,1-13) e, sobretudo, quando deu a sua vida por todos (cf. Jo 13,1; 15,13).
O Espírito é também força que transforma o coração da comunidade eclesial, para ser, no mundo, testemunha do amor do Pai, que quer fazer da humanidade uma única família, no seu Filho. Toda a actividade da Igreja é manifestação dum amor que procura o bem integral do homem: procura a sua evangelização por meio da Palavra e dos Sacramentos, empreendimento este muitas vezes heróico nas suas realizações históricas; e procura a sua promoção nos vários sectores da vida e da actividade humana. Portanto, é amor o serviço que a Igreja exerce para acorrer constantemente aos sofrimentos e às necessidades, mesmo materiais, dos seres humanos” (nº 19).
A acção da Igreja assenta numa trilogia, composta pelas três grandes expressões da caridade: o anúncio da Palavra, os sacramentos, celebração e anúncio da morte e ressurreição de Cristo, a prática concreta do amor, a que desde o início se chamou “diaconia”. Para lhes garantir a sua fonte divina, o Senhor dotou a Igreja de ministérios baseados numa especial consagração, a que hoje chamamos “ministérios ordenados”: o sacerdócio e o diaconado. Embora aqueles três elementos sejam inseparáveis, porque cada um exige os outros, desde a época apostólica que o ministério sacerdotal está especialmente orientado para o anúncio da Palavra e para a celebração dos sacramentos, e o ministério dos diáconos para a prática da caridade. É esta especificidade dos ministérios que justifica a instituição do ministério diaconal e a escolha dos primeiros sete diáconos (cf. Act. 6,5-6). O Papa Bento XVI refere-se, assim, a esse momento da vida da primeira Igreja: “De facto, na Igreja primitiva tinha-se gerado, na distribuição quotidiana às viúvas, uma disparidade entre a parte de língua hebraica e a de língua grega. Os Apóstolos, a quem estavam confiados antes de mais a «oração» (Eucaristia e Liturgia) e o «serviço da Palavra», sentiram-se excessivamente sobrecarregados pelo «serviço das mesas»; decidiram, por isso, reservar para eles o ministério principal e criar, para a outra missão, também ela necessária na Igreja, um organismo de sete pessoas. Mas este grupo não devia realizar um serviço meramente técnico de distribuição: deviam ser homens «cheios do Espírito Santo e de sabedoria» (cf. Act 6, 1-6). Quer dizer que o serviço social que tinham de cumprir era concreto sem dúvida alguma, mas, ao mesmo tempo, era também um serviço espiritual; tratava-se, na verdade, de um ofício verdadeiramente espiritual, que realizava um dever essencial da Igreja, o do amor bem ordenado ao próximo” (nº 21).
2. Nos primeiros séculos, o rosto visível da Igreja que interpela a sociedade é este serviço da caridade, onde sobressaem grandes figuras de diáconos, como São Lourenço, da Igreja de Roma e São Vicente da Igreja de Saragoça. A propósito do diácono São Lourenço escreve Bento XVI: “Após a prisão dos seus irmãos na fé e do Papa, a ele, como responsável pelo cuidado dos pobres de Roma, fora concedido mais algum tempo de liberdade, para recolher os tesouros da Igreja e entregá-los às autoridades civis. Lourenço distribuiu o dinheiro disponível pelos pobres e, depois, apresentou-os às autoridades como sendo o verdadeiro tesouro da Igreja” (nº 23).
Não foi por acaso que o Concílio Vaticano II, ao pretender revitalizar a Igreja, retomando o vigor dos primeiros séculos, restaurou o diaconado como ministério permanente. Creio que ainda não está conseguido, na sua inserção real na acção da Igreja, esta primazia do serviço da caridade. O ministério da Palavra e a Liturgia não estão excluídos, mas eles são ordenados para o serviço dos irmãos. Que São Vicente nos guie neste caminho a percorrer, pois esta especificidade do ministério deve presidir aos critérios da sua escolha e da sua formação.
3. São Vicente Mártir, é para todos nós testemunho de total entrega, no dom da própria vida aos irmãos, para glória de Deus. No seu martírio ele sentiu a força da consolação de Deus, porque o Senhor não nos abandona, sobretudo nos momentos de tribulação. São, hoje, outras as expressões da radicalidade cristã. Para além daquelas que o imponderável dos acontecimentos acarreta, precisamos da sua intercessão para a radicalidade do dom e do abandono confiante.
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca