“Um só gesto de amor é capaz de fazer mais pela paz do que todas as armas do mundo. O amor é sempre a vitória sobre a mentira e o mal!”
1. O Senhor nos conceda a paz
Neste primeiro dia do ano civil de 2006, é belo que a própria liturgia nos formule os votos de paz e felicidade, através dos textos da primeira leitura, do salmo responsorial e da evocação paulina da nossa dignidade: somos filhos de Deus pela graça!
Por isso, no limiar do Ano Novo, ao abraçar cada um e a todos vós aqui reunidos, neste sacrifício eucarístico, em comunhão de fé e amor, invoco com as palavras da liturgia:
“O Senhor nos abençoe e proteja!
O Senhor faça resplandecer a luz do Seu rosto sobre nós
E nos conceda a paz!”
Esta bênção encontrou o seu fruto mais completo e irradiante no nascimento do Filho de Deus, em Belém. Em Jesus, Deus fez resplandecer o seu rosto sobre o mundo inteiro, inclinou-se sobre a humanidade pecadora para lhe trazer a paz. E Maria, Mãe de Jesus está a seu lado como Mãe da nova humanidade em Cristo, mulher humilde de paz e, por isso, Rainha da paz.
2. A paz nasce da verdade
Olhando o actual contexto mundial, o Santo Padre enviou-nos uma mensagem para o dia de hoje, onde nos convida a meditar sobre a paz à luz da verdade e à qual deu o título: “Na verdade, a Paz”. Desta mensagem, desejaria oferecer apenas alguns pontos à vossa meditação.
Falando de paz, no actual contexto da vida social, civil e política entre as nações, tendemos espontaneamente a pôr-nos de fora com um sentimento de impotência e de frustração, dizendo: os que podem trabalhar pela paz no mundo são as grandes potências, os governos, os exércitos, os políticos, as diplomacias. Nós, os pequenos, que mais podemos fazer para além da oração?
Bento XVI, ao contrário, afirma que a paz não se reduz a um mero produto de acordos políticos. Ela nasce e caminha na verdade. Quando cada um de nós respeita a verdade, constrói a paz. E sem tal respeito profundo, não se pode falar de paz.
O discurso sobre a paz mediante a verdade alcança, antes de mais, o íntimo de cada um e, ao mesmo tempo, torna-nos solidariamente responsáveis na construção da paz na sociedade e no mundo. A verdade engrandece o homem e as suas relações; a mentira destrói-o. “A verdade da paz chama todos a cultivar relações fecundas e sinceras, estimula a procurar e a percorrer os caminhos do perdão e da reconciliação, a ser transparentes nas conversações e fiéis à palavra dada”(n. 6).
3. A verdade e a máscara
A perspectiva da verdade que o Papa escolheu para analisar e sustentar um processo de mais justiça, lealdade e paz entre os povos, é de uma actualidade premente na cultura actual.
Uma conhecida fábula conta que a verdade e a mentira foram tomar banho juntas ao mesmo rio. A mentira saiu do rio antes da verdade e, ao ver a roupa limpa e bela desta, vestiu-a. Quando a verdade saiu do rio, não teve outro remédio senão vestir a roupa feia da mentira. E assim a mentira anda mascarada de verdade.
A fábula serve-nos para compreender a chamada “civilização da máscara”, isto é, do engano e da mentira, que está subjacente a muitas situações de crise, de conflito, de violência e de guerra.
Já Santo Agostinho, cujo pensamento é tão inspirador do actual Pontífice, apresentava como causa profunda da crise de decadência do seu tempo a tendência - espalhada desde os vértices do poder até à mentalidade comum do povo – a preferir a vaidade (a máscara) à verdade.
A vaidade é a lógica das aparências, o triunfo da máscara, que oculta interesses egoístas e perspectivas de pouco valor por detrás da proclamação de intenções altissonantes.
A verdade é a lógica que afere as opções por valores éticos permanentes, pela verdade e dignidade da pessoa humana.
A verdade e a mentira não são temas de especulação teórica. Estão profundamente ligadas a acontecimentos da história humana, dos quais depende a paz verdadeira ou o seu falhanço, a felicidade ou infelicidade dos homens e, portanto, o futuro do mundo. A mentira, nas suas várias formas, entra na categoria de pecado de consequências devastadoras na vida dos indivíduos e das nações como provam os acontecimentos mais trágicos do século passado.
Por isso, o grande drama cultural, espiritual e religioso do nosso tempo é o drama do niilismo e do relativismo de quem não tem confiança alguma na força da verdade e dos valores universais e os nega e despreza.
“Não havendo nada de duradoiro, cai por terra o fundamento da vida histórica, isto é, a confiança, em todas as suas formas. E visto que não se tem confiança na verdade, substitui-se com sofismas de propaganda. Faltando a confiança na justiça, declara-se justo o que convém…! Tal é a situação singularíssima do nosso tempo de verdadeira e própria decadência”(Bonhoeffer).
Frente a uma “civilização da máscara”, das aparências e do efémero, é preciso propor uma visão alternativa construída sobra a verdade das coisas, sobre o primado dos valores fundados na dignidade transcendente da pessoa humana, na humanidade comum a todos e, por conseguinte, no bem comum. Esta é a gramática da lei moral universal e do diálogo entre os homens e entre as nações. Sem esta instância moral transcendente serão a mentira e a barbárie a triunfar sobre tudo e sobre todos.
4. Dialogar na verdade para além do relativismo e do fanatismo
A verdade busca-se e cresce no diálogo que hoje é multicultural e inter-religioso. O Papa, na sua mensagem coloca esta questão crucial, à qual a gente nem sempre dá uma resposta justa. Por vezes, fecha-se na intolerância do fanatismo; ou então fica-se na mera indiferença pensando que não há verdade nem falsidade, que cada um pode conceber a verdade a seu modo. Estas atitudes levam a um perigoso desprezo do homem e da sua vida e estão na origem da cultura da violência e do terrorismo.
Mas entre a intolerância e a indiferença está o diálogo na verdade, no respeito, na escuta e na estima recíprocas. A fé cristã é fonte de um universalismo, de um coração universal que leva a ver as diferenças históricas e culturais como uma riqueza em ordem à aproximação das pessoas e dos povos. Daí a necessidade de evitar toda a intolerância, todos os preconceitos, todo o juízo áspero e apressado sobre o outro, a necessidade de uma melhor compreensão entre nós e entre os povos. Será o diálogo inter-cultural e inter-religioso que evitará o “confronto de civilizações” que alguns consideram inevitável.
5. O primado da verdade na política
O tema da “paz na verdade” tem também repercussões no âmbito político.
O elevado nível de conflituosidade a que se assiste é, muitas vezes, fruto de um modo de conceber a governação que separou a autoridade formal da autoridade efectiva dos comportamentos; e a representação democrática da representatividade real das necessidades e dos interesses dos cidadãos.
Onde o político ou o administrador buscam unicamente o seu próprio interesse ou os interesses de alguma parte, apostando na imagem ou na busca do consenso através de favoritismos ou lucros ligados a grupos de poder, aí triunfa a máscara, a mentira. Mas também na política, a mentira, o engano, o equívoco não têm consistência (não duram); antes, são fonte de males sociais.
O primado da verdade exige uma praxis política e administrativa inspirada na busca desinteressada do bem comum, capaz de escutar e envolver solidariamente todos os cidadãos enquanto portadores de necessidades, de direitos e deveres, de propostas e possibilidades reais e realistas.
Dizer a verdade, educar a opinião pública para a verdade é o primeiro dever de um governo que se respeite e queira ser respeitado. As democracias vencem com a verdade e não com a mentira. Não chegou, porventura, para nós portugueses, governantes e governados, a hora de abandonar a máscara e olharmos todos com verdade a situação actual que vivemos?
6. Espiritualidade da paz
Todas estas perspectivas sobre “a paz na verdade” que a mensagem do Papa nos inspirou, não se realizam sem uma espiritualidade que anime a partir de dentro o coração de cada um e que, a meu ver, o Santo Padre sintetiza numa frase: “aprender a fundar a paz sobre a verdade de uma existência quotidiana inspirada no mandamento do amor”. De facto, um só gesto de amor é capaz de fazer mais pela paz do que todas as armas do mundo. O amor é sempre a vitória sobre a mentira e o mal!
Senhor Jesus, por intercessão de Maria, Tua Mãe e Rainha da paz, dá-nos a paz, a tua paz, a paz na verdade! Ámen!
Sé de Viseu, 1 de Janeiro de 2006
+António Marto, Bispo de Viseu