1. É a nós, padres, que a liturgia desta manhã é dedicada. Toca-nos o convite do Senhor Jesus Cristo a reeditarmos a missão da Sua Pessoa na libertação dos pobres e oprimidos (Lc 4, 16-21; Isaías, 61, 1-3 a. 6ª. 8b-9) Mas se a realidade do sacerdócio não vive para si mas para os outros, os leigos que se associam a este mistério de acção de graças, são a razão do que somos.
É por vós e para vós que existimos, irmãos das Forças Armadas e de Segurança, a quem saúdo e agradeço a fraternidade da presença. Não vos escolhemos, de forma explícita, no dia da nossa ordenação. Mas, à luz do Espírito de Deus, destinamo-nos a quem o bispo decidisse no seu envio. Não nos pode dominar a vontade de impor ou os objectivos do poder. Também não é nosso lema o lucro da vontade pessoal ou de benesses particulares. Os vários e enriquecedores aspectos que qualificam a identidade do ser padre, concorrem para robustecer a entrega aos irmãos. A comunhão e o serviço são mais decisivos quando os outros questionam, de forma verdadeira, a marcha das nossas atitudes e dos planos de vida.
A vocação sacerdotal é sempre uma existência feliz quando, no diálogo com a comunidade, no respeito dado e recebido, na intenção dos objectivos pastorais, porventura, na discordância alheia, prosseguimos o risco da doação, onde a alegria sepulta todos os infortúnios. Precisamos uns dos outros. Seria impensável, até por motivações de uma sociedade coesa a construir, que nos dispensássemos das carências alheias ou que os alheios se alimentassem da sua auto-suficiência.
Estou convicto de que esta é a mundividência espiritual dos actuais 47 capelães militares, evocando particularmente três dentre nós que, na Bósnia-Herzegovina, no Kosovo e no Afeganistão se encontram ao serviço de Operações Nacionais Destacadas.
2. O Senhor nos enviou a “consolar todos os aflitos, a levar o óleo da alegria em vez do traje de luto, cânticos de louvar em vez de um espírito abatido”, conforme preanunciava o Profeta Isaías.
Numa comunicação recente a capelães militares do seu país, um General europeu exortava-os nestes termos: “O General tem tanta necessidade do capelão como o soldado. O militar precisa da vossa linha de conduta. As pessoas carecem do vosso apoio, embora não ousem muitas vezes exprimi-lo”.
Se mergulhássemos na realidade histórica de haver e de ter havido sacerdotes ao serviço de Forças Armadas e de Segurança, depararíamos logo com a mobilidade e o deslocamento de forças, por ocasião de conflitos, como motivo de corresponder a crentes católicos deslocados.
Ao mesmo tempo as orientações do Magistério chamam a atenção para a responsabilidade da Igreja se tornar actuante em domínios donde deve sempre brotar a clarividência da Paz, em detrimento dos impulsos bélicos. Só após esgotados todos os recursos e observadas condições estritas, deve ser exercitado a ofensiva da defesa, em ordem a salvar os oprimidos e a restabelecer a justiça, base primacial de estabilidade.
Nessas situações de adversidade foi elaborada, pouco a pouco, uma prática pastoral, de que foram também beneficiárias as populações civis, como ocorre ainda hoje nas denominadas “Missões de Paz”.
Foi possível, nos condicionalismos do tempo, respeitar as precisões dos militares católicos no sentido de lhes ser garantida a celebração eucarística e demais sacramentos, ao mesmo tempo que lhes eram ofertadas modalidades de formação cívica e cristã. A passagem de um período de guerra a um período de acalmia enaltece-se com a conquista de justiça e da paz e o consequente desfazer das escaramuças. A Igreja saúda e rejubila com esse acontecimento. Mas, do ponto de vista de acompanhamento das Forças Armadas e de Segurança, a construção de uma linha pastoral tem sido muito mais árdua, dadas as condições sociológicas em que nos encontramos. Refiro dois aspectos. No tocante ao culto eucarístico releve-se que os militares, na sua quase totalidade, não se encontram, aos domingos, na sua unidade, tomando parte na celebração da sua comunidade paroquial. Observe-se, de passagem, que as poucas mas belas comunidades litúrgicas, de que dispomos, aos fins-de-semana, mercê de haver capelas de unidades militares, abertas ao exterior, não acolhem, na sua maioria, um número significativo de militares.
O segundo aspecto prende-se com o facto das palestras de formação cívica terem desaparecido praticamente.
Dada a diminuição de efectivos e do horário laboral, torna-se mais difícil encontrar um espaço de tempo para objectivos que implicam perspectivas de cultura religiosa, sejam, por exemplo, cursos de preparação para os sacramentos da iniciação cristã, sejam comunicações respeitantes a outras dimensões do saber. No entanto, no decurso das “Missões de Paz”, onde os militares beneficiam de muito mais tempo, essas experiências tornam-se mais fáceis de conseguir.
3. Que prioridades hoje para o nosso envio sacerdotal?
a) Que a Eucaristia seja o princípio e o fim da missão porque uma comunidade de fé nasce e desenvolve-se com a Morte e a Ressurreição do Senhor. É necessário convocar os crentes para, sempre em liberdade, constituírem uma comunidade orante. Quando nos referimos às Celebrações, nos tempos fortes de liturgia, temos a certeza de que há aderentes.
b) Que a imaginação criadora, após ter despertado experiências pastorais nunca antes conseguidas (por exemplo, a organização de um Acampamento Militar ou a vivência de uma “Via-Sacra”, no período da Quaresma, ou a partilha para os mais pobres ou uma instância de acolhimento aos novos cadetes ou a existência de uma Peregrinação a pé a Fátima, etc, etc), se exercite no descobrir e no implementar de módulos formativos. Estas expressões já se traduzem em cursos de formação humano-religiosa. Mas carece-se de, no próprio clima da unidade, mormente em sectores de cariz académico, se conquistar a legitimidade de um tempo formativo, supondo e exigindo-se sempre a competência cultural e pedagógica de quem o ministra, e a atenção, por parte do capelão, em ordem à aquisição de uma formação em terrenos de saber, específicos, complexos e tantos deles, inovadores. A Igreja, pela sua capelania militar, é só normativa para os que a aceitam, pela fé. Mesmo no tocante aos católicos, e a tantos outros, que nos traduzem o seu espírito solidário, fazemo-nos porta-vozes das nossas propostas, todas elas portadoras de efeitos humanizadores. A função evangelizadora é um desempenho cultural de maior responsabilidade com consequências na instauração de novas mentalidades e comportamentos, sem receio da análise de qualquer questão e sem preconceitos ao não aceitar soluções que chegam até nós com a auréola de conquistas de progresso. Estamos disponíveis para não fugir a questões e sempre abertos às verdadeiras razões do saber.
Uma ética formativa, independentemente de ser imposta por critérios religiosos, não pode calar-se diante da tortura e de outras barbaridades contra prisioneiros, nem de pelotões de execução sumária, nem de pena de morte, nem da purga étnica de adversários, mediante sistemas de invasão, nem da purificação e venda de armamento ou de outras espécies de aniquilamento. A cultura da morte alimenta-se destes cataclismos, não se podendo olvidar que, após os Goulag e a multidão de vítimas e desaparecidos, no Chile, na Argentina, em Cuba, no Iraque, e em tantos outros países, Guantanamo, nos dias que passam, toma parte na mesma indignidade, de que é arguido o terrorismo internacional.
Hoje a “cultura de vida” chama a atenção para uma reflexão calma, e com fundamento científico, quer se trate dos actos de aborto ou de eutanásia, do desacompanhamento de crianças e idosos, das tensões aflitivas de famílias portuguesas sem condições sociais e económicas ou da procriação medicamente assistida, dando-nos todos nós conta do desconhecimento geral nestas e noutras matérias.
Se há realizações a sublinhar hoje em Portugal, no sentido de serem fundamentais, são com certeza as da cultura da inteligência e da solidariedade.
Todos lamentamos o vazio da informação e da formação em matérias da mais primordial relevância. Como é possível discutir, nos dias que passam, o sentido e as propostas da reprodução artificial e todas as outras questões que se prendem à questão da vida, se a maioria esmagadora das pessoas não domina tais matérias nem parece estar interessada!
Os grandes temas da formação cívica, da leitura de um texto, da atenção crítica ao mundo da comunicação social, do desinteresse pela aprendizagem e pela construção da personalidade, pela vivência sã da família, pelo estudo e suas condições de investigação, pela exigência do bom gosto, quaisquer que sejam as carências em que laboramos, pelo cuidado por tudo o que nos rodeia, etc, etc, são questões abertas e humanizadoras. Humanizar instituições e instâncias de viver em Portugal, não se compadece com emocionalismos nem discursos de circunstância. É preciso criar espaço de escuta das pessoas e de tudo o que lhes dói e que lhes interessa. Este diálogo, se não existir, dispensar-nos-á de exercer missões que não têm significado.
O Senhor nos envia, hoje, a sermos testemunhas e irmãos. Prosseguiremos no serviço. Manifestaremos as vias da Felicidade. Proporemos metas e ideias. A defesa da liberdade e de condições civilizadas de viver e de amar são a bagagem do Evangelho. A Pessoa de Jesus Cristo é uma vida a actualizar!
Lisboa, Igreja da Memória, 12 de Abril de 2006
Januário Torgal Mendes Ferreira, Bispo das Forças Armadas e de Segurança