Homilia de D. José Policarpo, na Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus
Dia Mundial da Paz
Póvoa de Santa Iria, 1 de Janeiro de 2004
Neste Dia Mundial da Paz, Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, o Santo Padre, no seu esforço incansável de grande lutador pela paz, dirigiu, mais uma vez uma mensagem ao mundo, que sublinha o compromisso, actual e indeclinável, de educar para a paz. Neste dia festivo para toda a Igreja e, de modo particular para esta Comunidade, que consagra a sua nova Igreja dedicada a Nossa Senhora da Paz, quero falar-vos da pedagogia da fé como uma pedagogia para a paz. Esse é, aliás, um elemento central de toda a educação para a paz, individual e colectivamente: a fé cristã é um caminho de paz, toda a verdadeira fé religiosa deve ser um caminho para a paz.
A fé abre-nos para uma colaboração da liberdade do homem, na luta pelos seus ideais, com a força de Deus, que traça o verdadeiro rosto desses ideais e nos fortalece o coração para os prosseguir. Nesta quadra natalícia, a paz é uma mensagem proclamada pelo próprio Cristo, no Seu nascimento. Anunciado pelos profetas como “Príncipe da Paz”, d’Ele dirá São Paulo, na sua plenitude de ressuscitado, que é “a nossa Paz”.
A fé cristã é uma pedagogia para a paz no horizonte alargado da plenitude humana que nos propõe: a paz é a harmonia da felicidade, que podemos construir e experimentar, já neste mundo, mas que terá a sua plenitude na Jerusalém Celeste. Nos textos litúrgicos da Sagração da Igreja e do Altar, a atracção da cidade celeste dá sentido à nossa caminhada presente. A paz não é algo que, cada homem e cada geração, recebam completamente construída. É preciso lutar pela paz. Ela é um caminho a percorrer, possível com a força do Espírito de Jesus, até à sua plenitude que será escatológica. O primeiro pilar de uma pedagogia para a paz, é acreditar que a paz é possível. E como diz o Santo Padre, se é possível, “então é um dever”. Ninguém se empenha, sinceramente, na construção da paz, se as suas proclamações de paz não se tornam num compromisso moral, que nos impele, generosamente, para a acção. A construção da paz é, também, um caminho de santidade.
E a santidade é o objectivo de toda a caminhada da fé, e encontra na construção do amor o seu dinamismo decisivo. E construir o amor é fazer comunhão, com aqueles que estão mais perto, com quem convivemos e partilhamos o mesmo ideal, mas a comunhão de amor é sempre aberta à universalidade, ou seja, quem vive amando, está disponível para amar todos os homens. E a construção da paz é a luta por uma civilização do amor, como diz o Papa. Os ódios, de toda a ordem e em todas as circunstâncias, são o primeiro obstáculo a vencer para a construção da paz. Mas também a indiferença ou a rejeição, todas as formas de auto-afirmação, individual ou colectiva, que levem à exclusão dos outros. O amor é também a alegria de descobrir a beleza da diferença, sentindo que o amor nos aproxima. E lutar por isso é construir a paz.
Um outro elemento sólido que o dinamismo da fé oferece a uma pedagogia da paz, é o amor à verdade. João XXIII, na “Pacem in Terris”, afirmou que a verdade é um dos esteios sobre que se alicerça a paz. Para os cristãos, a verdade é a luz que guia todos os seus passos na construção da vida. E, para eles, a verdade vem-lhes do alto. Jesus Cristo é a verdade, como ouvíamos na confissão de fé de São Pedro e a sua Palavra será sempre a verdade que nos inspira e nos guia. Já no Antigo Testamento assim era: a primeira leitura narra-nos a festa da Palavra redescoberta, a alegria de ter reencontrado a luz que pode guiar o Povo para a vida e para a paz.
Quem não cultiva apaixonadamente a verdade, nunca será construtor da paz. E isso significa a humildade para aceitar que a nossa verdade nunca é completa. Desejar a paz é estar aberto à verdade, que nos vem de Deus. A mentira é a primeira das agressões à harmonia que a paz supõe. Quando se mente nas relações internacionais, no diálogo político, na luta económica, está-se a semear na sociedade focos de violência. Quando se mente nas relações inter-pessoais, na sociedade, na família, na Igreja, está-se a construir em falso um edifício que pode afundar-se na violência destruidora. A verdade é exigente; a fidelidade a ela supõe coragem, humildade, lealdade, honestidade. A verdade é um alicerce da paz, porque é uma expressão de virtude e uma exigência da santidade.
A experiência da fé é uma pedagogia de paz porque é uma caminhada de liberdade. A paz é uma construção de homens livres, que sabem que a generosidade e a responsabilidade são atributos da liberdade. São Paulo, na Carta aos Gálatas, liga o mistério de Cristo a essa passagem maravilhosa da escravidão à liberdade, da situação de escravos à qualidade de filhos. “E a prova de que sois filhos é que Deus enviou aos nossos corações o Espírito do Seu Filho que clama: «Abba, ó Pai». Assim, já não és escravo, mas filho”. A paz supõe a vitória sobre todas as formas de escravatura, de todas as expressões de violência e de desrespeito pela dignidade da pessoa humana, que começa nessa atitude primordial de respeito pela vida, sobretudo pela vida humana em todas as etapas do seu desenvolvimento. Não tenhamos ilusões: toda a violência, mesmo quando alguma das suas expressões são toleradas pela sociedade ou mesmo permitidas pela Lei, é contra a paz. Esta compromete-se antes de eclodirem as guerras e as injustiças são o terreno onde nascem as agressões e os conflitos. A tolerância, o perdão, o respeito pela dignidade e pela diferença, são expressões maiores da liberdade e sementes de paz.
A experiência da fé pode oferecer à paz o seu modelo orgânico: a harmonia da comunidade. Do mesmo modo que é impossível haver experiência de comunhão sem paz, não é possível construir a paz sem experiência de comunidade. Esta promove objectivos colectivos, que se sobrepõem aos interesses individuais, aprofunda a verdadeira dimensão moral da convivência, contrapõe aos direitos a exigência dos deveres. Desenvolvendo o sentido da moralidade, acentua a importância da legalidade, como quadro de normas indispensáveis à construção do bem comum.
Na perspectiva cristã, a Lei é uma pedagogia, um caminho para a liberdade e para o amor, dando densidade e objectivando o horizonte da primeira das leis gravada no íntimo de cada um: a lei da consciência. A Igreja sempre englobou na sua pedagogia da fé o respeito pelas leis justas, pois é um caminho para a construção da harmonia da sociedade e, por conseguinte, da paz. Não haverá construção da paz sem respeito pela justa legalidade. E isto é verdade para os indivíduos, para os grupos, para os Estados. O Santo Padre sublinha, na sua mensagem, a particular importância da legalidade internacional. “Neste dever de educar para a paz, insere-se com particular urgência a necessidade de levar os indivíduos e os povos a respeitarem a ordem internacional e a observarem os compromissos assumidos pelas autoridades, que legitimamente os representam. A paz e o direito internacional estão intimamente ligados entre si: o direito favorece a paz”.
Este aspecto é particularmente importante na harmonia das sociedades contemporâneas. Um dos valores essenciais das democracias é que as leis brotem dos interesses da comunidade, para serem justas e poderem promover o bem comum. Certamente que cada pessoa e cada grupo gostariam de ver contemplados nas leis os seus interesses e os seus pontos de vista. Mas isso não é sempre possível; compete àqueles a quem a sociedade democrática entregou o poder, a responsabilidade de fazerem as melhores leis possíveis, que têm de ser cumpridas, para que haja paz. A ordem internacional vai mais longe nesta exigência de harmonia, pois supõe a conciliação dos interesses dos Estados e das Nações com as exigências do bem-comum de toda a família humana, o primeiro dos quais é a construção da paz. Se as leis só forem cumpridas por aqueles a quem dão jeito, sejam os Estados, os grupos étnicos, políticos e económicos, sejam os cidadãos individualmente considerados, a paz é impossível. Porque não há paz sem justiça, as leis têm de ser continuamente melhoradas; porque não há paz sem ordem, as leis têm de ser respeitadas.
Oxalá a ordem e a harmonia das nossas comunidades cristãs possam ser o fermento da Paz. Nossa Senhora, Rainha da Paz, guiar-nos-á, maternalmente, por esse caminho da generosidade e da fraternidade.
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca