1. A salvação é um acontecimento, para cada um de nós, para a Igreja, para a humanidade. São acontecimentos aqueles factos e dinamismos da história que nos envolvem pessoalmente, pela participação que temos neles e pela importância existencial que têm para nós. Só há acontecimentos para nós quando, no âmago da história, somos protagonistas, aceitando que o sentido da vida e da liberdade se decidam, com maior ou menor grau de intensidade, nesses acontecimentos.
Referindo-se à salvação, Jesus diz aos discípulos: aconteceu nos dias de Noé, há-de acontecer na vinda do Filho do Homem. Jesus sabe e conhece esta densidade existencial e histórica da salvação. Ele próprio protagoniza o acontecimento decisivo da salvação, a Sua morte e ressurreição. Mas a Páscoa de Jesus só é acontecimento de salvação para a humanidade, na medida em que cada homem se deixar envolver por ela, se tornar protagonista no drama da salvação. A morte de Cristo como simples notícia não envolve, necessariamente, aqueles que a recebem, no dinamismo da salvação.
Um novo Ano Litúrgico que começa não pode ser simples repetição. A Igreja e cada um de nós aceitamos viver mais um período de tempo, na densidade surpreendente dos acontecimentos que salvam, procurando no acontecimento da Páscoa a densidade de um drama e o empenho de um combate, que desafia a nossa liberdade. Só tem sentido recomeçar, porque sabemos que a nossa salvação está a acontecer, somos protagonistas dela, guiados pelo Espírito, Ele que torna possível que vivamos a nossa vida nessa unidade dramática do acontecimento da Páscoa de Jesus. Esta certeza de que poderemos viver os acontecimentos da nossa vida, na unidade com os acontecimentos da vida de Jesus Cristo, é a fonte da nossa esperança. É essa esperança que o Apóstolo Paulo anuncia aos Romanos: “Vós sabeis em que tempo estamos”; é o tempo em que podemos viver a nossa vida com Jesus Cristo. E sempre que a Páscoa de Cristo se torna acontecimento na nossa vida, ficamos mais perto da salvação: “A salvação está agora mais perto de nós do que quando abraçamos a fé”. O Ano Litúrgico é este tempo da graça, em que Jesus Cristo, em todos os acontecimentos da Sua vida, se tornou o acontecimento de referência da salvação, afirmado em dois mil anos de acontecimentos de salvação, em toda a caminhada da santidade e afirmação da caridade.
2. Pendente da densidade com que nos envolvermos com Jesus Cristo, a nossa salvação é presente e futura. Definitivamente presente só Jesus Cristo, na Sua plenitude pascal, o é. Só n’Ele está a salvação definitivamente adquirida. Cada um de nós, no tempo da nossa vida em que somos chamados a fazer dela acontecimento de salvação, sente a ameaça da fragilidade, o medo de não ser capaz, a tentação de, por momentos, viver a vida sem a exigência libertadora da Páscoa. Já para Isaías era claro que a salvação definitivamente tornada presente, “acontecerá nos dias que hão-de vir”. A confiança de que, com a força do Espírito, havemos de viver cada acontecimento da nossa vida em união com Jesus Cristo, acontecimento definitivo da salvação, é o horizonte da nossa esperança. Essa esperança encerra um chamamento, que pode sempre ser recusado ou escutado de novo: “Vinde, ó Casa de Jacob, caminhemos à luz do Senhor”.
É por isso que a oração da Igreja, dirigida a Jesus Cristo enquanto acontecimento decisivo da salvação, sempre unificou na mesma prece o desejo da Sua vinda e a certeza da Sua presença: “Vinde Senhor Jesus!” “Fica connosco Senhor”!
“Vinde Senhor”, foi a prece, repassada de esperança, de todos os verdadeiros crentes de Israel, confiantes de que Deus cumpriria a promessa messiânica; é a oração da Igreja, na sua peregrinação no tempo, ansiosa pela salvação definitiva e que espera a derradeira manifestação de Jesus Cristo; é a súplica de todos os cristãos que, na densidade da busca da fidelidade e da santidade, desejam que o Senhor esteja mais presente nas suas vidas. Eles sabem, porque experimentaram, que tudo isso já aconteceu, mas estão conscientes que é preciso que isso volte a acontecer “nos dias que hão-de vir”, até que a plenitude da vida seja, em nós, tão definitivamente presente como o é em Jesus Cristo.
Mas a densidade ansiosa desta prece, completa-se e, de certo modo, exprime-se, numa outra mais carregada da saborosa alegria da comunhão: “Fica connosco Senhor”. É a prece de quem sentiu o calor da presença do Senhor no presente da vida. Fizeram-na Pedro, Tiago e João no Tabor: “é bom estar aqui, façamos três tendas”; fizeram-na os pastores em Belém ao sentirem que naquele Menino Deus os visitava; exprimiram o mesmo desejo os discípulos de Emaús, comovidos pelo mistério d’Aquele viajante misterioso: “fica connosco Senhor”. Essa prece brota espontaneamente do coração de todos aqueles e aquelas que, na intimidade da oração, saborearam a alegria envolvente da presença do Senhor, sentindo-se amados por Ele. Em Maria essa prece transformou-se em hino de louvor e acção de graças. Aquele Menino, no seu seio, é a mais forte e consoladora presença de Deus no meio do Seu Povo; ela sabe que Ele veio para ficar, tornando definitiva a salvação. Também para ela, a Imaculada, aquela presença é definitiva. A partir daquele momento a sua vida será contínua e total comunhão com o Filho de Deus. Também nela a salvação é definitiva e só pode exclamar: “A minha alma louva o Senhor”.
3. “Fica connosco, Senhor”, é a prece de João Paulo II, em nome de toda a Igreja, ao proclamar o “Ano da Eucaristia”. Ela brota da mais consoladora e empenhativa experiência da Igreja, de comunhão de amor, com Cristo e em Cristo. Só quem experimentou a envolvência amorosa da Eucaristia pode exclamar sinceramente “fica connosco Senhor”. É que no mistério da Eucaristia a Igreja toca já no definitivo da salvação; aí experimentamos, verdadeiramente, as “primícias” do Reino dos Céus. A Eucaristia permite-nos sentir que as duas preces da Igreja, “Vinde Senhor Jesus” e “Fica connosco Senhor”, são afinal uma só. Só quando se toca o definitivo de Deus, em Jesus Cristo, mergulhando no mistério de amor que Deus é, ansiamos profundamente pela sua manifestação definitiva. É a experiência presente da salvação que nos faz ansiar pela sua plenitude.
A Eucaristia é o momento em que os cristãos aprendem a fazer a síntese entre o presente e o futuro, entre a realidade e o desejo, entre a verdade humana que conhecemos, e a plenitude humana que ainda se há-de manifestar em nós, porque aconteceu em Jesus Cristo. Na Eucaristia, unidos a Jesus Cristo, percebemos que todos os nossos desejos de plenitude se hão-de realizar, porque estão definitivamente garantidos na Páscoa de Jesus. A Eucaristia é a fonte da nossa esperança. Cada Eucaristia celebrada pode ser, para nós, acontecimento de salvação, comunicando essa densidade a todos os acontecimentos da nossa vida.
Queridos ordinandos, meus irmãos e irmãs. Iniciamos, hoje, um novo Ano Litúrgico, espaço do tempo humano em que somos chamados a viver a nossa vida, deixando-a repassar da graça de Cristo ressuscitado. A plenitude de Jesus Cristo enche todo o tempo litúrgico. Ele será, para nós, tempo de salvação, se dermos aos gestos da nossa vida a qualidade do definitivo de Deus. Quando desejamos e queremos, quando pomos toda a nossa vida na lógica de Jesus Cristo, o Senhor consagra-nos, ungindo-nos com o Seu Espírito. E essa é a garantia sacramental de que toda a nossa vida será vivida na radicalidade pascal.
Maria surge na História da Salvação e, por isso, também na nossa história, como um caso de plenitude, de quem tocou o definitivo de Deus: plenitude de graça, plenitude de humildade e obediência, plenitude de fecundidade virginal, plenitude de louvor. Aprendamos com Ela a desejar, a amar, a acreditar. O seu desejo pode ser o nosso desejo: “fazei tudo o que Ele vos disser”; “Eu sou a serva do Senhor, tudo em mim se faça segundo a Tua Palavra”; “Fica connosco Senhor”; “Vem, Senhor Jesus”.
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca