Homilia de D. Armindo Lopes Coelho, Bispo do Porto na Celebração da Solenidade do Natal do Senhor
Celebramos hoje e mais uma vez o Natal de Jesus Cristo. O Natal é um acontecimento que muitos consideram o mais importante e transcendente acontecimento da História da Humanidade. É o nascimento do Filho de Deus feito homem, que por isso se insere na nossa história e no nosso mundo, o que significa que a partir do momento da Sua Encarnação Deus entrou na história dos homens. Assim, fazemos e escrevemos a nossa história, na certeza e consciência de que Deus é Senhor também da nossa história e das nossas estórias.
Falamos na perspectiva da fé e da fé cristã. Não podemos deixar de dar este testemunho só pelo facto de o nosso tempo estar marcado por fenómenos de ateísmo, de agnosticismo e de indiferentismo religioso ou pelo facto de nos vermos confrontados com atitudes e movimentos que com suposta intenção cultural e com manifesta tendência racionalista tentam retirar a figura de Cristo do âmbito da História e do mistério e reduzi-lo às dimensões míticas ou puramente insustentáveis de uma ciência positivista e de uma história supercrítica.
Deve reconhecer-se que o acontecimento e facto histórico do Natal entrou e continua a entrar na vida e nos costumes das pessoas, embora dependente das situações sociais concretas, das culturas diferentes e dos níveis de fé não idênticos. Para os cristãos o Menino representado no presépio é o Deus da ternura, da inocência, do humanismo e do mistério que se abre à compreensão e à fé. O espírito e fascínio do Natal entrou também no mundo do consumismo, da ignorância religiosa e da indiferença ética, no mundo secularizado que se descristianiza e por isso se desumaniza. Celebramos o Natal em ambiente de contradições que desvirtuam o sentido da celebração, e transformam a celebração e o próprio facto da Encarnação do Filho de Deus num sinal sem conteúdo e sem impacto no coração das pessoas. Não se julgam as intenções, mas há manifestações festivas no Natal que objectivamente parecem expressões de resistência e de alienação. Celebra-se para lembrar e evocar, ou celebra-se para fugir e esquecer?
Revelando-Se e desafiando a humanidade para O conhecer, Deus enviou-nos finalmente o próprio Filho como Seu Verbo, Sua Palavra. Nesta Palavra personificada, que é Jesus Cristo, Deus disse-nos e diz-nos quanto quis dizer-nos, quanto precisamos de saber para O conhecermos e nos conhecermos a nós mesmos. Porque em Cristo o Pai torna-se visível e próximo, vizinho, companheiro, Emmanuel: “O Verbo fez-se carne e habitou entre nós” (Jo. 1, 14). A este acontecimento chamamos Encarnação, e esta habitação entre nós é um facto, continua a ser um facto que tem que ver com cada um de nós.
É por ventura nos profetas messiânicos que vamos encontrar a significação mais profunda das transformações que o Natal de Cristo trouxe ao mundo na plenitude do tempo.
O profeta Isaías fala da maior tragédia que o Povo de Deus viveu, aquando do exílio em Babilónia. E sonha de modo fantasioso (profético) com a libertação e o regresso à pátria e à paz. Referia-se a dados que a história regista e que pertencem às vicissitudes daqueles povos, em crises que se tornaram crónicas e que persistem. Mas o profeta visava o tempo de uma libertação mais profunda, mais plena, universal, com a vinda do Messias, Salvador prometido por Deus.
Ora, esta libertação já foi realizada. Veio o Salvador. Já foi o Seu Natal entre nós. Começou há cerca de 2000 anos o Reino de Deus. Iniciamos o terceiro milénio da era cristã. Pode porém dizer-se que os dois mil anos de cristianismo são um hino à concretização do tempo messiânico do Natal de Cristo e da libertação prometida e realizada, e ao mesmo tempo um hino à liberdade humana.
O que o Evangelista S. João nos diz, mais do que descrever a reacção imediata e próxima ao Natal em Belém, é uma caracterização do tempo posterior que chegou até nós e que permanece ainda como desafio:
“A luz brilhou nas trevas
E as trevas não a receberam” (Jo. 1, 5)
“Estava no mundo
E o mundo, que foi feito por Ele, não O conheceu” (Jo. 1, 10)
“Veio para o que era seu
E os seus não O receberam” (Jo. 1, 11)
A nós compete proclamar que Cristo é a luz que brilha nas trevas da nossa sociedade; que está no mundo que teima em desconhecê-lO mas não O dispensa apesar de tudo; que bate à porta, de cada pessoa, de cada família, de cada instituição, e que espera ser recebido.
Continuamos a exclamar com o profeta:
“Como são belos sobre os montes
Os pés do mensageiro que anuncia a paz,
Que traz a boa nova, que proclama a salvação” (Is. 52, 7)
Deste mensageiro somos nós testemunhas e sentinelas, para O anunciar e proclamar o mistério do Amor de Deus revelado no Natal. Para proclamar que é possível o amor entre os filho de Deus. Para gritar que é necessário e urgente e exorcizar os medos e viver com esperança, mas dizer bem alto que Cristo é o fundamento da Esperança, a base da fraternidade, e a nossa paz.
Porto e Sé Catedral, 25 de Dezembro de 2004
D. Armindo Lopes Coelho, Bispo do Porto