“Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a paz” (Is. 52, 7).
Com estas palavras de poesia e de esperança Deus contempla e ensina-nos a apreciar a mensagem do seu enviado, do seu Anjo cuja missão consiste em anunciar a paz, trazer a boa nova (o Evangelho) e proclamar a salvação.
Aparentemente pleonásticas e redundantes, estas palavras referem a amplitude e riqueza dos conceitos necessários para entender, sem hesitações ou reduções, o significado e alcance da Encarnação do Filho de Deus, que evocamos e celebramos no Natal.
Parece que o insondável e inefável de Deus explode para a humanidade com expressões de estranheza que confundiu e impediu os homens de entender correctamente o sentido da Verdade: “o teu Deus é Rei” (Is. 52, 7); “Adorem-nO todos os Anjos de Deus” (Heb.1, 6).
De facto somos confrontados e atraídos para a contemplação do próprio mistério íntimo de Deus, mistério tão alto quanto é a nossa pequenez e humildade: “ A qual dos Anjos disse Deus alguma vez: Tu és meu Filho, Eu hoje Te gerei?” (Heb. 1, 5). Deus, que muitas vezes e de muitos modos falou antigamente pelos Profetas, falou-nos agora “nestes dias que são os últimos” (nestes dias que são os nossos), por seu Filho (cf. Heb. 1, 2).
O Apóstolo S. João chama a este Filho de Deus “o Verbo”, a Palavra, que é Deus, “fez-se carne e habitou entre nós” (Jo. 1, 14), como luz que brilha nas trevas, e como luz verdadeira que ilumina todo o homem.
Só que, sendo a luz verdadeira que ilumina todo o homem, o Verbo de Deus, Cristo, estava no mundo e o mundo, que foi feito por Ele, não O conheceu. “Veio para o que era seu e os seus não O receberam” (Jo. 1, 11).
Esta é a história trágica da humanidade, não como abstracção, mas como história dos homens que fomos e somos, por um processo colectivo de fraqueza, de contágio, de exemplaridade, de imitação e até de ironia divina, como se depreende do Evangelho: Cristo veio para o que era seu , e embora não O tenham recebido, embora O não recebamos, embora O recusemos, embora seja objecto das mais diversas teorias de crítica do conhecimento, nós somos seus (“os seus não O receberam”).
Para vencer esta “ironia” e tensão, a sociedade, com maior ou menor consciência, de forma mais ou menos intensa, vai-se entregando às tentações de um hedonismo sempre em processo de renovação, acrescentando práticas de nova exploração a práticas mais antigas nunca abandonadas. A economia e a sede do ter continuam no centro das preocupações de quantos relativizam o ser pessoal e apaziguam a consciência num relativismo moral que conduz ao horizontalismo e à amoralidade. O ateísmo da nossa cultura deu origem a um agnosticismo mais moderno e intelectualmente mais cómodo, como base de um indiferentismo que assume níveis de suposta superioridade.
Apagada a memória histórica e não havendo sedes a saciar ou questões a exigir respostas, a educação e a pedagogia limitam-se a um centrismo que desenvolve uma antropologia sem Deus e sem Cristo, aliada do nihilismo que torna amorfos os valores que dizem tradicionais. Surgem logicamente paixões e militâncias por valores que se exaltam enquanto substitutos de Deus e contrários a outros valores que são marginalizados ou esquecidos em nome de uma modernidade que se identifica, pensam, com o progresso. Há medos naturais e compreensíveis que se contrariam pelo esforço de uma suspeita solidariedade e até conivência , que resulta em campanhas organizadas para a mudança a qualquer preço.
A própria liberdade religiosa arrisca-se a entrar no âmbito dos lugares comuns, invocada e cultivada como dispensa de acreditar ou testemunhar a fé, ou como libertação para entrar nos caminhos da fantasia exótica, da criatividade ilegítima e das fugas para experiências de contemplações ou cultos importados do Oriente ou partilhados na sociedade cada vez mais cosmopolita e em perda de identidade.
E no entanto, quando damos testemunho da fé que celebramos neste tempo de Natal, não devemos esquecer as palavras do Profeta: “ O Senhor descobre o seu santo braço à vista de todas as nações e todos os confins da terra verão a salvação do nosso Deus” (Is. 52, 10).
Que o Natal do Salvador desperte em todos nós a fé que professamos. Que o Senhor nascido em Belém, feito homem e apresentado na imagem e figura terna de criança, nos atraia para a familiaridade que o acontecimento permite.
Que Ele seja “Deus connosco”, como boa nova e salvação, na abundância das graças que imploro para todos vós, para as vossas famílias, para toda a Diocese, para toda humanidade para que veja e aceite a salvação do nosso Deus.
Sé Catedral do Porto, 25 de Dezembro de 2003
D. Armindo Lopes Coelho, Bispo do Porto