O tempo do Advento emerge, na caminhada litúrgica, como espaço de concentração no Amor de Deus que se manifesta no nascimento de Cristo e que os cristãos e as comunidades devem testemunhar. Situações de pobreza, e até de miséria, continuam a alastrar na sociedade de hoje, mas a vivência da caridade e da esperança cristãs não permite que encaremos essas situações de braços cruzados. O programa pastoral da nossa Arquidiocese convida-nos a ver cada ser humano como membro da família de Deus, reclamando de nós a celebração festiva do amor solidário e o empenho generoso em estabelecer uma comunhão efectiva entre os homens.
Pela sua Incarnação, Cristo assumiu também as dores da nossa humanidade, identificando-se mesmo com os mais pequenos e os mais pobres (cfr. Mt 25, 40 e 45). É, portanto, imperioso que a Igreja, esposa de Cristo, saiba olhar com particular carinho para tantos e tantos irmãos necessitados, ao serviço de quem devemos colocar todos os meios de apoio sócio-caritativo de que dispomos.
Partindo das orientações do Conselho Presbiteral, quero, nesta quadra do Advento, convidar as comunidades paroquiais da nossa Arquidiocese a repensar a validade das respostas que oferecemos no domínio sócio-caritativo, e também estimular os Centros Sociais Paroquiais a serem cada vez mais instrumentos de qualidade ao serviço dos mais pobres e carenciados.
1. Dai-lhes vós de comer
Tudo pode partir de um episódio paradigmático do Evangelho, conhecido como «multiplicação dos pães», que põe sabiamente diante de nós o modelo e o contramodelo:
«Jesus viu uma grande multidão e sentiu misericórdia, porque estavam como ovelhas sem pastor. Então começou a ensinar-lhes muitas coisas. Quando começou a entardecer, os discípulos chegaram perto de Jesus e disseram-Lhe: “Este lugar é deserto e já é tarde. Manda-os embora, para que possam ir aos campos e povoados vizinhos comprar alguma coisa para comer”. Mas Jesus respondeu: “Dai-lhes vós de comer”. Os discípulos perguntaram-Lhe: “Devemos gastar meio ano de salário e comprar pão para lhes dar de comer?” Jesus perguntou: “Quantos pães tendes? Ide ver”. Eles foram e responderam: “Cinco pães e dois peixes”. Então Jesus mandou que todos se sentassem na erva, formando grupos. E todos se sentaram, formando grupos de cem e de cinquenta pessoas. Depois Jesus tomou os cinco pães e os dois peixes, ergueu os olhos ao céu, pronunciou a bênção, partiu os pães e ia-os dando aos discípulos, para que os distribuíssem. Dividiu entre todos também os dois peixes. Todos comeram, ficaram satisfeitos e recolheram doze cestos cheios de pedaços de pão e também dos peixes. O número dos que comeram os pães era de cinco mil homens» (Mc 6, 34-44).
Da leitura salta à vista o modo não-acolhedor, frio, mercantilista, consumista, egoísta e egocêntrico destes discípulos de Jesus, que propõem a Jesus que mande as pessoas embora, para que cada um compre de comer para si mesmo (Mc 6, 36). O perigo espreita sempre que alguém passa a viver, a comprar, a acumular para si mesmo, ou a querer salvar-se a si mesmo (Ez 34, 2; Lc 12, 21; 23, 35. 37. 39; Rm 14, 7; 2 Cor 5, 15).
O contraponto de Jesus é exemplar: não mandar embora, não comprar cada um para si, mas acolher, dar, condividir.
Bem vistas as coisas, não se trata mesmo de uma «multiplicação» dos pães. Trata-se de uma «divisão» dos pães. A lição de Jesus não é aumentar a produção (lógica mercantilista). A lição de Jesus é condividir, repartir. Mas tudo começa, note-se, naquele «sentiu misericórdia», sentimento maternal de uma mãe que vela carinhosamente pela vida dos seus filhos. Na verdade, aquele «sentiu misericórdia» é uma voz nova, livre e soberana que me faz ver a vida de cada ser humano como mais importante do que a minha própria vida, como é para uma mãe sempre mais importante a vida do bebé que traz nas entranhas do que a sua própria vida.
2. A caridade como caminho da Igreja
A Igreja manifestou-se toda inteira em volta de Cristo pelo vínculo da caridade, sendo esta «como um direito e um dever» que ela «não pode alienar» (Decreto Apostolicam actuositatem, do Concílio Vaticano II, 8). Toda ela é diaconal e alimenta esta sua exigência na cultura da fé e numa espiritualidade encarnada que a dinâmica paroquial deve fomentar. É no dinamismo teologal da comunhão que uma paróquia autêntica faz olhar os pobres como sacramento de Deus, como Cristologia viva. Só as comunidades cristãs capazes de lavar os pés às dores do mundo, se tornarão comunidades credíveis e capazes de provocar a sociedade, de interpelar e merecer o respeito, a confiança e a admiração de todos.
Se numa comunidade cristã falta o empenho contra a pobreza, contra a desigualdade, contra a injustiça, se não se considera o serviço da caridade como parte constitutiva da evangelização e da pastoral de toda a comunidade, o serviço falha, a evangelização converte-se em palavra vazia, a liturgia converte-se em “culto ao culto” ou “culto ao rito” como expressão de egoísmo pseudo religioso.
A vida cristã, o estilo eclesial, a programação pastoral, a própria formação catequética e litúrgica encontrarão no testemunho de amor e serviço o critério da sua autenticidade e credibilidade.
3. Comunidade como sujeito da pastoral social
Nesta perspectiva importa tornar a comunidade cristã o agente principal, de modo que, se ela não se empenha, decidida e sistematicamente, no bem-estar pessoal e comunitário de cada um dos seus membros, nega-se a si própria e não passará das “acções pontuais” para o testemunho de uma Igreja realmente comprometida com Jesus Cristo e «perita em humanidade». Poderá ter muita actividade, muita agitação social, muitas estruturas e serviços, dignos com certeza, mas curtos do ponto de vista cristão. Poderá “doutrinar” até. Mas não conseguirá “propor”, “convocar”, “seduzir”, evangelizar. Só a fé que se faz amor pode ser resposta evangelizadora, capaz de levar os homens a reconhecer e a acolher o Deus verdadeiro revelado em e por Jesus Cristo, mediante o Espírito Santo. A alternativa à pobreza não é a riqueza, mas a comunidade atenta e solidária, que dá o peixe mas, sobretudo, ensina a pescar e defende o direito de cada um o poder fazer com dignidade.
4. A verdadeira dimensão da pastoral social
A pastoral social, em obediência aos preceitos de verdadeira justiça social e da autêntica caridade, não pode ceder à tentação de reduzir a sua intervenção ao mero assistencialismo, dando uma falsa imagem da caridade eclesial. A pastoral social há-de praticar a denúncia profética, fruto da análise crítica da realidade e da descoberta das causas da injustiça e, ao mesmo tempo, há-de praticar o anúncio profético que oferece caminhos de salvação. A denúncia sem anúncio conduz ao pessimismo e à violência. O anúncio sem denúncia corre o risco de cair na ingenuidade. Uma e outro acompanham o caminho da esperança e são o eixo vertebrador da pastoral social.
5. Necessidade permanente de avaliação
As comunidades cristãs têm de fazer constantemente esta avaliação. Os responsáveis por este sector da pastoral não podem converter as instituições sócio-caritativas em simples organizações não governamentais de serviços sociais. João Paulo II chama a atenção para este perigo quando pede aos leigos que não cedam nunca à tentação de reduzir as comunidades cristãs a meras agências sociais. A comunidade cristã não pode converter-se numa zelosa gestora, eficiente e barata, dos serviços sociais que o Estado, por justiça, deveria estender a toda a população, colocando-se numa posição de inferioridade quando pede subsídios ao Estado para fazer o que ele não faz ou cedendo à tentação de ver a acção sócio-caritativa como mera suplência da possível incapacidade ou desresponsabilidade da Administração pública.
6. Só a evangelização nos motiva
Na Igreja toda a pastoral sócio-caritativa deve ser sinal e testemunho da sua acção evangelizadora. Se uns sustentam que a contribuição destas instituições à evangelização deve ser implícita, isto é, que a evangelização passa apenas pela acção caritativa e social, se outros defendem que sem anúncio explícito não há verdadeira evangelização, nós entendemos que o anúncio explícito do Evangelho também é caridade. Só esta fundamenta a dignidade da pessoa na sua raiz mais profunda, tornando-se a única força radicalmente subversiva capaz de transformar a sociedade em comunidade. Por esta razão a pastoral social não esgota o seu trabalho nas acções da assistência e promoção, mas é chamada a realizar a anúncio explícito do Evangelho como força libertadora e transformadora da ordem social estabelecida. Sem esta orientação está a fugir à sua razão de ser.
7. Os Centros Sociais e seus servidores
A acção sócio-caritativa das comunidades encontra o seu epicentro, em muitas paróquias, nos Centros Sociais Paroquiais. O nome de “Centro” que damos a esta obra social da Paróquia evidencia já a sua centralidade. Existem outras Instituições e Movimentos como as Conferências Vicentinas e outras Equipas Sócio-Caritativas. Parece, porém, oportuno reconhecer a função unificadora dos referidos Centros, sem desconsiderar essas outras Instituições, Movimentos e iniciativas na sua independência e autonomia. O Centro Social propõe-se contribuir para a promoção integral dos membros da comunidade, cooperando com os serviços públicos competentes ou com as Instituições Particulares num espírito de solidariedade humana, cristã e social, mantendo uma diversidade enorme de actividades, sociais, culturais, recreativas, educativas, com crianças, jovens, adolescentes, doentes, idosos, migrantes, agricultores...
Como Centro dinamizador da caridade, a paróquia deve comprometer-se com uma permanente angariação de fundos para que o Centro possa responder a outras situações de pobreza da comunidade que a Instituição não contempla.
Este sector terá a sua unidade de custos próprios e independentes para não confundir com a contabilidade completa e oficial a entregar na Segurança Social.
7.1. O característico dos servidores
Não pode ser, por isso, uma estrutura à parte da Paróquia, nem deveria ser dirigida e animada por pessoas que não têm sensibilidade social, vida e dinâmica eclesial. As próprias pessoas assalariadas a contratar deveriam saber, quando se candidatam, quais os princípios que regem a instituição que vão servir. E a entidade que as contrata deve ter a garantia de que as pessoas contratadas vão aceitar esses princípios. Trata-se de uma instituição da Paróquia. Se é equiparado às Instituições Particulares de Solidariedade Social, o Centro Social Paroquial tem estatutos próprios e objectivos definidos e aprovados pelo Bispo para responder às necessidades da comunidade.
Os membros da Direcção, assim como outros voluntários, testemunharão um serviço pautado pela gratuidade e alegria de servir.
7.2. O espírito que norteia o serviço
Pelo facto de se envolver em acções em que o Estado pode e deve, por justiça, colaborar, o Centro Social Paroquial é responsável, administrativamente, perante a Igreja e perante o Estado. Mas tem, sobretudo, a obrigação de se avaliar perante a comunidade pelo que faz e não faz e sobre a qualidade dos serviços que presta.
Ao Estado pode interessar o tecnicismo; à Igreja, nos Centros Sociais Paroquiais, mais do que o tecnicismo, interessa a técnica iluminada pelo amor, o modo como se faz para que o outro não sofra, ou sofra menos. Por isso, um Centro Social não pode permitir que a organização mate o espírito, que a estrutura reduza as pessoas a números, que o funcionalismo desumanize os serviços, que a falta de competência profissional, humana e cristã, de assalariados e voluntários, o desclassifique na qualidade dos serviços que presta e na dimensão evangelizadora que possui.
7.3. Algumas orientações pastorais
– Para uma adequação a uma nova filosofia social, os Estatutos dos Centros Sociais Paroquiais devem ser renovados tendo, dentro das normas jurídicas e canónicas, um cuidado especial a novos objectivos, à conjugação de sinergias e à rotatividade dos Corpos Gerentes, com mandatos certos e competência dos elementos, dentro daquela corresponsabilidade efectiva que ajude e tranquilize o Pároco.
– Como acção evangelizadora, o Pároco é sempre o Presidente e, sendo expressão da caridade da Paróquia, deve ser ele a escolher os restantes membros da Direcção, ouvindo o Conselho Pastoral ou, na falta deste, o Conselho Económico. Nesta escolha, deve ser, sempre, equacionado o princípio da separação de poderes, o que justifica a não presença de fiéis empenhados em funções políticas ou que venham a ser. É bom que os cristãos se empenhem na acção política e noutras acções dentro do exercício da cidadania em prol das comunidades, mas convém que, quando o fizerem, suspendam a sua pertença aos órgãos sociais das Instituições da Paróquia para evitar constrangimentos na sua nova acção ou mal-entendidos no seio da comunidade.
– A acção pastoral da Igreja deve confrontar-se com os novos desafios e caminhar na fidelidade à doutrina do Magistério. Isto exige, cada vez mais, formação cristã permanente. Daí que a Arquidiocese se compromete em organizar acções de formação para as Direcções dos Centros Sociais dando-lhes capacidade de resposta aos novos desafios e ajudando-os a situar-se numa matriz cristã. Desde já convocamos para o dia 17 de Maio, proximidades da Solenidade do Corpo de Deus, o primeiro encontro dos Órgãos Sociais dos Centros Sociais Paroquiais.
8. Conclusão
A caridade aparece nos Evangelhos como o sinal distintivo dos cristãos. Sabemos que a sua vivência é obrigatória e nunca a Igreja pode renunciar a este testemunho a partir da vida das pessoas ou das instituições. O cristianismo ultrapassa o âmbito dos templos e deve chegar ao quotidiano da humanidade.
Ninguém desconsidera o caminho percorrido na igualdade das pessoas e no esforço para que a vida de todos seja digna. Só que a “fome” persiste e reveste-se de novos nomes. O cristão não se contenta com números que parecem justificar um bem-estar generalizado. Sabe e nunca poderá esquecer que o “dai-lhes vós de comer” é uma ordem. Rogo para que a comunidade diocesana aceite o repto. Assim o Natal acontecerá sempre.
Solenidade de S. Geraldo, 5.12.2007
D. Jorge Ortiga, Arcebispo de Braga