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A Misericórdia: apelo da Doutrina Social da Igreja

D. Jorge Ortiga
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Homilia de D. Jorge Ortiga no Santuário de Fátima

Caros filhos de Deus, Pai rico de misericórdia e de Maria, Mãe de Misericórdia Aqui, neste lugar santificado pelas aparições da Nossa Senhora a três humildes pastorinhos, chegam de toda a terra invocações de misericórdia, clamores de justiça, gritos de auxílio e do Céu desce a palavra da promessa: por fim o meu imaculado coração triunfará. Sim, triunfará o amor mais forte que a morte e o pecado, vencerá a justiça de misericórdia trazida por Aquele que foi gerado nas entranhas da Virgem e amamentado aos seus seios; porque Omnia vincit Amor (O Amor tudo vence). Sim, caros peregrinos, aqui, neste altar do mundo, mergulhamos nos dramas da história quotidiana e subimos quase ao Céu por graça do Filho de Maria, sacramento do encontro do Céu e da terra, da eternidade e do tempo, de Deus e do homem. Vem-me à mente e ao coração as palavras do salmista: Se tiverdes em conta os nossos pecados, ó Senhor, quem poderá salvar-se? Mas em Vós está o perdão para serdes temido com reverência! Paulo que na Carta aos Romanos de que hoje ouvimos uma exortação conclusiva tematiza e elabora com subtileza surpreendente esta equação teológica: Todos pecaram [pecámos] e estão privados da glória de Deus. Sem o merecerem, são justificados pela Sua graça (3, 23-24). E mais: a salvação não depende daquele que quer nem daquele que se esforça por alcançá-la mas de Deus que é misericordioso (9,16). Justiça e misericórdia são atitudes do mesmo Deus, são expressões da sua natureza: Deus é justo mas não justiceiro, Deus é misericórdia mas não impassível ao mal e ao pecado. Aliás, aqui se afirmou que Deus se sente muito ofendido! Ele sofre porque é clemente e compassivo para com o homem que se perde na procura da felicidade. A misericórdia de Deus é a Sua fidelidade, a Sua eterna determinação a conduzir o homem à plenitude da vida que é a Aliança de Amor para a comunhão consigo. Deus é incansável, de infinita paciência, disposto a recomeçar sempre. A I Leitura ilustra-o bem: Moisés demora no monte recebendo o pacto, as Dez palavras que são a ética para guardar a aliança. Na planície o povo logo esquece os benefícios recebidos, sente-se desamparado e fabrica um bezerro de oiro. Quando Moisés volta, indigna-se e despedaça as tábuas da lei escritas pelo próprio Deus. Tudo parece terminar. Mas o Deus fiel reescreve-as na sua clemência e compaixão e deixa-se comover pela prece de intercessão do mediador Moisés: se achei graça a Teus olhos, digna-Te caminhar connosco! Que seria do homem, que fabrica os seus ídolos para não se sentir abandonado nos caminhos da sua história, se não fosse liberto e recebesse a graça da companhia do Deus que caminha com ele? Quantas tragédias em séculos recentes porque o homem se endeusou a si mesmo e, na injustiça, tirania, despotismo, no orgulho de ser um deus, fez milhares de escravos e espalhou cenários de morte em muitos países! Como estão vivos na nossa memória esses momentos obscuros da história! Como é paciente este Deus que toma a iniciativa da aliança e a renova sempre que a infidelidade do homem a viola e transgride, dando, por vezes, a sensação de que só restam cinzas. Mas Ele renova a face da terra! A justiça do Deus de Abraão, de Moisés, dos profetas, de Jesus, de todos os verdadeiros crentes, é justiça que justifica, não é paga do mal pelo mal, antes dom gratuito, bênção em vez de maldição, perdão em vez de vingança. Deus não sabe senão amar, dar, perdoar, renovar, esperar até que o homem reconheça que só vive n’Ele: o justo viverá pela fé! Os seus filhos são bem-aventurados porque têm fome e sede de justiça, não a sede de vingança, não o rigoroso cumprimento da Lei numa lógica meritocrática. Como diz João: a Lei foi dada por Moisés, a graça e a verdade vieram-nos por Jesus Cristo. A lógica da justiça e da misericórdia é esta: recebestes de graça, dai gratuitamente; há mais alegria em dar do que em receber; tal como Deus vos perdoou perdoai vós também; quem pratica a misericórdia, faça-o com alegria… Pode aproximar-se da blasfémia dizer: Deus é misericordioso mas também é justo!... como se a justiça limitasse a misericórdia ou esta tornasse inútil a justiça. N’Ele não há diferença entre as duas, antes são expressão uma da outra. Sim, Deus não é como nós: temo que algumas das nossas domus iustitiae sejam palácios de interesses, de corrupção e de, paradoxalmente, de injustiça! Evoco aqui João Paulo II que tendo proposto a Dives in misericordia (Rico em misericórdia) como a imagem de Deus, cujo Filho é o Redentor do Homem e o Espírito Santo Senhor que dá a vida proclamou com ousadia de profeta a justiça social em vários documentos que ficarão como preciosa herança na Doutrina Social da Igreja, nomeadamente na Sollicitudo Rei Socialis, de que celebramos este ano o 20º aniversário (30.11.1987). E como não recordar João XXIII que na Pacem in terris proclamava a paz é fruto da justiça e Paulo VI que na Populorum Progressio , há 40 anos (26.03.1967), declarava o desenvolvimento é o novo nome da paz? Julgo que estes documentos revelam bem a profunda relação entre a teologia, a confissão e celebração da fé e a problemática social. Numa altura em que assistimos a uma viragem voraz laicista que, duma forma camuflada ou aberta, procura afastar Deus da história e da vida dos homens e do percurso colectivo do nosso país, todos os cristãos devem empenhar-se na afirmação da primazia de Deus e dos valores evangélicos para construir uma sociedade mais justa, com condições de vida mais digna para todos os nossos cidadãos. O estudo da Doutrina Social da Igreja pode, por um lado, contribuir para o crescimento na fé e na caridade dos seus membros e, por outro, para inspirar uma intervenção social à altura dos presentes desafios e das ricas propostas do pensamento da Igreja. Felizes os que escutam a Palavra de Deus e a põem em prática; Felizes nós, caros irmãos, que somos destinatários destas mensagens: do Evangelho desde o êxodo da escravatura até à plena revelação em Cristo Jesus, de Maria aos pastorinhos, da Tradição e do Magistério da Igreja e até dos sinais do nosso tempo, um dom da misericórdia divina. O doutor da lei que perguntou a Jesus qual o maior mandamento e a que Jesus replicou com a parábola do Bom Samaritano ouviu no final esta apelo: Vai e faz o mesmo que o Samaritano fez. Vamos nós também e pratiquemos obras de misericórdia e de justiça tal como Jesus que passou pelo mundo fazendo o bem. E é a Senhora de Fátima que insiste connosco: Fazei tudo o que Ele vos disser. Que os beatos Francisco e Jacinta que ofereceram as suas vidas partilhando com Deus a sua compaixão pelos pobres pecadores intercedam por nós para que sejamos ouvintes e praticantes da Palavra, testemunhando o Amor misericordioso de Deus que é Amor e que quer renovar a face da terra na Paz, na Justiça, na Verdade e na Fraternidade universal. Fátima, 13.07.2007 D. Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz


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