Celebramos, na oitava do Natal e primeiro dia do novo Ano Civil, o Dia Mundial da Paz.
Segundo a liturgia da Igreja, Deus anunciou e prometeu a Moisés que abençoaria o seu povo com o dom da paz. No relato evangélico do nascimento em Belém e na sequência da integração de Jesus nos costumes e tradição do povo de Deus, o Menino recém-nascido recebe o nome de Jesus, isto é, Salvador. Explica S. Paulo que todo este mistério concreto da encarnação de Deus, para ser no mundo o Salvador, marca o tempo histórico como referência para o futuro: “Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher e sujeito à Lei, para resgatar os que estavam sujeitos à Lei” (Gal. 4, 4-5).
Como escreveu S. Bernardo, “apareceu a bondade e a humanidade de Deus nosso Salvador ... Quando chegou a plenitude dos tempos, veio também a plenitude da divindade ... no Menino que nos foi dado .. Desde então e portanto agora não se trata de uma paz prometida, mas enviada; não adiada, mas concedida; não profetizada, mas presente” (Hom. 20 de Janeiro).
Dom de Deus presente entre nós pela encarnação do seu Filho, o Cristo Salvador, a paz é também tarefa nossa, como se depreende do Sermão da Montanha: “Bem-aventurados os obreiros da paz, porque serão chamados filhos de Deus” (Mt. 5, 9). Se Deus é o Deus da paz, não merecemos o nome de seus filhos senão como obreiros diligentes da paz. De resto a indicação positiva da nossa tarefa resulta naturalmente do anseio humano e da esperança indestrutível de paz, subjacente mesmo às experimentações e horrores de qualquer guerra. E a Igreja tem consciência de que os ensinamentos doutrinais que difunde, a partir da experiência humana e da Palavra revelada, constituem as bases para a elaboração de princípios que são necessários para a convivência pacífica de homens e nações.
Em 1968 o Papa Paulo VI tomou a iniciativa de neste dia celebrarmos o Dia Mundial da Paz, com o apelo ao voto e promessa de no início de cada ano sermos fiéis a esta causa e celebração. E assim aconteceu até 1978, de tal maneira que se pode dizer que ao longo desses anos o Papa ilustrou os vários capítulos de uma “Ciência da paz”.
A convicção de que a paz é possível e é um dever radica na doutrina da Encíclica “Pacem in terris” de João XXIII ( o Beato João XXIII) e assenta sobre as quatro colunas ali indicadas: A verdade, a justiça, o amor e a liberdade. Educar para a paz é educar para estes ideais: Verdade, justiça, amor e liberdade.
Terminado o ciclo da Ciência elaborada, João Paulo II iniciou um novo ciclo, que vem de 1979 até este ano de 2004. O tema em 1979 foi: “Para alcançar a paz, educar para a paz”. Neste ano de 2004 tem-se a impressão de que o ciclo encerra, como verdadeiro círculo que fecha: “Um compromisso sempre actual: educar para a paz”. E de modo insistente: “A paz continua ainda possível. E, se é possível, então a paz é um dever”.
De um modo estritamente pessoal, manifestamente inusitado e sem dúvida de propósito, João Paulo II fala (escreve) na primeira pessoa: Dirijo-me a vós... A minha primeira mensagem... Assumindo o voto, eu quis... Não cessei de levantar a voz... Sinto o dever... Pela minha parte... Eu lançara apelo... etc. E deixa-nos um breve mas incisivo compêndio a que chama “Silabário da paz”, que é uma síntese doutrinal sobre a paz (nº 3 da Mensagem), da qual pode ler-se: “As várias faces do prisma da paz foram já abundantemente ilustradas. Agora falta apenas agir”. E ainda: “O esforço de educar a nós mesmos e aos outros para a paz, nós, os cristãos, sentimo-lo como fazendo parte da índole mesma da nossa religião. De facto, para o cristão proclamar a paz é anunciar Cristo que é “a nossa paz” (Ef. 2, 14), anunciar o seu Evangelho que é “Evangelho da paz” (Ef. 6, 15), chamar todos à bem-aventurança de ser obreiros da paz” (Cf. Mt. 5, 9).
A educação para a paz supõe e exige a educação para a legalidade, o que aconteceu “desde os alvores da civilização” através de acordos, pactos, ordenamentos jurídicos, direito internacional, postulados do direito natural e princípios aceites como superiores aos próprios Estados. A tentação de impor o direito à força à força do direito provocou a maior crise de que foi vítima a humanidade no século passado, com a IIª Guerra Mundial. Esta conduziu a “uma profunda renovação do ordenamento jurídico internacional”, de que resultaram a Organização das Nações Unidas, o Conselho de Segurança (com a proibição do recurso à força) e a Carta das Nações Unidas, que abriu duas excepções a tal proibição.
A Mensagem do Papa para o dia de hoje e para o ano agora começado, faz a história deste reordenamento jurídico, reconhece o respectivo contributo positivo para a dignidade humana, liberdade dos povos, desenvolvimento cultural e cultura da paz. Mas também não esquece, e tem a coragem de apontar, os inêxitos, desilusões ou fracassos cujas causas não podem ser omitidas: “O sistema elaborado com a Carta das Nações Unidas deveria preservar as futuras gerações do flagelo da guerra” (nº 6), o que não acontece por força da divisão da comunidade internacional em blocos contrapostos, da guerra fria, e de violentos conflitos desencadeados em fontes enigmáticas que culminaram com o terrorismo de vocação internacional. E por isso o Papa fala da necessidade de um novo ordenamento jurídico, estimulado já pela acção e vocação das Organizações Não-Governamentais e dos Movimentos a favor dos direitos humanos: “A humanidade ... hoje tem necessidade de um grau superior de ordenamento internacional”; “É necessário que a Organização das Nações Unidas se eleve cada vez mais do estado frio de instituição de tipo administrativo ao de “centro moral”, onde todas as nações do mundo se sintam como em casa própria” (nº 7).
É particularmente visada “a chaga funesta do terrorismo”, cujos protagonistas são “actores que não são Estados”, donde resulta a maior dificuldade para os Estados organizados a conviver segundo normas jurídicas conhecidas e aceites. Do Silabário do Papa e pensamento da Igreja formulamos alguns princípios: “ A luta contra o terrorismo não pode exaurir-se meramente em operações repressivas e punitivas. É necessário que o recurso necessário à força seja acompanhado por uma análise corajosa e lúcida das motivações subjacentes aos ataques terroristas. O empenhamento contra o terrorismo deve traduzir-se também no plano político e pedagógico” (nº 8).
Finalmente, e sendo certo que só falta agir para termos paz e vivermos em paz, João Paulo II volta aos seus ensinamentos na Encíclica “Dives in Misericordia” : “Sinto o dever de recordar que, para a instauração da verdadeira paz no mundo, a justiça deve ser completada pela caridade... Justiça e amor são duas faces duma mesma realidade... A justiça, sozinha, não basta ... Várias vezes recordei aos cristãos e a todas as pessoas de boa vontade a necessidade do perdão para resolver os problemas quer dos indivíduos quer dos povos. Não há paz sem perdão... Só uma humanidade onde reine a “civilização do amor” poderá gozar duma paz autêntica e duradoura” (nº 10).
Na sua Mensagem o Santo Padre dirige-se aos Chefes das nações, aos juristas, aos educadores da juventude, a todos os terroristas, homens e mulheres; a todos...
Também por isso a nós. Abramos o coração e a inteligência a estes apelos.
Sé Catedral do Porto , 1 de Janeiro de 2004
D. Armindo Lopes Coelho, Bispo do Porto