Na história da Liturgia e na memória das nossas recordações, a Missa Crismal era uma celebração a que presidia o Bispo assistido por alguns membros do Cabido, com a presença do Seminário e presbíteros ordenados no ano anterior. Era uma solenidade restrita e quase reservada. Hoje felizmente participam na Missa Crismal uma parte significativa do presbitério diocesano, e uma representação qualificada do Laicado, que torna exíguo e insuficiente o espaço da Catedral. Esta evolução, tão positiva e animadora, demonstra a consciência clara e esclarecida do que é a Igreja – Povo de Deus Sacerdotal, do que significa a Catedral como igreja-mãe da Diocese, e do que simboliza como unidade a consagração e bênção dos óleos que hão-de servir para administrar os sacramentos em todas as igrejas ou templos da comunidade cristã diocesana.
Ao congratular-me com esta expressão de consciência eclesial dos nossos fiéis cristãos e com a pedagogia convergente do nosso presbitério, cumpre-me referir a intencionalidade e o conteúdo cristológico da Liturgia desta celebração, na palavra proclamada e nos diversos ritos constitutivos.
Nos termos do Apocalipse, é por Jesus Cristo, a Testemunha fiel, que nos vem a graça e a paz de Deus. Porque nos ama, “pelo seu sangue nos libertou do pecado e fez de nós um reino de Sacerdotes para Deus, seu Pai”(Apoc. 1, 5-6). Sendo Deus, Jesus fez-se Homem porque era o Cristo prometido e esperado; e foi pela Sua Humanidade que deu a vida por nós e assim nos libertou do pecado. E pelo seu Sacerdócio fez de nós um reino de sacerdotes, reino efectivo e reino potencial ou virtual, porque “todos os olhos O verão, também aqueles que O trespassaram” (Apoc. 1, 7) e todos aqueles por quem Ele morreu, seja qual for a sua situação, disposição, mentalidade, proximidade, afastamento, neutralidade ou oposição. Ele é, como Deus, “o Alfa e o Ómega, Aquele que é, que era e que há-de vir, o Senhor do Universo” (Ibid.)
Mas é no Sacerdócio , que nos engloba e insere, que Cristo constitui para nós a referência mais visível e sensível.
No início do Seu Ministério, “Jesus foi a Nazaré, onde se tinha criado” (Lc. 4, 16), e, como era seu hábito de inserção e presença, no Sábado foi à sinagoga onde na sua vez se prontificou a fazer a leitura, que foi a do Profeta Isaías: “O espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres. Ele me enviou a proclamar a redenção aos cativos e a vista aos cegos, a restituir a liberdade aos oprimidos, a proclamar o ano da graça do Senhor”(cf. Is. 61, 1 ss.; Lc. 4, 16 ss.). No fim exclamou: “Cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir” (Lc. 4, 21).
Essa passagem da Escritura, segundo o profeta, em consonância com o Apocalipse, referia-se à generalidade do povo crente e cristão quando anunciava: “Vós sereis chamados ‘Sacerdotes do Senhor’ e tereis o nome de ‘Ministros do nosso Deus’ (Is. 61, 6).
Determinada a missão do Messias, fica claro que para ela se requer a unção, embora seja certo que a missão é francamente visível enquanto a unção permanece na área da revelação, do mistério e da fé. Mas é a relação de causa-efeito que nos permite, com a Teologia católica, falar do Sacerdócio de Cristo como fonte e do nosso Sacerdócio como participação. E é ainda pelo magistério da Igreja que distinguimos entre sacerdócio ministerial ou hierárquico (participação no Sacerdócio de Cristo – Cabeça da Igreja) e o sacerdócio comum dos fiéis ou sacerdócio de todos os que foram baptizados em Cristo (cf. L.G. 10). E, “embora se diferenciem essencialmente e não apenas por grau, ordenam-se mutuamente um ao outro” (Ibid.).
Esta relação de mutualidade exprime-se de modo não único, e há quem prefira falar de uma Igreja toda ela ministerial, ou da Hierarquia constituída pelo Sacerdócio ordenado e do Laicado que comporta uma diversidade considerável de serviços e de ministérios.
A Liturgia da Palavra, que hoje proclamamos e analisamos, constitui a base para uma reflexão mais completa e profunda sobre a Igreja e a sua missão, sobre a Cabeça da Igreja e o ministério ordenado, sobre o Corpo da Igreja e a generalidade do Povo de Deus, sobre o Espírito do qual procede a unção, e sobre a missão que compete a todos e cada um para construção ou edificação do Corpo místico de Cristo (que continua a ser uma expressão consagrada, apesar da precisão introduzida pela Constituição “Lumem Gentium”, quando fala de “uma única realidade complexa, formada pelo duplo elemento humano e divino... por analogia com o mistério do Verbo Encarnado” (nº 8).
Toda a Eclesiologia pós-conciliar tem sido submetida a um desenvolvimento profundo, em termos de especulação, de maior refontalização, de investigação, de tomada de consciência de missão e dever, de participação e responsabilização, na contestação frontal e na reivindicação pessoal ou de grupo. Mas importa atender e atentar no essencial, que hoje é, circunstancial e localmente, o problema da vocação para o ministério sacerdotal ordenado.
Declaramos o Ano de 2006 como o ano da pastoral vocacional sacerdotal, e temos verificado que a nossa proposta e apelo encontrou eco e aceitação colaborante na Diocese. Mas importa insistir e continuar a convergir num esforço de organização e maior empenhamento nesta dimensão mais restrita da pastoral vocacional. É a Igreja diocesana, na totalidade de situações, de serviços, de ministérios, de programas, de movimentos, que deve sentir-se interpelada.
É certo que a cultura actual, secularizada, religiosamente neutra e indiferentista, agnóstica ou ateísta, individualista e economicista, não favorece, contraria ou anula muitos dos sinais de esperança que despertam na juventude, nomeadamente quanto à vocação para o presbiterado, a consagração religiosa e o matrimónio religioso. Por isso, há que reflectir e convidar os jovens a reflectir sobre o que são como pessoas e sobre a respectiva realidade mais profunda, que é a vocação como base e sentido das preocupações de cada um e como esperança de realização e felicidade. O Papa João Paulo II falava da necessidade de promover “uma nova cultura vocacional” nos jovens e nas famílias e de dar um “salto de qualidade” na pastoral vocacional (Pastores dabo vobis, nº. 40)
A comunidade diocesana é felizmente muito sensível ás situações e contingências da presença ou ausência de pároco. E por isso a comunidade não pode refugiar-se em contextos de multidões sem responsabilidade individual e pessoal, porque todos e cada um dos membros da comunidade deve sentir-se responsável neste problema e nesta causa das vocações, e especialmente quando haver ou não haver um sacerdote afecta sensivelmente a vida de cada comunidade local e de cada igreja local.
Nem se pense que a vocação de consagração ou de ministério sacerdotal diz respeito apenas aos jovens. O aspecto da nossa sociedade permite-nos distinguir um leque diferenciado de reforma, de voluntariado, de disponibilidade, de busca de ocupação, de reflexão sobre ideais, de capacidade para servir, que nos leva a pensar que a pastoral das vocações não se destina a privilegiados, a predestinados, e que de facto não tem nem deveria encenar-se dentro de fronteiras. É para todas as idades e não apenas para a idade juvenil. É um problema de comunhão para a missão de todos. É para todos o dever da comunhão, é de todos a missão, porque todos são chamados á santidade na Igreja e para a vida e edificação da Igreja.
Para isso, pedimos aos sacerdotes (nomeadamente aos párocos), às famílias, aos catequistas, aos professores e educadores, aos movimentos e obras da Igreja diocesana, a todos os cristãos imbuídos de consciência vocacional, que se integrem nesta causa dedicando-se àquilo que é a “cultura do chamamento”. É preciso convidar, propor directamente, sugerir, animar pessoalmente, acompanhar com solicitude.
Encontramos nas paróquias da Diocese grupos numerosos de Acólitos, administramos o sacramento do Crisma a multidões de jovens que frequentam a Catequese, preparamos uma percentagem animadora para o Sacramento do Matrimónio, organizamos e acompanhamos um sector vasto da juventude. Quem assume a responsabilidade de lembrar, sugerir, indicar, descobrir a vocação de consagração ou a vocação sacerdotal nestes jovens que frequentam a Igreja e se preparam para constituir famílias que sejam geradoras de vocação?
Rezar pelas vocações é fundamental e imprescindível. Mas o testemunho de fidelidade à vocação, a solicitude vocacional nas tarefas eclesiais e o exercício do ministério sacerdotal, a consciência mais viva de que a edificação da Igreja é tarefa comum e que suscitar operários compete a todos na Igreja, são condições para mobilizar a Igreja diocesana, em iniciativas singulares e de grupo, mas sobretudo no apoio e colaboração mais vastas com o Secretariado Diocesano da Pastoral das Vocações; todos mobilizados para a missão, porque acreditamos que o Espírito do Senhor está sobre nós, chamados “Sacerdotes do Senhor” e “Ministros do nosso Deus”, destinatários da “aliança eterna” que por Cristo Sacerdote Deus estabeleceu com a Humanidade
Catedral do Porto, 13 de Abril de 2006
D. Armindo Lopes Coelho, Bispo do Porto