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As novas fronteiras da comunhão

D. José Policarpo
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Homilia do Cardeal Patriarca de Lisboa na Missa por Alma de João Paulo II

1. O Papa morreu. Durante 27 anos, afirmámos explicitamente na liturgia eucarística, em que celebrávamos esse mistério central da nossa fé, a comunhão com o Papa João Paulo II. Essa densidade da comunhão permanece agora, mas alargou o seu horizonte para a eternidade, pois ele já experimenta agora a plenitude e o sentido derradeiro dessa comunhão que é sempre, como diz o Apóstolo Paulo, com Deus e com o Seu Filho Jesus Cristo. Nesta união profunda à pessoa de João Paulo II, que já ultrapassou a fronteira da morte, a Igreja afirma a sua verdadeira vocação de peregrina da eternidade. É essa a mensagem da Segunda Carta do Apóstolo Pedro, de quem o Papa é Sucessor, na Leitura que acabámos de escutar: “Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que, na sua grande misericórdia, nos fez renascer, pela ressurreição de Jesus Cristo de entre os mortos, para uma esperança viva, para uma herança que não se corrompe, nem se mancha, nem desaparece. Esta herança está reservada nos Céus para vós que pelo poder de Deus sois guardados, mediante a fé, para a salvação que se vai revelar nos últimos tempos”. Esta peregrinação da humanidade para a plenitude da vida, em Deus, que a Igreja vive e anuncia na densidade da sua fé, ganhou o ritmo definitivo na morte e ressurreição de Cristo, mas ela dinamiza todos aqueles e aquelas que alimentam no seu íntimo a busca da vida, a luta pela justiça e pela paz e que já perceberam que só na generosidade da solidariedade e do compromisso com os outros, o homem descobre a sua própria vida. É isso que fez de João Paulo II, não só um grande Pastor da Igreja, mas um símbolo da humanidade. E nesse abraçar apaixonadamente o destino da humanidade, agigantou-se a energia espiritual de um grande crente. E voltando a citar a Carta de Pedro, “a fé é mais preciosa que o ouro perecível, que se prova pelo fogo”. Jesus disse um dia aos seus discípulos que quem tiver fé, mesmo que seja pequenina como uma semente, pode mudar montanhas. Assumamos isso, porque foi demasiadamente evidente na vida de João Paulo II: a força deste homem, que o fez percorrer o mundo e enfrentar as grandes causas da humanidade, foi a força da fé. Ele mostrou-nos que somos todos pequenos demais, perante a incontornável existência de Deus e do Seu amor e perante a viragem qualitativa, operada na humanidade e em toda a criação, pela morte e ressurreição de Cristo. 2. No Concílio Vaticano II, na Constituição Pastoral sobre a presença da Igreja no mundo contemporâneo, a Igreja é convidada a perscrutar, continuamente, a realidade do mundo para poder, conduzida pela luz da fé, identificar no mais profundo da realidade humana, sinais de esperança, portas abertas ao anúncio da esperança cristã. Simpático como perspectiva, este não é um caminho fácil de percorrer. A sociedade contemporânea, na variedade das religiões e culturas, nas contradições paradoxais entre desejos anunciados e caminhos percorridos, no traumatismo de páginas da história que todos gostariam de esquecer, no ateísmo e na descrença assumidos como valores, parece mais antagónica do que convergente com o anúncio da esperança cristã. João Paulo II foi um dos que ousou percorrer, corajosamente esses caminhos, talvez porque a sua fé era mais forte do que a do comum dos cristãos, e a fé é sempre fundamento da esperança. Na sua primeira viagem a Portugal, reunido em Fátima com os Bispos de Portugal, disse-nos: o Bispo é aquele que vai sempre à frente, identificando perigos e riscos a correr e discernindo caminhos novos, por onde há-de conduzir o Povo de Deus. Durante 27 anos tivemo-lo como Pastor corajoso, sempre à frente com passada rasgada e decidida, não escondendo o feito das ameaças que pesam sobre a Igreja e sobre o homem, chocando alguns, surpreendendo muitos, galvanizando multidões. Mas tivemo-lo, sobretudo, percorrendo corajosamente caminhos novos, caminhos nunca percorridos nem suspeitados. Enfrentou regimes e sistemas, quebrou tabus, valorizou tudo o que de positivo existe já na experiência humana. Abriu as portas do diálogo, entre culturas e religiões, entre equações sociais já gastas pela história e os desafios de um mundo novo. São portas abertas que ninguém poderá fechar, pois através delas se descortina um futuro novo da humanidade. 3. Estes caminhos ousados tinham o horizonte da esperança, não ficaram prisioneiros de etapas imediatas ou de resultados visíveis. Na sua recente Carta Apostólica “Mane Nobiscum Domine”, escreveu: “ao convidar a Igreja para celebrar o Jubileu dos dois mil anos da Encarnação, eu estava perfeitamente convencido, e ainda o estou mais agora, de trabalhar para os “tempos longos” da humanidade” (n. 6). Sabemos que não viu realizados alguns dos seus grandes desejos: uma visita à Rússia, abrindo caminhos novos às relações ecuménicas e reconciliando aquele povo, que ele tanto amava, com os caminhos da paz; e a visita à China, o país mais populoso do mundo, onde vive e cresce uma Igreja do silêncio. As notícias, hoje publicadas, da reacção do Governo de Pequim à sua morte, voltam a reacender a chama da esperança. Mas isso abre-nos para o mistério da fecundidade da morte, unida à morte de Cristo. Como aconteceu com o próprio Senhor, os desejos mais profundos dos Profetas e dos Pastores, são cultivados durante a sua vida terrena, mas só a sua morte lhes dá o realismo da esperança. Tenho a certeza de que João Paulo II, em união com Cristo, ofereceu a sua vida por nós, pela Igreja e por esta humanidade que ele tanto amava. Porque a sua morte foi fecunda, fazendo germinar as sementes da esperança que semeou, neste momento a nossa oração, em comunhão com ele, é uma sentida acção de graças a Jesus Cristo, Senhor da Igreja, pelo Pastor que pôs à nossa frente. O caminho da Igreja continua, nos caminhos difíceis da História. Mas ela tem agora mais um intercessor junto do trono de Deus. † JOSÉ, Cardeal-Patriarca Sé Patriarcal, 3 de Abril de 2005


João Paulo II