Homilia do Cardeal Patriarca de Lisboa nos 250 anos do terramoto de Lisboa
“A Bem-Aventurança eterna e os sofrimentos do tempo presente”
Homilia na Solenidade de Todos os Santos,
nos 250 anos do Terramoto de Lisboa
1. Esta celebração é uma evocação e uma memória: evocação do sismo que, faz hoje 250 anos, a esta hora, destruiu Lisboa; memória daqueles que nesse dia pereceram, de quantos sofreram o luto e a perturbação da vida sempre inerente às grandes catástrofes. Queremos envolver nesta memória todas as vítimas de catástrofes naturais, e que se contam por centenas de milhares. Fazemo-lo no horizonte largo da esperança, expresso na nossa oração.
Celebramos a mesma solenidade litúrgica de há 250 anos: a Solenidade de Todos os Santos. A essa hora as igrejas de Lisboa estavam repletas de fiéis, quando a terra tremeu e as destruiu, transformando em vítimas aqueles que, até esse momento, eram fiéis crentes, meditando na Palavra de Deus que lhes abria o espírito para os horizontes da eternidade, da “bem-aventurada esperança” da visão de Deus.
Esta Solenidade litúrgica é a celebração por aqueles que, em Cristo, já durante a peregrinação neste mundo, experimentaram a vida nova e a dignidade de filhos de Deus, da esperança da Sua plenitude, na vida definitiva e o fazem em comunhão com os seus irmãos na fé, que tendo sofrido a morte, estão já na plenitude da Vida. Uma relação de continuidade entre a nossa vida neste mundo e a vida definitiva, na eternidade, é a mensagem forte desta relação. E talvez a morte tenha, há 250 anos, surpreendido os nossos irmãos a fazerem essa meditação.
Hoje, como naquele dia, é bom tomarmos consciência de que a vivência do sofrimento e da morte têm um sentido ou outro, segundo esperamos ou não esperamos a vida eterna. É que só esta dá sentido ao sofrimento e resolve o enigma da morte, na qual a vida não acaba, apenas se transforma.
2. Para nós cristãos, esta esperança na vida eterna não é apenas um valor natural de quem admite uma outra vida para além da morte; é uma virtude teologal, é fruto do Espírito de Cristo em nós, que nos uniu a Ele no baptismo e nos deu a intimidade de “filhos de Deus”. O desejo da vida eterna é, no cristão, expressão espontânea da vida em Cristo, experimentada neste mundo. As alegrias da fé, fruto da intimidade com Deus em Cristo, são já as primícias da plenitude futura. A vivência cristã da vida neste mundo é já da ordem do mundo futuro. Porque se trata de “primícias”, ela gera espontaneamente o desejo da plenitude definitiva, o que leva, por vezes, os santos a desejarem a própria morte, apenas porque ela é a porta necessária para entrar na plenitude da vida.
Esta dimensão da vida apenas começada, mas ainda não completamente fruída, diz-nos que a vida cristã está, necessariamente, marcada de sofrimento. Na visão do Apocalipse, os eleitos que entram na plenitude da vida são apresentados como “os que vieram da grande tribulação, os que lavaram as túnicas e as branquearam no sangue do Cordeiro”. Embora pareça uma referência à primeira grande perseguição sofrida pela Igreja, ela é universalmente significativa da vida cristã como seguimento de Cristo na sua paixão. O sofrimento e a dor não contradizem a esperança cristã, antes a integram como participação no mistério pascal de Jesus Cristo. De todos os que, no momento da sua morte, forem chamados a participar na plenitude da vida, se poderá dizer que vêm da “grande tribulação”, que eles assumiram e ofereceram sempre que celebraram a Eucaristia.
3. Destes “sofrimentos da vida presente” fazem, também, parte as “catástrofes naturais”, fruto do facto de o homem, destinado à plenitude espiritual da vida eterna, viver a primeira parte da sua vida numa existência corpórea, inserida no universo cósmico. Entre o homem e a natureza existe uma partilha de forças e de destinos. Tal como das relações dos homens com os outros homens surgem os mais dolorosos sofrimentos, como a guerra e outras formas de violência, a par das mais profundas alegrias, o mesmo se passa nas relações dos homens com o Universo. O homem não domina essas forças gigantescas da natureza o que o faz sentir a sua pequenez desprotegida. O homem, na afirmação da sua superioridade frente ao cosmos, não pode brincar com a natureza. E quantas vezes os desmandos imprudentes da civilização podem estar na origem destes grandes sofrimentos colectivos infligidos pelas forças cósmicas. Conhecer para prevenir, respeitar a sua harmonia têm de ser atitudes permanentes da cultura e da civilização. A recente vaga dramática de incêndios são bem a prova do desrespeito do homem pela natureza, que acaba por se voltar contra o homem, normalmente não contra o “agressor” mas contra vítimas inocentes. Aprender a respeitar a natureza é, no fundo, aprender a viver.
Mas o nosso pensamento e a nossa oração põem-nos, hoje, em comunhão com aqueles que há 250 anos morreram e com todas as vítimas de catástrofes, tão abundantes nos últimos tempos, nos vários continentes. Jesus pensou também neles quando, no Sermão da Montanha, proclamou: “Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados”. Porque o mistério da vida, com Deus, é o mesmo neste mundo e na Sua plenitude eterna, a “comunhão dos santos” concretiza-se, desde já, nos nossos irmãos que choram. E eles serão consolados também pela solicitude da nossa partilha. Cada grande desastre natural é sempre um convite à solidariedade e à fraternidade universal. Que esta memória da “paixão” de Lisboa nos abra à caridade para com os que ainda hoje choram e que a nossa oração e a nossa partilha sejam, para eles, consolação.
Lisboa, Ruínas do Convento do Carmo, 1 de Novembro de 2005
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca