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Atender à dignidade da pessoa

D. Armindo Lopes Coelho
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Homilia do Bispo do Porto em Quarta-feira de Cinzas

Iniciamos, em Quarta-feira de Cinzas, o tempo litúrgico da Quaresma. É forte e eloquente a palavra de Deus, que inspira a reflexão deste dia e explica as particularidades do ritual: “Convertei-vos a Mim de todo o coração, com jejuns, lágrimas e lamentações” (Joel 2, 12); “Nós vos pedimos em nome de Cristo: reconciliai-vos com Deus... no tempo favorável, Eu te ouvi... Este é o tempo favorável” (2Cor. 5,20 e 6,2); “Tende cuidado... quando deres esmola... quando rezardes... quando jejuardes... Teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa” (Mt. 6,1 e passim); “Jesus, ao ver as multidões, encheu-se de compaixão por elas” (Mt. 9,36). Sendo um tempo de preparação para a Páscoa, no espírito e intenção da Igreja, a Quaresma é sobretudo e essencialmente uma peregrinação para Deus. Assim, a define o Papa Bento XVI na Mensagem que nos enviou: “tempo privilegiado de peregrinação interior até Àquele que é a fonte de misericórdia”. Na Tradição da Igreja o tempo de preparação é normalmente pretexto e apelo à penitência – penitência e tristeza pelo que se anseia e não está alcançado, tristeza e penitência que caracteriza a falta de plenitude para a qual se tende. A generalidade dos povos, em qualquer civilização, tem as suas práticas penitenciais onde não falta o jejum. Assim acontecia com o povo de Israel, como consta da linguagem dos profetas. Joel é particularmente elucidativo quando se faz voz e expressão da vontade de Deus: “Convertei-vos a Mim de todo o coração, com jejuns, lágrimas e lamentações” (Joel 2,12). Este convite-apelo dirige-se a todos os filhos de Israel, para que se integrem numa penitência pública e colectiva, destinada às várias classes etárias, profissionais e sociais, na esperança manifesta do perdão de Deus como argumento e defesa da própria condição privilegiada por parte de Deus. Esta consciência e auto-convicção expressa-se ainda no exemplo concreto de pessoas que, como a profetisa Ana, “não se afastava nunca do templo, servindo a Deus noite e dia com jejuns e orações” (Lc. 2,36-37). Esta era a atitude de quantos, como o velho Simeão, no tempo e porventura no templo, “esperavam a consolação de Israel” (Lc. 2,25). Por isso João Baptista, no anúncio do Messias, dava origem a uma classe de discípulos que viviam na expectativa do Salvador distinguindo-se pela prática do jejum (cf. Mc. 2,18-20). O jejum, a esmola e a oração eram práticas distintas da religião judaica. No tempo de Jesus havia um dia de jejum oficial – a festa da Expiação. Ele mesmo retirou-se no deserto para jejuar, antes de iniciar o ministério público: “jejuou durante quarenta dias e quarenta noites e, por fim, teve fome” (Mt. 4,2 . cf. Lc. 4,1-2). Com quase naturalidade e natural pedagogia foi com jejum e outras penitências que Cristo se preparou para o ministério e missão que o Pai lhe confiou. Pode dizer-se que na sociedade, por razões de fé e de humanismo, a prática do jejum se baseia em razões quase consensuais: poupar para poder ajudar quem precisa, fortalecer a própria vontade para resistir a tendências ou tentações incómodas, e constitui-se em sinal de que somos ainda peregrinos a caminho do Reino de Deus em plenitude. Integrando-se na vida e nas tradições do seu povo, Cristo disse aos discípulos daquela hora e de sempre: “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-la, mas completá-la” (Mt. 5,17). E completou-a segundo estes critérios: “tende cuidado em não praticar as vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles” (Mt. 6,1); “quando deres esmola, não toques a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas” (Mt. 6,2); “quando rezardes, não sejais como os hipócritas” (Mt. 6,5); “quando jejuardes, não tomeis um ar sombrio, como os hipócritas, que desfiguram o rosto, para mostrarem aos homens que jejuam” (Mt. 6,16). A Igreja de Cristo interroga-se pela palavra de S. Paulo: “Anulamos a Lei com a fé (em Cristo)?” e responde: “De modo algum. Antes a confirmamos” (Rm. 3,31). A Igreja actual confirma a fidelidade às suas tradições penitenciais actualizando-as conforme as carências e necessidades da sociedade que pretende iluminar e ajudar. O Papa Bento XVI acaba de dar o exemplo quando na sua Mensagem nos convida a reflectir “sobre uma questão muito debatida pelos nossos contemporâneos: o desenvolvimento”. E convida-nos a reflectir com o “olhar compassivo” de Cristo que, “ao ver as multidões, se encheu de compaixão por elas (Mt. 9,36). E o nosso “olhar” sobre a pessoa humana só pode imitar o olhar de Cristo se promovermos um desenvolvimento integral do homem, pois “não é possível separar a resposta às necessidades materiais e sociais da satisfação das necessidades do coração”. Na linha da doutrina social dos últimos Papas, há que atender à dignidade da pessoa, ao espírito de pobreza, à cooperação para o bem comum, à paixão pela paz, e também ao reconhecimento dos valores supremos que levam a Deus e à caridade que nos volta para o próximo. É certo que também entre os cristãos foram cometidos erros ao longo da história, entre os quais sobressai a tentação de separar e fasear a humanização e a cristianização, o que originou uma “gradual secularização da salvação” que ainda se nota e não se vê como superar. Também não é legítimo esquecer as inúmeras obras de caridade que a partir da Igreja contribuíram para o desenvolvimento da sociedade como factores importantes de promoção profissional e social. Considerando a sua missão essencial e o âmbito próprio desta missão, olhando para o passado, avaliando as perspectivas e esperanças do futuro, a Igreja entende ser sua missão pedir respeito pela dignidade humana, pela liberdade religiosa efectiva e pelos autênticos valores religiosos que desempenham um papel central na vida do homem. Por outro lado, “a primeira contribuição que a Igreja oferece para o desenvolvimento do homem e dos povos não se consubstancia em meios materiais nem em soluções técnicas, mas no anúncio da verdade de Cristo, que educa as consciências e ensina a autêntica dignidade da pessoa e do trabalho, promovendo a formação de uma cultura que corresponda verdadeiramente a todas as exigências do homem”. Estas palavras são da Mensagem do Papa. Entendemo-las como pertinentes e oportunas, embora para nós difíceis de passar e ser entendidas como mensagem necessária e urgente, dado o ambiente que nos envolve, a mentalidade que impera e se expande, o ar que se respira, a pressão que aumenta e a corrente que arrasta e ameaça levar consigo valores de solidez menosprezada. Considerando os tremendos desafios da pobreza real e mundial que as aparências não conseguem esquecer, a penitência quaresmal – o jejum, a esmola e a oração, são os meios ao nosso alcance para nos identificarmos com o “olhar” misericordioso de Cristo e interpretarmos o melhor sentido da tradição da Igreja – a partilha, concretizada no contributo penitencial quaresmal. A cada Bispo cumpre indicar as finalidades do contributo penitencial da sua Diocese, como afirmação de solidariedade e como apelo à comunhão eclesial. A Conferência Episcopal Portuguesa decidiu há algum tempo que cada Diocese reservasse 5% (cinco por cento) do contributo penitencial para um fundo de solidariedade com as Dioceses estrangeiras que nos dirigem pedidos. Sobretudo países lusófonos. Peço aos Rev.dos Párocos e Reitores das Igrejas da Diocese que expliquem aos fiéis todas as normas disciplinares da Igreja relativamente à prática penitencial em tempo da Quaresma. E os informem que o contributo penitencial desta Quaresma de 2006 se destina genericamente a fomentar e intensificar a actividade social e caritativa da nossa Diocese. Que esta Quaresma seja em verdade tempo de preparação, de penitência, de fraternidade, de reconciliação, de perdão, de amor por Deus e em Deus. Como cristãos, sintamos e proclamemos com S. Paulo: “Nós somos embaixadores de Cristo... Nós vos pedimos em nome de Cristo: reconciliai-vos com Deus... Este é o tempo favorável, este é o dia da salvação”(2Cor 5, 20-6, 2). D. Armindo Lopes Coelho, Bispo do Porto


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