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Catequese Quaresmal do Bispo do Porto

D. Manuel Clemente
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O século XIX trouxe à diocese do Porto problemas e possibilidades, como sempre acontece. Pouco a pouco, as grandes propostas pastorais tridentinas tinham-se concretizado: campanhas missionárias internas, protagonizadas por antigas e novas congregações; um seminário diocesano finalmente aberto; grande vitalidade confraternal no campo da piedade e da caridade… Sobrevieram depois graves acontecimentos, que transtornaram a normalidade social e eclesial do Porto, como do país inteiro. Há duzentos anos o desastre da Ponte das Barcas assinalou tragicamente o que foram as Invasões Francesas. Em 1832 o desembarque de D. Pedro e a subsequente tomada da cidade reabriu o período liberal, que aqui começara em 1820. Mas, como sabemos, a década de trinta do século XIX significou a extinção das congregações religiosas (imediata das masculinas e a prazo das femininas) e um grave “cismaâ€, entre os que aceitavam as autoridades eclesiásticas do novo regime e os relutantes a elas. Tudo deixou sequelas. Afastado o bispo D. João de Magalhães, logo em 1832, a sucessão episcopal legítima só foi retomada em 1840 com D. Jerónimo José da Costa Rebelo, refazendo-se, pouco a pouco, a normalidade pastoral. Releve-se a figura do bispo D. João de França Castro e Moura, nos anos sessenta, que reabriu o seminário diocesano e reivindicou quanto pôde a liberdade episcopal na nomeação dos párocos, em que o Governo queria preponderar. Creio, porém, que estes e outros condicionalismos, em si negativos, acabaram por ocasionar a emergência duma realidade bastante nova na vida da Igreja e uma etapa inovadora na evangelização da diocese e além dela. Refiro-me ao aparecimento dum laicado reflexivo e activo, que não hesitou em tomar a primeira linha da resposta católica aos grandes reptos da sociedade e da cultura nas últimas três décadas do século XIX portuense e nacional. A sua história – qual núcleo do “movimento católico†- tem sido narrada em sucessivos textos dedicados aos Congressos Católicos em Portugal (o 1º foi exactamente o do Porto, na viragem de 1871 para 1872), à Associação Católica do Porto, primeira de várias congéneres, ao seu jornal A Palavra e, tempos depois, aos Círculos Católicos de Operários. O congresso foi autorizado pelo bispo do Porto, D. Américo Ferreira dos Santos Silva (cardeal em 1879), que soube acompanhar tais iniciativas, ao mesmo tempo que dedicava particular atenção à formação dos futuros sacerdotes. Para ilustrar esta nova etapa da evangelização da nossa diocese, apresentarei alguns textos de dois autores, leigos portuenses, que ainda hoje nos impressionam pela oportunidade e pela substância. Primeiramente do Conde de Samodães (1828-1918) verdadeiro “chefe†do movimento católico. Com esta designação genérica se refere um conjunto de iniciativas que, sobretudo a partir de 1870, visou defender e promover a vida interna e apostólica da Igreja, quer face às grandes ingerências do Estado quer quanto à crítica ideológica de muitos descrentes. Esta etapa nova da evangelização ofereceu-nos no Conde Samodães e vários outras figuras do laicado a inauguração dum “lugar†novo e fecundo de vida eclesial consequente. Numa sociedade já em processo de secularização e afastamento da prática e mesmo da convicção católica, tomaram parte inteira na apologética de fé e obras, assumindo-se como autênticos crentes em situações e postos que, aliás, quase só eles poderiam ocupar. Passávamos então dum mundo sacralizado, em que a religião tanto definia o poder político como a acção pastoral, para a sociedade contemporânea, em que pertenças e competências estão muito mais distribuídas. Samodães, além da formação escolar e militar, da vida familiar e da administração dos seus bens, desempenhou vários cargos políticos (deputado, par do Reino, governador civil, ministro), e dedicou-se a uma intensa vida cultural, literária (especialmente jornalística) e assistencial (com relevo para a Misericórdia do Porto). Em tudo se revelou propriamente “militanteâ€, em combate pacífico e franco na defesa daquilo a que chamou “a liberdade da Igrejaâ€, ou seja, a sua autonomia de organização e apostolado, face ao regalismo persistente dos governantes. Isto releva tanto mais quanto Samodães era francamente adepto do regime constitucional, ao contrário de outros católicos que o consideravam ilegítimo e intrinsecamente inimigo da Igreja. É interessante verificar como ele integra a sua luta político-religiosa numa sequência que remonta a outro grande liberal portuense, que também prestara a sua contribuição ao reatamento das relações entre Portugal e a Santa Sé, no demorado rescaldo das guerras civis dos anos trinta. Escreveria Samodães n’ A liberdade da Igreja em Portugal, 1880, p. 35: “A minha dedicação para com o episcopado é mais lata, amplia-se a todo o clero, cuja causa me comprazo em ter defendido toda a minha vida como defendido tenho a religião católica, apostólica, romana, pelo modo que tenho sabido e podido, imitando nisto e mal (por mais não poder) o Visconde de Almeida Garrett, que um dia me deu esse conselho em 1854â€. A importância desta militância laical, pela novidade e consistência pessoal que manifestou, foi de enorme valia para a evangelização portuguesa até à Acção Católica (1933) e aos nossos dias. Porque, com Samodães e outros seus coevos, o apostolado ganhava, face à sociedade nova, um escol de protagonistas que a integravam totalmente e a conheciam muito bem, em termos de vida, profissão, sociedade e cultura. Transportando a consistência e o protagonismo pessoais para o âmbito eclesial interno, tiravam todas as consequências da condição baptismal, rumo a uma consideração renovada do “quem é quem†na comunidade crente, anunciando já a corresponsabilidade que hoje activamos. Em Samodães, com quem os bispos portugueses tratavam e se aconselhavam em grande confiança, releva a urgência do estudo, do debate, da promoção competente da doutrina e da prática católicas. Precisamente no campo doutrinal e teológico, que fora quase só eclesiástico. Oiçamo-lo no Discurso em honra da Cruz, 1873, p. 33-35: “Houve tempo em que a teologia não precisava de ser popular. Estava esta ciência reservada para os sábios e doutores. Hoje é mister que ela se torne acessível e servindo-me dum epíteto hoje na moda, que corre de boca em boca, republicana, isto é, ao nível de todos, perfeitamente igualitária, porque iguais nos fez a Cruz, a redenção, o catolicismo. […] Aqui hoje e sempre que nos reunirmos, congregados em academia, comunicamos nossos pensamentos, transmitimos nossas ideias, comungamos no saber de todos. […] A fé, que noutras eras podia ser cega, hoje precisa de ter os olhos abertos […]. Precisamos provar praticamente aos livres pensadores que não nos esquivamos à discussão […]. É indispensável que haja academia, conferências, congressos, jornais, livros, tudo quanto seja conducente a apoiar a causa do catolicismoâ€. Este discurso de Samodães foi proferido na Associação Católica do Porto, há 136 anos. Deus queira que estejamos realmente “perto†das ideias do autor, tão necessárias agora para a corresponsabilidade na missão, que passará necessariamente pela partilha de ideias e propósitos, da fé comum para um mundo exigente. Não menos importante para esta nova etapa da evangelização entre nós é a consideração eclesiológica que já a sustentava na altura, concretamente por parte do Visconde de Azevedo (1809-1876). A sua casa era ponto de encontro e partilha de ideias entre figuras próximas e interessadas nas questões da altura, como escreveria Samodães n’ A Palavra de 2 de Janeiro de 1877: “O nobre conde de Azevedo teve muitos e verdadeiros amigos e a sua casa era um centro, onde eles se congregavam, para em agradável colóquio discutirem entre si assuntos, a que a murmuração era estranhaâ€. Azevedo discursou no congresso católico do Palácio de Cristal, a 1 de Janeiro de 1872. Oiçamo-lo, para ainda nos admirarmos talvez: “Bem sei que não falta quem tenha dito que esta nossa reunião era inútil e desnecessária por isso que os ministros sagrados do culto aí estavam todos os dias pregando dentro dos nossos templos as coisas da religião, tornando-se assim escusado o vir escutá-las aqui. É exactamente por esse dito que estas reuniões me parecem necessárias e utilíssimas: no século passado Voltaire, chefe dos incrédulos do seu tempo, para ridicularizar a religião católica chamava-lhe a religião dos Padres, e os seus discípulos desde então até hoje não se têm esquecido de lhe dar a mesma denominação; pois […] eu afirmo que é tudo pelo contrário, que a religião católica não é a religião dos Padres, mas os Padres é que são da religião católica […]; é portanto coisa evidente que, sendo a religião, a Igreja Católica, e os Padres coisas coevas na sua fundação e criação por Jesus Cristo, não são aquelas que derivam destes, mas sim estes que derivam daquelas… †(VISCONDE DE AZEVEDO – Discurso pronunciado na Assembleia dos Oradores e Escritores Católicos. Porto, 1872, p. 6-7). O que o orador quer dizer compreende-se bem na apologética da altura: a sociedade liberal desejava participação igualitária, mais do que obediência a autoridades, acusando os católicos de submissão e menoridade cultural… Mas a eclesiologia de Azevedo rebate radicalmente tal posição. Não pondo minimamente em causa o papel dos ministros sagrados, integra-os na comunidade a que pertencem com todos os fiéis, sendo estes particularmente chamados a dar testemunho lúcido da sua fé nas circunstâncias especiais que se viviam. Já estávamos, como continuamos, em tempos de grande exigência e conveniência para o apostolado laical. A tantos anos de distância, a convicção de Azevedo não se revela hoje menos necessária para a evangelização a empreender, meio a meio e sector a sector, exactamente por quem os integra, ou seja, o actual laicado, responsável, comprometido e preparado. Ainda nos seus termos: “Para evitar estes sarcasmos dos adversários da Igreja católica, e para mostrar-lhes que a religião católica não é a religião dos Padres, mas sim a religião de Jesus Cristo, é que se têm reunido em vários lugares do mundo católico estas assembleias de natureza puramente leiga e secular†(Ibidem, p. 7). Entendamos que para Azevedo, Samodães e os seus colegas portuenses de 1872, o ministério e a necessidade dos sacerdotes eram indiscutíveis e urgentes. Não lhes faltam intervenções nesse sentido, antes, durante e depois do 1º congresso católico. Mas o que sobressai neles é a consciência clara e certeira de que, numa sociedade secular como já era a portuguesa, pelo menos em meio urbano, era necessário que o fiel católico assumisse francamente a sua condição e a declarasse onde estivesse, com saber e consequência teórica e prática. E foi esta consciência que qualificou uma nova etapa da evangelização. Aquela que queremos levar por diante. D.Manuel Clemente


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