Homilia do Cardeal-Patriarca de Lisboa na Missa de Abertura do Ano Judicial
1. Nesta celebração, promovida por um grupo de cristãos por ocasião da Solene Abertura do Ano Judicial, a que tenho o gosto de presidir, saúdo com respeito todos aqueles e aquelas que, no nosso País, trabalham para a administração e promoção da Justiça. O Senhor Ministro da Justiça; o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, este ano ausente, por motivos de saúde – tê-lo-emos especialmente presente na nossa oração; os Presidentes dos outros Tribunais Supremos; o Senhor Procurador-Geral da República; o Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados, para quem invocaremos luz e força neste início da sua missão; e todos os outros intervenientes na administração da Justiça. Para todos iremos pedir a Deus as luzes do Espírito para o discernimento da Verdade, a dedicação para lutar, sem descanso, por uma sociedade mais justa, a humildade que ajudará a consciencializar os limites de todos os juízos humanos.
Neste ano em que a Cidade de Lisboa acolhe a terceira sessão do Congresso Internacional da Nova Evangelização, em que a Igreja, em diálogo com a sociedade, propõe Jesus Cristo e o Seu Evangelho como referências absolutas para a luz que conduz todo o esforço pela implementação na sociedade, de tudo o que é bom e justo, achei oportuno falar-vos, hoje, das relações entre o Evangelho e a Justiça. Ao fazê-lo, tenho consciência de que uso a palavra Justiça como um valor global basilar para a construção de uma sociedade digna do homem e do seu mistério. A Justiça é, aí, um dinamismo muito próximo da verdade, da generosidade, da harmonia e da paz.
Numa sociedade secularizada, em que está constitucionalmente afirmada a laicidade do Estado que, aliás, a Igreja respeita, desde que o Estado não se confunda com a sociedade, não pode estar nas minhas intenções qualquer tentativa ou sugestão de “sacralizar” a administração da Justiça, tendo, embora, duas convicções complementares: que para quem acolhe o Evangelho e a luz de Cristo, isso não é indiferente na busca da verdade e do bem e a de que todos aqueles que procuram verdadeiramente a Justiça, acabam por convergir com Jesus Cristo e o Seu Evangelho, mesmo sem o saberem. É que todos nós que temos uma missão a cumprir, devemos sempre aliar a competência com a consciência, os dois pilares de um discernimento justo. E se a fé pode, aparentemente, nada acrescentar à competência, ela ilumina a consciência de forma libertadora.
2. A Leitura da Carta do Apóstolo Paulo aos Romanos que foi lida, situa o contexto desta iluminação da consciência na aplicação da Justiça que é apresentada como a busca do bem, o triunfo do bem sobre o mal, o que aproxima a Justiça da verdade, do amor fraterno e, por conseguinte, da busca da harmonia e da paz. Diz o Apóstolo: “Não te deixes vencer pelo mal, vence antes o mal com o bem” (Rom. 12,21), depois de ter afirmado como projecto de vida para a comunidade cristã: “Detestai o mal e aderi ao bem” (Rom. 12,9), o que mostra que a administração da Justiça só encontra o contexto favorável numa sociedade que aprecia e busca a Justiça, o que supõe um quadro de valores e um modelo de sociedade. Só podem administrar bem a Justiça os promotores da Justiça, os que sabem que o mal nas nossas sociedades não se pode vencer com o mal.
O Santo Padre João Paulo II partiu, precisamente, deste texto da Carta aos Romanos, na sua Mensagem para o Dia Mundial da Paz, no primeiro dia do Ano de 2005. No seu discurso a palavra paz engloba, necessariamente a Justiça. Diz ele: “a perspectiva delineada pelo grande Apóstolo põe em evidência uma verdade fundamental: a paz é o resultado de uma longa e árdua batalha, vencida quando o mal é derrotado pelo bem”.
3. É nesta definição do que é mal e do que é bem que Cristo e o Seu Evangelho são luz a orientar as consciências. No contexto das nossas sociedades, o mal e o bem, quer pessoal, quer social, são definidos pela Lei, o que traz uma densidade acrescida à função legislativa. A dignidade de uma sociedade depende, em grande parte, da justeza das suas leis. Mas fica sempre em aberto a interrogação: em que medida a consciência pode influenciar a interpretação e a aplicação da Lei, para nunca nos afastarmos da Justiça e, por conseguinte, do bem. Permiti que vos cite toda uma página da já referida Mensagem do Santo Padre para o Dia Mundial da Paz: “Desde as origens, a humanidade conheceu a trágica experiência do mal e procurou encontrar as suas raízes e explicar-lhe as causas. O mal não é uma força anónima que age no mundo devido a mecanismos deterministas e impessoais. O mal passa através da liberdade humana. No centro do drama do mal e constantemente relacionado com ele está precisamente esta faculdade que distingue o homem dos demais seres vivos sobre a terra. O mal tem sempre um rosto e um nome: o rosto e o nome de homens e mulheres que o escolhem livremente. A Sagrada Escritura ensina que, nos inícios da história, Adão e Eva se revoltaram contra Deus e que Abel foi morto pelo irmão Caim (cf. Gen. 3,4). Foram as primeiras escolha erradas, às quais se seguiram tantas outras ao longo dos séculos. Cada uma delas traz em si uma essencial conotação moral, que implica concretas responsabilidades por parte do sujeito e põe em questão as relações fundamentais da pessoa com Deus, com as outras pessoas e com a criação.
Visto nas suas componentes mais profundas, o mal é, em última análise, um trágico esquivar-se às exigências do amor. O bem moral, pelo contrário, nasce do amor, manifesta-se como amor e é orientado ao amor. Este argumento é particularmente evidente para o cristão, pois sabe que a participação no único Corpo místico de Cristo coloca-o em particular relação não somente com o Senhor, mas também com os irmãos. A lógica do amor cristão, que no Evangelho constitui o coração palpitante do bem moral, conduz, se levada às últimas consequências, até ao amor pelos inimigos: «Se o teu inimigo tem fome, dá-lhe de comer; se tem sede, dá-lhe de beber» (Rom. 12,20)”.
4. Finalmente, na parábola evangélica, a Justiça é relacionada com o amor fraterno, em todas as circunstâncias. E é-nos lançada a pergunta: Quem é o meu próximo? Mas, no contexto da parábola, a pergunta pode ser formulada de outra maneira: quem é que aquele infeliz, atacado pelos salteadores, sentiu como seu próximo?
Não podemos deixar de dar forma actual a esta pergunta de todos os tempos: quem é que as vítimas inocentes do mal dos outros, os que praticaram o mal e merecem ser tratados com Justiça e dignidade, sentem ser o seu próximo? Em todas as circunstâncias é possível estabelecer um diálogo entre pessoas, que faça sobressair a verdade da Justiça e aproxime os homens como irmãos.
Sé Patriarcal, 27 de Janeiro de 2005,
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca