A bênção, a benevolência e a paz, concedidas de modo ritual, eram dons a que aspirava o primeiro povo de Deus. Neste espírito se foi caminhando para a “plenitude dos tempos”, o tempo em que o Filho de Deus, “nascido de uma mulher”, por ela se fez dom à humanidade toda, e a cada um de nós pessoalmente. É desta mulher, Maria, que nos fala o Evangelho quando a apresenta no cenário do presépio de Belém, a ouvir e reflectir nas palavras simples mas eloquentes dos pastores.
Com surpresa inesperada eles ajudaram a encontrar e identificar Aquele que era esperado para ser Salvador e receber, como realização profética, o nome de Jesus.
A Salvação de Deus e a paz entre os homens foram sempre dois aspectos da mesma mensagem natalícia e duas preocupações da mesma aspiração e missão da Igreja. Dois aspectos do mesmo dom, concedidos já na plenitude dos tempos ou tempo da Encarnação do Filho de Deus, mas de algum modo num processo de concretização sujeito à liberdade e às vicissitudes dos homens na própria história colectiva e individual. No ambiente actual de ansiedade provocada pela falta de paz e pelo medo da guerra, a Igreja escolheu estes temas como dos mais graves da civilização.
Na mensagem para este 39º Dia Mundial da Paz o Papa Bento XVI lembra a iniciativa lançada e mantida pelos seus dois predecessores Paulo VI e João Paulo II, “clarividentes obreiros da paz” e “infatigáveis mensageiros do Evangelho” (nº 2), que convidaram sempre o mundo a recomeçar de Deus para se promover e conseguir uma convivência pacífica.
No seu discurso de paz e despedida Cristo disse aos discípulos: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá” (Jo. 14, 27). Quando pela voz dos Romanos Pontífices somos convidados a recomeçar de Deus e quando confrontamos este conselho com as palavras de Cristo aos seus discípulos, podemos concluir que a linguagem e as iniciativas pela paz não estarão sempre fecundadas e orientadas pela paz que Cristo nos dá, pela paz que é uma bênção de Deus. E será também por isso que para este ano o tema da reflexão se enuncia deste modo: “Na verdade, a paz”. É nossa convicção que “sempre que o homem se deixa iluminar pelo esplendor da verdade, empreende quase naturalmente o caminho da paz” (nº 3).
Conhecida e divulgada a Mensagem de Bento XVI, são já inúmeros os comentários a respeito do conteúdo da Mensagem e a propósito de mais este Dia Mundial da Paz, com as respectivas sensibilidades e subjectividades a que não podemos ser alheios.
Vamos entretanto sublinhar alguns dos aspectos mais importantes desta Mensagem, com espírito de fidelidade e esforço de objectividade, na medida do possível e segundo o nosso critério. E também no suposto de que esta Mensagem do Papa se destina particularmente aos que acreditam em Cristo e na paz que Ele nos anunciou, nos deu e personifica (“Ele é a paz” - Mq 5,5), para que estejamos atentos aos sinais de paz ou de guerra e nos tornemos disponíveis como arautos e construtores da paz.
Descrita por Santo Agostinho como “tranquilidade da ordem” (“tranquilitas ordinis” – De. Civ. Dei, XIX, 13), a paz é um dom de Deus, uma graça que consiste em conformar a história humana à ordem divina, ou sujeitar a vontade do homem à Verdade que é Deus.
Constituindo os homens uma única e mesma família, a paz é uma aspiração e um anseio de cada coração, de cada homem, de cada irmão, para conviver, para perdoar, para se reconciliar com o outro, para ser transparente no comportamento e fiel à palavra dada. “A Verdade da paz chama todos a cultivarem relações fecundas e sinceras” (n.º6) e “deve fazer valer o seu resplendor benéfico de luz, mesmo quando nos encontramos na trágica situação duma guerra” (n.º7).
Se a paz assenta na verdade e exige verdade, são obstáculos à paz todas as violações da verdade. A Sagrada Escritura fala da mentira e do pecado. Expressões de mentira e de pecado são os “aberrantes sistemas ideológicos e políticos” do século passado (cf. N.º5), que mistificaram a verdade e provocaram o extermínio impressionante de multidões – o que encheu o mundo de repulsa e de um medo não completamente ultrapassado, porque não desapareceram ainda nem as bases nem a atracção por esses sistemas. E surgiram entretanto outros sistemas que, temido por alguns como mentiras de parceria com o pecado, ameaçam o mundo por serem “verdades” singulares, a medrar perigosamente no caldo de conceitos próprios e também singulares de pecado e de fidelidade ou infidelidade. É a negação ousada e ameaçadora de que a humanidade seja uma única família...
A verdade da paz está comprometida e é negada por culturas e civilizações diferentes, confrontadas entre o terrorismo e a insegurança, alimentadas pelo niilismo que nega a existência de qualquer verdade e pelo fundamentalismo que pretende impor a verdade pela força.
Consciente ou inconscientemente, vivemos numa época de risco, pelo que somos chamados a “intensificar... o anúncio e o testemunho do “Evangelho da paz”, proclamando que o reconhecimento da verdade plena de Deus é condição prévia e indispensável para a consolidação da verdade e da paz” (n.º11).
No actual contexto mundial, há sinais positivos de construção da paz. O papa refere-se à diminuição numérica dos conflitos armados, à consciência assumida pela Comunidade Internacional e aos Órgãos de reconhecida autoridade internacional, mas previne contra o eventual optimismo ingénuo perante conhecidas regiões de alto risco, a tentação das armas nucleares, a recusa do desarmamento, e o investimento em gastos militares, que constituem uma ofensa aos países pobres, os que mais clamam por justiça, solidariedade e paz.
Rezamos hoje pela paz. Tomemos consciência desta necessidade e do empenho de atenção e disponibilidade para rezar e ser permanentemente arautos e construtores de paz, a qualquer nível e em todos os níveis e circunstâncias. E sejamos, como membros da Igreja, um povo de esperança. Na sua Mensagem e acima de qualquer subjectividade ou generalidade, o Papa escreveu palavras que nos servem de aviso pertinente e actual, e de premonição a registar com preocupação e verdade: “Deus é fonte inesgotável da esperança que dá sentido à vida pessoal e colectiva. Deus, e só Ele, torna eficaz qualquer obra de bem e de paz. A história demonstrou amplamente que, fazer guerra a Deus para extirpá-lO do coração dos homens, leva a humanidade, assustada e empobrecida, para decisões que não têm futuro. Isto deve impelir os crentes em Cristo a fazerem-se testemunhas convictas de um Deus que é inseparavelmente verdade e amor, colocando-se ao serviço da paz numa ampla colaboração ecuménica e com as outras religiões e ainda com todos os homens de boa vontade” (n.º11).
Nestas palavras da Mensagem do Papa descobrimos as razões da solicitude manifestada e da missão assumida pela Igreja na causa da paz, e encontramos também o sentido dos caminhos que a Igreja nos indica para sermos, com fundada esperança, anunciadores do evangelho, da paz e da verdade. Que assim seja.
Sé do Porto, 1 de Janeiro de 2006
D. Armindo Lopes Coelho, Bispo do Porto