Documentos

Catequese do Domingo de Ramos do Cardeal-Patriarca de Lisboa

D. José Policarpo
...

“A Palavra é pessoa: Jesus Cristo o rosto da Palavraâ€

Introdução 1. Na nossa experiência de convívio humano, não é habitual nem espontâneo, identificar a palavra e a pessoa. Estamos habituados a ouvir as palavras, que as pessoas proferem, escutamos o que têm para nos dizer, mas a pessoa não se confunde com a sua palavra. No entanto a nossa experiência humana também nos ensina que quando as palavras exprimem o mais íntimo de cada um, a sua verdade interior, elas são mais interpelativas, constroem comunhão, fazem desabrochar o amor e este é sempre entre pessoas. Quando a pessoa se nos comunica pelas suas palavras, sentimos o desejo de lhe dar um rosto: os que se amam trazem consigo a fotografia da pessoa amada; fixam em imagem, conseguida pelas novas tecnologias, os momentos mais significativos duma relação e revê-las é ocasião de trazer à memória, não apenas o que nos disseram, mas o rosto de quem o disse, porque o rosto comunica, na sua expressão, a mensagem que se comunica. Quem escuta uma palavra que saiu do coração de quem a disse e tocou o coração de quem a escutou, grita por um rosto. Os Padres Sinodais lembraram-no à Igreja na sua Mensagem: “As palavras sem um rosto não são perfeitas, porque não permitem que o encontro seja completo, como recordava Job, chegado ao fim do seu dramático itinerário de busca: «conhecia-te por ouvir dizer; agora os meus olhos vêem-te» (Job. 42,5)†. Escutar a Palavra de Deus suscita o desejo de ver o Seu rosto 2. Também a Palavra de Deus, quando é escutada como Palavra de amor, grita por um rosto. O Deus, tão vivo e amoroso na Sua Palavra, tem de ter um rosto. Querer contemplá-l’O é consequência do acolhimento dessa Palavra. Já no Antigo Testamento os crentes exprimem esse desejo. Moisés, o amigo de Deus, a quem a Palavra de Deus mudou a vida e iluminou todos os caminhos que percorreu, num momento de grande intensidade no Sinai, em que Deus lhe fala e, através dele, a todo o povo, ousa manifestar esse desejo: “peço-te a graça de me deixares ver o Teu rostoâ€. Deus responde-lhe com ternura, como que tendo pena de não poder satisfazer o seu desejo: “Tu não podes ver o meu rosto, porque nenhum homem me pode ver e continuar vivo†(Ex. 34,18.20). Este desejo surge com veemência nos grandes orantes de Israel, os salmistas. A oração é o encontro pessoal e íntimo com Deus, onde se escuta a Sua Palavra de amor, como Palavra de vida. Esse encontro suscita o desejo veemente de contemplar o rosto de Deus. “O meu coração diz-me: procura o Seu rosto. É o Teu rosto, Yahwé, que eu procuro, não me escondas o Teu rosto†(Sl. 27,8). Ver o rosto de Deus é, para o salmista, uma bênção e manifestação máxima da benevolência divina: “Deus se compadeça de nós e nos abençoe, faça brilhar sobre nós a luz do Seu rosto†(Sl. 67,2). Mas a resposta que Deus deu a Moisés, “tu não podes ver o Meu rostoâ€, é confirmada pelo Apóstolo São João: “Deus nunca ninguém O viu†(Jo. 1,18). Estas preces dos crentes que escutaram a Palavra do Senhor são, no fundo, o pedido que Deus se torne visível, de modo a poder contemplar o Seu rosto, pelo que Ele se faz homem e todos poderão contemplar o rosto do Deus que fala com tanto amor, no rosto de Jesus Cristo, a Sua única Palavra eterna feita homem. E por isso São João continua no prólogo do seu Evangelho: “Deus nunca ninguém O viu; o Filho único, que está no seio do Pai, no-l’O deu a conhecer†(Jo. 1,18). Jesus Cristo é a encarnação do Filho, do Verbo eterno do Pai. No Seu rosto humano, podemos, finalmente, contemplar o rosto de Deus que nos fala com Palavras de amor. O grande mistério da nossa fé 3. “O Verbo fez-Se carne e habitou entre nós e nós vimos a Sua glória†(Jo. 1,14). Este é o grande mistério, o coração da fé cristã . Já no texto do Êxodo que citámos, ver o rosto de Deus era sinónimo de ver a Sua glória. Agora podemos contemplá-la na humanidade de Jesus Cristo. e contemplar o rosto de Deus em Jesus Cristo continua a ser acolher a Palavra de Deus, porque Ele, o Filho, é a Palavra eterna. Não se trata, apenas, de ver o rosto de Deus num rosto humano. É todo o diálogo, o encontro entre o homem e Deus que se humanizou. A Palavra fez-se carne, isto é, humanizou-se. Tudo o que é humano em Jesus, o Seu rosto, as Suas Palavras, os Seus gestos, a Sua alegria e a Sua dor, a Sua consciência e a Sua vontade, são decisivos para esta nova escuta da Palavra, para estabelecer definitivamente a comunhão dos homens com Deus, isto é, são decisivos para a salvação. Durante séculos, Deus falou por intermédio dos profetas, porque eles ofereciam a linguagem humana à Palavra transcendente. Agora, que o Verbo se fez homem, fala directamente aos homens, sem a mediação dos profetas, porque a humanidade de Jesus pronuncia a Palavra eterna (cf. He. 1,1ss). Deus tornou-se mais próximo do homem. A encarnação do Verbo deu um novo rosto e um novo dinamismo à nossa fé. Trata-se agora de acreditar em Jesus, de reconhecer n’Ele a eterna Palavra de amor que Deus tem para nos dizer, de descobrir no realismo da Sua humanidade a palavra e o rosto de Deus. Mas porque Ele é homem, real e verdadeiro, trata-se de reconhecer n’Ele o verdadeiro rosto do homem como Deus o criou, à Sua imagem e o destina à glória da visão face a face. João Paulo II, referindo-se às dificuldades que os discípulos tiveram de reconhecer o Senhor ressuscitado, escreve: “na realidade, por mais que se olhasse e tocasse o Seu corpo só a fé podia penetrar plenamente no mistério daquele rosto (…). A Jesus só se chega verdadeiramente pelo caminho da fé†. A humanização de Deus em Jesus Cristo não dispensa a fé para chegar a contemplar o rosto de Deus. Ele é a Palavra encarnada e à Palavra de Deus só se pode responder com a fé, que ganhou, ela própria, a densidade da encarnação. No diálogo com os Apóstolos, em Cesareia de Filipe, Jesus ao elogiar a fé de Pedro que reconheceu na Sua humanidade o Messias, o Filho de Deus vivo, Jesus reconhece que isso lhe foi possível pela graça da fé: “Não foram nem a carne nem o sangue (isto é, as tuas forças humanas) quem to revelou, mas o Meu Pai que está nos Céus†(Mt. 16,17). E o Papa João Paulo II comenta: “À plena contemplação do rosto do Senhor, não chegamos pelas nossas simples forças, mas deixando a graça conduzir-nos pela sua mão. Só a experiência do silêncio e da oração oferece o ambiente adequado para maturar e desenvolver um conhecimento mais verdadeiro, aderente e coerente daquele mistério†. Os caminhos que nos levam a contemplar o rosto de Deus em Jesus Cristo 4. O caminho é Jesus Cristo. O processo da fé consiste em reconhecer o Filho do Pai, o Verbo eterno, na humanidade de Jesus. Não se trata de abstrair do humano, mas de reconhecer nesse homem, que é Jesus de Nazaré, o Filho eterno do Pai. Esta humanidade de Jesus, o Cristo histórico e real, em que a fé nos leva a reconhecer o rosto de Deus, encontramo-la, antes de mais, através da Sagrada Escritura, de modo especial os Evangelhos. Bento XVI no seu livro “Jesus de Nazaré†afirma, comentando as modernas correntes exegéticas, que os Evangelhos nos comunicam o Jesus histórico. João Paulo II, por sua vez, já afirmara: “A contemplação do rosto de Cristo não pode inspirar-se senão naquilo que se diz d'Ele na Sagrada Escritura, que está, do princípio ao fim, penetrada pelo seu mistério; este aparece obscuramente esboçado no Antigo Testamento e revelado plenamente no Novo, de tal maneira que São Jerónimo afirma sem hesitar: a ignorância das Escrituras é ignorância do próprio Cristoâ€. E conclui: “Os Evangelhos não pretendem ser uma biografia completa de Jesus, segundo os cânones da ciência histórica moderna. No entanto, neles aparece, com fundamento histórico seguro, o rosto do Nazareno†. É na intimidade com Jesus Cristo que se aprende a escutar a palavra da Escritura, de toda a Escritura, como Palavra de Deus. Porque Cristo é a humanização da Palavra eterna de Deus, Ele está presente em toda a Escritura, toda ela conduz à descoberta do rosto de Deus no rosto humano de Seu Filho. Isto mesmo está claro na narração de São Lucas sobre a caminhada dos discípulos para Emaús depois da crucifixão de Cristo. O ressuscitado acompanha-os, mas eles não O reconhecem. E para os levar a reconhecê-l’O, Ele explica-lhes o que, em todas as Escrituras, se referia a Ele (cf. Lc. 24,27). O ritmo da fé cristã não consiste apenas em ler a Escritura para chegar a Cristo. Trata-se de escutar, sempre de novo, a Palavra revelada, no contexto de uma relação de fé com Jesus Cristo. A Escritura conduz-nos a Cristo, mas Ele conduz-nos ao verdadeiro sentido da Escritura como Palavra de Deus. É por isso que na Igreja o lugar privilegiado da escuta da Palavra sempre foi a oração, sobretudo a Eucaristia. Mais do que em qualquer outro momento, na Eucaristia as palavras da Escritura conduzem-nos a mergulhar no insondável mistério do Deus Palavra, onde a Palavra é uma Pessoa, Aquele que me ama e eu quero amar. O que nos revela o rosto de Cristo 5. O rosto de Cristo é um mistério, como o é o próprio Cristo. Não se trata aqui da sua aparência física, cujos contornos se perderam na bruma do tempo. Trata-se de captar, na fé, sobretudo através da Palavra de Deus, o que a humanidade de Jesus nos revela de Deus, sobretudo o que Deus é para nós, pois esse é o sentido profundo da encarnação: em Cristo Deus revela-se a Si mesmo, enquanto manifesta o Seu desígnio de amor acerca do homem que criou. Ao revelar-se a Si mesmo, no rosto de Cristo, descobrimos o Filho, e no Filho eterno do Pai, penetramos no mistério de Deus comunhão de Pessoas, o mistério da Santíssima Trindade. Só na humanidade de Jesus percebemos que Ele é, desde toda a eternidade, o Filho predilecto do Pai. No rosto filial de Jesus reflecte-se, para nós, o mistério insondável de Deus. Os Evangelhos mostram-nos que em todas as expressões da vida humana de Jesus, mesmo na Paixão, resplandece, para nós, esta consciência de ser Filho do Deus Altíssimo, transmitindo-nos a prioridade absoluta de Deus em todas as expressões da nossa vida humana. Já no Templo, aos 12 anos, essa consciência clara se manifesta: “Porque Me procuráveis? Não sabíeis que devia esta em Casa de Meu Pai?†(Lc. 2,49). E esta consciência manifesta-se em todas as etapas do normal crescimento humano de Jesus. Demos a Palavra a João Paulo II: “Embora seja lícito pensar que, no respeito da condição humana que O fazia crescer «em sabedoria, em estatura e em graça» (Lc 2,52), também a consciência humana do seu mistério tenha crescido até à expressão plena da sua humanidade glorificada, não há dúvida de que Jesus, já nos dias da sua existência histórica, tinha consciência da sua identidade de Filho de Deus. João sublinha-o tanto que chega a afirmar que, em última análise, foi esse o motivo por que O rejeitaram e condenaram: na realidade procuravam matá-l’O «não só por violar o sábado, mas também porque dizia que Deus era seu Pai, fazendo-Se igual a Deus» (Jo 5,18). No cenário do Getsémani e do Gólgota, a consciência humana de Jesus será submetida a dura prova, mas nem sequer o drama da sua paixão e morte conseguirá turbar a sua serena certeza de ser o Filho do Pai celeste†. Porque no rosto de Cristo brilha para nós essa qualidade e intimidade de Filho, ele anuncia-nos, também, a nossa qualidade filial de filhos de Deus, “filhos no Filhoâ€. É contemplando esse rosto filial que nos descobrimos na dignidade de filhos de Deus. 6. Não temos agora tempo de desenvolver outras dimensões do rosto de Cristo, o Seu rosto de bondade e de ternura, o Seu rosto sofredor, a plenitude da vida no Seu rosto glorioso. As celebrações que se aproximam serão a ocasião de contemplar essas múltiplas expressões do rosto de Jesus Cristo e de perceber mais profundamente que, em tudo, Ele é uma Palavra de amor que Deus pronuncia para nós, em cada momento da nossa vida. † JOSÉ, Cardeal-Patriarca


Quaresma