Homilia do Bispo do Porto, D. Armindo Lopes Coelho
Poucos dias depois da sua Ordenação Episcopal na Sé do Porto, veio o Senhor D. António a esta sua freguesia celebrar Solene Pontifical nesta ainda não restaurada e mais pequena igreja paroquial, para logo a seguir receber amigos e convidados na casa da Família.
Nascido nesta freguesia de S. Martinho de Milhundos em 10 de Maio de 1906, era filho de Manuel Ferreira e de D. Albina Rosa da Jesus, e era um de nove irmãos que tinham um tio que também hoje recordamos – o Cónego Joaquim Ferreira Gomes, que foi Reitor do Seminário de Vilar.
Quem conheceu o Senhor D. António Ferreira Gomes adivinha-lhe ainda o ar de repreensão e censura para quem “perde” o tempo na ânsia de encontrar dados biográficos, traços pessoais, relações sociais e obra realizada com a finalidade de lhe elaborar o currículo. Mas nesta circunstância do centenário do seu nascimento, sentimo-nos autorizados a lembrar que frequentou os Seminários diocesanos do Porto entre 1916 e 1925, e a Pontifícia Universidade Gregoriana, de 1925 a 1928, nos Cursos de Teologia e Filosofia. Ordenado presbítero em 1928 por D. António Augusto de Castro Meireles, foi na senda e na luz deste prelado que exerceu as funções de Prefeito e Director de Disciplina no Seminário de Vilar, do qual era Reitor seu tio. Em 1936 foi nomeado Vice-Reitor do Seminário com o encargo da Reitoria, e nomeado também Cónego da Sé do Porto. Desempenhou também funções de Assistente diocesano de organismos da Acção Católica.
Presença discreta no mundo através da Acção Católica, na assiduidade diária e fiel na Sé Catedral como membro do Cabido, o Senhor Dom António encontrou no Seminário o espaço e o ambiente de uma certa plenitude que o consagrou e permitiu que o seu nome se identificasse e quase preenchesse a história do Seminário de Vilar. Foi um eminente pedagogo, não por força de obra escrita ou por virtude de teorias difundidas, mas como educador em pessoa e em atitudes. Ao dizer mais tarde que não se considerava um Bispo “edificante” (nem como empresário, mestre de obras, dono de obras), reivindicou como característica própria (olhando para o passado) a preocupação de “edificar educando” – “Sempre me quis educador”, dizia. Comentando S. Paulo e a sua doutrina sobre o “preço” da Redenção, consagrou a divisa que tantos discípulos e admiradores não se cansam de citar: “De joelhos diante de Deus, de pé diante dos homens” – Conselho de pedagogia, de conteúdo teológico, esta divisa pode considerar-se como introdução e base para tanto que, sem medo e sem reservas, disse e ensinou sobre os direitos humanos.
Reitor e Professor do Seminário e Cónego da Sé, constituíam o património biográfico de que dispunham os alunos numa cidade aparentemente calma, certamente silenciada, para com razão ficarem surpreendidos com uma notícia que não andava para nós envolvida em previsões ou boatos. Em 15 de Janeiro de 1948, poucos dias depois das Férias do Natal e de alguma estranha perturbação no Seminário (por causa de dois incêndios em curto intervalo), o Senhor Reitor foi nomeado Bispo titular de Rando e Coadjutor de Portalegre e Castelo Branco. Ordenado Bispo em 2 de Maio (festa de St.º Atanásio), seguiu para Portalegre onde sucedeu a D. Domingos Maria Frutuoso por morte deste em 6 de Julho de 1949. Pode dizer-se que em Portalegre se iniciava verdadeiramente a “vida pública” do Senhor D. António. Começávamos a ouvir falar das suas iniciativas pastorais, de homilias e outros escritos que interessavam a opinião pública, de atitudes e intervenções que o tornaram desejado no Porto, após a morte de D. Agostinho de Jesus e Sousa, até na esperança de que fosse retomada para continuidade a prática pastoral de D. António Augusto de Castro Meireles, interrompida abruptamente e adiada para prosseguir na pessoa daquele que sem publicidade era apontado como discípulo, delfim e continuador.
Em 13 de Julho de 1952 foi publicada a notícia da sua nomeação para Bispo do Porto. Tomou posse em 14 de Setembro, festa da Exaltação da Santa Cruz, e entrou solenemente na Diocese em 12 de Outubro desse ano, dia que haveria de ser consagrado a Nossa Senhora de Vandoma, padroeira da Cidade do Porto, em homenagem à história das relações do Porto com a Europa.
Os problemas da Igreja e da sociedade portuguesa foram entretanto formalizados como pontos de Agenda para um encontro com o Chefe do Governo, depois de um período eleitoral crítico. Falamos do “Caso” do Bispo do Porto, no contexto de uma crise de regime e de governo, que não foi de facto crise da Igreja, mas esteve na génese de um exílio de dez anos, interpretados como “martírio”, como “testemunho apostólico” e como testemunho pela liberdade e identidade da Igreja no seu Episcopado.
Esta interpretação é do Senhor D. António que, ao despedir-se do seu Clero e da Diocese em Assembleia de 8 de Março de 1982, afirmava: “Desde o ano de 1952 tenho estado convosco ao serviço do Povo de Deus, nesta nossa querida Igreja do Porto em testemunho pela sua liberdade cristã e eclesiástica…Hoje, ao terminar estes quase trinta anos de colaboração e convivência, é-me grato reconhecer que…as decisões que tomei, sobretudo as maiores, tomei-as em vosso nome…correspondendo também, à grande tradição da nossa Igreja do Porto”.
No Congresso agora reunido para celebrar o centenário do seu nascimento há lugar para examinar e comentar a obra, o pensamento e a acção pastoral do Senhor D. António. Mas ousaria dizer que todo o património do seu pensamento, nas áreas da Filosofia e da Teologia, da Doutrina Social, da Ética e da Politica, da análise social, dos Direitos humanos, da Sociologia e da Pastoral, diz respeito à sua missão episcopal, como magistério, como testemunho, como orientação e como inspiração intelectual. Dizer se foi ou não um Bispo político é uma questão menor, deixada à responsabilidade dos detractores e daqueles que não conseguiram compreender a missão e dever de um Bispo – Pastor, e também daqueles que se satisfazem com interpretações subjectivas e abusivas.
Lembrando que sempre se quis educador e que a Igreja fez dele Pastor, o Senhor D. António deixa-nos perceber o sentido e a intenção das suas armas de fé: “ In lumine tuo videbimus lumen” (PS. 35, 10) – “É na vossa luz que vemos a luz”. É nesta luz que celebramos o Centenário do nascimento do Senhor D. António Ferreira Gomes, por esta luz continuamos a ver, a viver e a deixar-nos orientar.
Milhundos, 9 de Maio de 2006
D. Armindo Lopes Coelho, Bispo do Porto