Documentos

Celebrar adorando, adorar celebrando

D. José Policarpo
...

Homilia do Patriarca de Lisboa na Missa da Ceia do Senhor

“Celebrar adorando, adorar celebrando†Homilia da Missa da Ceia do Senhor Sé Patriarcal, 5 de Abril de 2007 1. Esta celebração da “Ceia do Senhor†evoca, para nós, uma dupla relação: a da Ceia Pascal de Jesus com a Eucaristia da Igreja e desta com a vocação da Igreja de se identificar com Jesus Cristo, na radicalidade do seu dom, perfeição da caridade. A “última Ceiaâ€, não foi a celebração do sacramento da Eucaristia. Este é uma realidade post-pascal, em que a Igreja perpetua a salvação que Cristo mereceu, para nós, na Sua Páscoa, vivida e aplicada aos homens de cada tempo e de cada geração. Mas aquela ceia pascal está carregada do sentido, que inspirou a vivência do sacramento da Eucaristia desde a Igreja nascente: a significação simbólica da refeição, como memória e actualidade de comunhão; a intensidade de amor de Jesus Cristo, fruto da profundidade com que Ele vive aquele momento de consumação da sua missão, fonte da caridade que há-de unir a Igreja; a novidade de exprimir no pão repartido e na taça partilhada, o realismo do Seu Corpo oferecido e do Seu Sangue derramado. Por tudo isso, a Eucaristia será sempre celebrada como a Páscoa da Igreja, que vive do Senhor ressuscitado, ao ritmo do Espírito. Assim a carga simbólica e a força significativa da Ceia Pascal ajudarão a Igreja, em cada tempo, a redescobrir o sentido e a centralidade da Eucaristia. É o que pretendo fazer, hoje, convosco, nesta tarde de Quinta-Feira Santa: redescobrir o mistério da Eucaristia na nossa Igreja de Lisboa. Convida-nos a isso a recente Exortação Apostólica do Santo Padre sobre a Eucaristia “Sacramento da Caridadeâ€. Quero centrar-me, de modo particular, na inseparável unidade entre celebração e adoração, para aprendermos a celebrar a Eucaristia, adorando, e a adorar Jesus Cristo na Eucaristia, celebrando este mistério insondável. 2. Antes de mais, devemos tomar consciência das alterações verificadas, desde o Concílio para cá, na compreensão e na vivência da Eucaristia. A reforma litúrgica, promovida pelo Concílio, centrou-se na valorização da celebração da Eucaristia, principal expressão da Igreja comunhão. Tomou-se consciência de que a “Eucaristia faz a Igrejaâ€, segundo a expressão de São Cipriano. A Igreja afirma-se e define-se na maneira de celebrar a Eucaristia. Vínhamos, é certo, de um tempo, que muitos de nós ainda vivemos, em que se acentuava o culto da real presença de Jesus Cristo na reserva eucarística: a comunhão frequente, mesmo fora da celebração; a adoração, permanente ou frequente, de que os tronos barrocos das nossas Igrejas são um sinal; as Confrarias e Irmandades dedicadas ao culto do Santíssimo Sacramento; as procissões eucarísticas; o hábito da visita pessoal a Jesus eucarístico, no silêncio das nossas Igrejas, então sempre abertas. Não era objectivo da reforma litúrgica, ao valorizar a celebração, relativizar ou menosprezar estas expressões do culto eucarístico. Mas isso aconteceu. O próprio Papa, ao apresentar-nos a síntese do Sínodo sobre a Eucaristia, o reconhece, ao afirmar: “quando a reforma dava os primeiros passos, aconteceu, às vezes, não se perceber com suficiente clareza a relação intrínseca entre a Santa Missa e a adoração do Santíssimo Sacramento†. A expressão mais grave deste divórcio encontramo-la naqueles que relativizaram a sua fé na Presença real. Para esses, o pão repartido na celebração é apenas o símbolo de uma comunhão situada naquele momento. Para o comer basta o desejo de comunhão com aqueles irmãos, descurando a conversão, a pureza do coração e a plena comunhão com a fé da Igreja, condições necessárias, exigidas pela santidade de Deus, para acolher em nós o próprio Cristo Vivo. Não acreditar que nas espécies eucarísticas está realmente presente o Senhor, é esvaziar a Eucaristia da sua verdade e da sua força. Ela deixa de ser um acontecimento inaudito de Deus, pelo poder do Espírito, para se reduzir a uma acção humana, porventura bela e carregada de emoção. 3. Não pode haver dicotomia entre celebração e adoração. Na sua verdade profunda, a própria celebração, sobretudo a comunhão, é acto de adoração. A Exortação Apostólica cita, a este respeito, uma frase de Santo Agostinho: “Ninguém come esta carne, sem antes a adorar. Pecaríamos se não a adorássemos†. Toda a celebração deve ser um acto de adoração. O Santo Padre acrescenta: “Na Eucaristia, o Filho de Deus vem ao nosso encontro e deseja unir-se connosco; a adoração eucarística é apenas o prolongamento visível da celebração eucarística, a qual, em si mesma, é o maior acto de adoração da Igreja. Receber a Eucaristia significa colocar-se em atitude de adoração d’Aquele que comungamos†. Porque “o acto de adoração fora da Santa Missa prolonga e intensifica aquilo que se faz na própria celebração litúrgicaâ€, a adoração tem carácter celebrativo, é um acto de culto. A adoração eucarística, tornada atitude habitual, conduz o cristão a dar dimensão celebrativa a toda a sua vida, e a descobrir o seu sentido nesta relação adorante com Cristo Vivo. A Eucaristia vai-se tornando a expressão natural da nossa vida em Cristo, autêntico culto espiritual, agradável a Deus, na linha do que escrevia São Paulo aos Romanos: “Peço-vos, irmãos, pela misericórdia de Deus, que ofereçais os vossos corpos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus. Tal é o culto espiritual que Lhe deveis prestar†(Rom. 12,1), texto que o Santo Padre comenta assim: “nesta exortação aparece a imagem do novo culto como oferta total da própria pessoa em comunhão com toda a Igreja. A insistência do Apóstolo na oferta dos nossos corpos sublinha o realismo humano de um culto que não é desencarnadoâ€. Nesta oferta de toda a nossa vida, atinge-se a dimensão sacrificial da Eucaristia, mesmo quando a adoramos. “Exprime-se aqui toda a densidade existencial, implicada na transformação da nossa realidade humana alcançada por Cristo†. 4. Adorar o Senhor na Eucaristia pode ser experiência decisiva na transformação da nossa fé e, como consequência, da nossa vida. Os textos sagrados e a tradição viva da Igreja viva mostram-nos, muitas vezes, esta transformação de uma fé tradicional no Deus de nossos pais, numa fé que brota de um encontro pessoal com o Deus Vivo. O Deus de nossos pais, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob, ou o Cristo da maior parte dos cristãos, pode ser o suficiente para fundamentar uma fé religiosa, mas incapaz de provocar as grandes mudanças de vida, que levam a encetar caminhos novos de ousadia e de missão. Foi assim com Moisés no Sinai, com Isaías no Templo de Jerusalém, com os Apóstolos de Jesus, com Saulo na estrada de Damasco. Foi um encontro vivo com o Deus Vivo, que os fez encontrar com Deus como alguém inevitável, com um projecto e uma proposta de amor. A resposta é sempre a mesma: Eis-me aqui, envia-me; Senhor, que queres que eu faça?, e deixaram tudo e seguiram Jesus. Estamos habituados a considerar estes encontros marcantes com o Deus Vivo reservados a figuras extraordinárias, a quem Deus escolheu para missões especiais. A surpresa da Páscoa cristã é que, depois do dom do Espírito Santo, este encontro vivo com o Deus Vivo está ao alcance de todos e o Senhor deseja fazê-lo com cada crente. E o grande Sacramento desse encontro é a Eucaristia, que lhe retira o aparatoso da teofania, sem o privar da intimidade exigente e transformadora. Só o Senhor sabe quantas vidas mudaram diante da Eucaristia: aí se decidiram caminhos de entrega generosa, à missão ou ao amor dos irmãos; aí se descobriu o amor com a marca do divino; aí aconteceram manifestações extraordinárias do amor infinito de Cristo, que deseja muito ser amado; aí, no silêncio da oração, se decidiram etapas positivas da humanidade. E tudo isto por uma razão simples de perceber: é porque a Eucaristia é o Sacramento do amor, a fonte da caridade. † JOSÉ, Cardeal-Patriarca


Diocese de Lisboa