Crise, discernimento e compromisso
Nota Pastoral do Conselho Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa
1. A sociedade portuguesa vive uma conjuntura difícil, que afeta a generalidade dos seus membros e particularmente aqueles muitos que se viram privados de trabalho e de condições económicas suficientes para o bem-estar próprio e dos seus.
Fruto de causas internas e externas, que sucessivas análises têm caracterizado, a presente “crise” pode e deve ser ocasião de discernimento crítico sobre o que nos trouxe aqui e de compromissos concretos sobre o modo de coletivamente nos melhorarmos.
Têm sido assacadas responsabilidades ao excessivo endividamento público e particular, ao aumento de despesa estatal e à diminuição geral das poupanças, bem como a um crescimento económico insuficiente, pouco sólido e socialmente desigual. Os financiamentos externos diminuem e exigem juros e contrapartidas dificilmente suportáveis. A economia e o investimento sofrem essas restrições do financiamento e subsistem debilidades estruturais nos diversos setores, da agricultura à indústria e aos serviços. O desemprego reduz drasticamente as condições de vida de muitas famílias e particulares, a classe média enfraquece e agudiza-se a desproporção dos rendimentos. A resposta social do Estado é dificultada pela falta de meios financeiros, com reduções previsíveis e preocupantes em diversos campos da segurança social. A ajuda internacional entretanto pedida condiciona a decisão interna e impõe restrições e prazos de árduo cumprimento.
Quer a nível estatal, quer no âmbito europeu em que nos incluímos, tentam-se respostas que, debatidas na opinião pública, na concertação social e nos competentes órgãos democráticos, visam ultrapassar estas e outras dificuldades. Mas nada se conseguirá de consistente e duradouro sem a consciencialização do que está realmente em causa e do que necessariamente terá de evoluir ou mesmo mudar na sociedade em geral e nas opções concretas de cada um.
2. Tal evolução ou mudança liga-se à consciência e à responsabilidade dos cidadãos que somos, com os valores que reconhecermos e os comportamentos em que os concretizarmos. É nesse sentido que – além de tudo o que as instituições católicas vão fazendo, por si ou em colaboração com outras, públicas ou particulares, para minorar os efeitos negativos da presente crise – partilhamos agora com os nossos concidadãos aqueles princípios sociais que fundamentalmente assumimos.
Como Igreja Católica em Portugal não nos cabem as decisões autónomas que competem ao Estado democrático, mas cabe-nos a partilha de convicções e propósitos que todos os cidadãos devem aos seus concidadãos, no corpo vivo que é a nação de nós todos. Dando a Deus o que é de Deus, não nos eximimos a dar a César o que é de César, ou seja, a nossa concidadania franca e disponível. Citemos o Compêndio da Doutrina Social da Igreja: “Os princípios permanentes da Doutrina Social da Igreja constituem os verdadeiros e próprios gonzos do ensinamento social católico: trata-se do princípio da dignidade da pessoa humana […], do bem comum, da subsidiariedade e da solidariedade” (nº 160).
A Doutrina Social da Igreja sistematiza, de há mais de um século para cá, muitas reflexões e posicionamentos sobre vários campos da sociedade e da economia, coincidindo em boa parte com o que a racionalidade humana em geral tem concluído e consignado sobre esses tópicos nas mais solenes declarações internacionais. Desta significativa coincidência podemos nós, portugueses e outros, tirar a indispensável iluminação e o maior estímulo para quanto o momento exige e não dispensa. Como “princípios” que são, devem estar sempre presentes em tudo o que se decida de concreto, a nível público ou particular, para construirmos um futuro verdadeiramente humano e não trocarmos autênticas medidas por meros expedientes.
3. A dignidade – e dignificação prática – de cada pessoa humana é o princípio e também o fim duma sociedade propriamente dita. “Sociedade”, isto é, comunhão de destino e companhia entre todos, que só em conjunto se podem realizar, sem dispensar ou ultrapassar ninguém e com particular atenção aos mais fracos e vulneráveis. É em função deles – como de todos – e da sua irredutível dignidade que a sociedade se constitui e aperfeiçoa, assim mesmo se qualificando.
Na presente conjuntura nacional, é em torno deste primeiro princípio que se devem definir e avaliar as políticas concretas, por mais exigentes que sejam. Legisladores e governantes, empresários e gestores, famílias e cidadãos, todos devemos ter em primeiríssima conta a dignidade das pessoas que somos e os outros igualmente são, sobretudo os que veem tal dignidade contrariada na prática ou obviada no futuro. Insistamos: A qualidade das decisões e das políticas afere-se prioritariamente com este critério.
4. O segundo princípio valoriza o bem comum, ou seja, o conjunto de condições e meios de toda a ordem – materiais, sociais, culturais, espirituais… – que permitam a realização plena de cada um dos membros da sociedade que justa e organicamente constituímos.
Como o primeiro, também este princípio, sendo teoricamente luminoso, é praticamente exigente. Na verdade, dá a cada um de nós, aos corpos sociais intermédios e ao Estado um objetivo concreto e avaliável, nas áreas complementares da cidadania. Ano após ano, orçamento após orçamento, programa após programa, trata-se de prever e avaliar a melhoria das condições referidas, para a valorização própria e alheia: – Temos ou previsivelmente teremos maiores possibilidades de viver física e psiquicamente bem, de constituir e manter estavelmente as famílias e a renovação geracional, de acompanhar idosos e doentes, de proporcionar escolaridade e formação permanente, de desenvolver a economia, acrescentar o emprego e garantir a ecologia, de avançar cientifica e tecnologicamente, de alargar a cultura e o espírito?
A soma acrescentada e até certo ponto verificável destes e outros itens conexos dá-nos o bem comum autêntico, que procuramos no equilíbrio geral dos seus fatores e na qualidade humana e humanizante das respetivas conquistas. E se, na atual conjuntura, o bem comum português nos induz a consciência mais clara do muito que lhe falta ou pode até recuar, também nos deve mobilizar para responder prioritariamente àquilo que de modo algum pode esperar. É este o caso fundamental do trabalho e do emprego, base indispensável de sobrevivência e dignificação humana; a sua garantia é urgente, mesmo exigindo mais criatividade e solidariedade prática para chegar a todos.
5. O terceiro princípio a ter em conta é o da subsidiariedade. Refere‑se, antes de mais, à realidade social que constituímos, enquanto seres essencialmente interdependentes. De facto, a nossa interdependência pode e deve ser pedagogicamente considerada, estimulando a contribuição de cada um para o todo social, nos diversos patamares da sociabilidade que nos define. Somos pessoas entre pessoas, familiares com familiares, empresas com empresas, instituições com instituições… Assim mesmo constituímos um todo politicamente organizado, que não pode nem deve reter nos órgãos de topo a espontaneidade e a iniciativa social.
Bem pelo contrário, os corpos superiores da sociedade devem ir em auxílio (subsidium) e estímulo dos corpos intermédios, para que estes realizem por si tudo quanto já possam ou inovem em benefício do conjunto. Do Estado – ou dos organismos internacionais – a cada família e corpo intermédio, há uma escala social a respeitar sem iludir patamar algum. E nem a escassez de recursos deve omitir tal subsidiariedade geral, pois isso redundaria em desmotivação e desistência, exatamente o contrário do que o país requer agora.
Não há mobilização democrática sem pedagogia subsidiária; não há dinamização social sem respeito e estímulo pelo que cada corpo social intermédio pode e deve fazer. Destaque-se em particular, pelas provas já dadas na presente conjuntura, a importância dos apoios familiares e das instituições particulares de solidariedade social, tão esclarecedoras do que uma sociedade pode resolver dinamicamente e tanto mais quanto for respeitado e reforçado o princípio da subsidiariedade, do topo em relação às bases do edifício social.
6. Ainda um quarto princípio se há de ter em conta, intrinsecamente complementar do precedente, ou seja, o da solidariedade. Mais uma vez, as convicções são fundamentais para garantir atitudes práticas consequentes, oficiais ou particulares
A solidariedade concretiza-se numa atitude permanente e geral de partilha: o que alguns detêm em vez dos outros é o que precisamente têm para os outros, pois toda a propriedade tem dimensão social. Nada obtemos inteiramente sós, de nada fruímos legitimamente sós. Pode dizer-se que esta é uma lei geral da vida, que agora se revela porventura mais clara e exigente. E não só no plano interpessoal, mas também entre nações e continentes.
Solidariedade que não atropela o princípio anterior da subsidiariedade, pois não confisca para o coletivo aquilo que particularmente pode ser ganho e valorizado; mas lembra constantemente ao particular – individual ou nacional que seja – que a criação é bem comum de todos e para todos e os ganhos próprios só se fruem em pleno quando também se partilham.
Na encíclica Caritas in Veritate, que há dois anos dedicou à presente situação internacional, o Papa Bento XVI resume sugestivamente a relação entre os dois princípios, com muita aplicação estatal ou particular: “O princípio da subsidiariedade há de ser mantido estritamente ligado com o princípio da solidariedade e vice-versa, porque, se a subsidiariedade sem a solidariedade decai no particularismo social, a solidariedade sem a subsidiariedade decai no assistencialismo que humilha o sujeito necessitado” (nº 58).
E, juntando estes dois princípios com o do bem comum, o Compêndio da Doutrina Social da Igreja agrega assim vários passos do magistério: “O ensinamento social da Igreja exorta a reconhecer a função social de qualquer forma de posse privada, com a clara referência às imprescindíveis consequências do bem comum. O homem não deve jamais considerar as coisas que legitimamente possui como exclusivamente suas, mas também como comuns, neste sentido: que possam ser úteis não só a si, mas também aos outros” (nº 178).
7. Esta breve recordação e partilha de princípios quis apenas oferecer à sociedade portuguesa um contributo teórico-prático para a reflexão que se impõe.
Fomos atingidos por uma grave crise que, sendo económica e social, não deixa de ser cultural e de convicções. Por isso mesmo, além da indispensável ação dos vários corpos sociais e políticos, requer aprofundamento e até mudança no que a cada um mova como expectativa ou ideal, para a vida própria e alheia. E, se o esquecimento dos princípios acima enunciados acompanhou negativamente o nosso percurso recente, a sua recuperação mais convicta dará maior definição e ânimo ao que temos de fazer agora, para um Portugal de todos e para todos.
Significa isto a consciência reforçada de que somos um todo nacional e como que um “eu” coletivo, em que nada se fará sem corresponsabilidade forte, compromisso de pessoas e grupos e solidariedade prática, para salvaguardar e acrescentar um bem verdadeiramente comum. É o Estado o primeiro órgão dinamizador do bem comum, mas é a sociedade no seu todo que o deve vivificar constantemente. Neste momento, os sacrifícios que nos são pedidos e as exigências que nos são apresentadas são de todos para todos, sem dispensar ninguém.
Aproximando‑se a celebração do Natal de Jesus, desejamos:
– agradecer e felicitar as pessoas e instituições que, no seu dia a dia ou em certas ocasiões, promovem ações de serviço aos mais necessitados;
– urgir que se converta tudo o que é idolatria do lucro, ostentação e despesismo, em estilos de vida sóbria, em que a partilha seja regra de vida e não uma exceção reservada a generosos;
– pedir que o espírito de fraternidade, a que esta quadra especialmente nos convida, tenha concretizações na ajuda a pessoas necessitadas ou a instituições que as servem;
– recordar que os cristãos são aliados naturais dos débeis e pobres e que estão ao seu lado como seus defensores, amigos e servidores, pois para quem tem fé, ajudar os outros é servir Jesus Cristo e amar o próprio Deus.
Assim, desejar «Boas Festas» será muito mais que uma frase da praxe social; será um propósito de contribuir para que todos tenham vida e vida em abundância.
Fátima, 13 de dezembro de 2011
Conferência Episcopal Portuguesa