Direitos do Homem e Bento XVI D. Manuel Clemente 14 de Dezembro de 2008, às 12:22 ... D. Manuel Clemente, Bispo do Porto Uma efeméride tão significativa e irrecusável como são os sessenta anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem da Organização das Nações Unidas não podia ser esquecida pela Santa Sé, que, na pessoa de sucessivos PontÃfices, lhes tem dirigido positivos comentários. Tanto mais que, neste novo século que vivemos, a oportunidade da Declaração e a substancialidade do que ela afirma nos seus vários artigos é, de algum modo, ainda mais urgente do que o foi no inÃcio. De facto, em 1948, o rescaldo da II Guerra Mundial exigiu a afirmação pela comunidade internacional duma base sólida de Direitos do Homem que os protegesse dos enormes atropelos que tinham sofrido entre 1939 e 1945. O clima era muito propÃcio e a razão evidente, em especial para a maioria dos paÃses fundadores da Organização das Nações Unidas. Infelizmente, as seis décadas que entretanto se volveram não ficaram ilesas de outros atropelos, repetindo abusos e esquecendo valores que pareciam finalmente “universaisâ€, em termos de humanidade assegurada e geral. Para mais, uma certa rarefacção cultural que atinge o mundo “ocidental†e a partir dele se difunde tende a relativizar muito do que foi afirmando, tornando mais ténues do que pareciam ser as afirmações da Declaração de há sessenta anos. Pelo ambiente e pela prática, mesmo legislativa, de vários paÃses signatários, dizer hoje, por exemplo, que “todo o indivÃduo tem direito à vida …†(artigo 3º), ou que “a famÃlia é o elemento natural e fundamental da sociedade …†(artigo 16º), não encontrará um entendimento tão geral e unÃvoco como em 1948. É por esta razão, segundo creio, que o actual PontÃfice tem dedicado ao longo do ano algumas reflexões e comentários à Declaração Universal dos Direitos do Homem, tentando reforçar-lhe a letra e o espÃrito, qual base indispensável para o entendimento comum da humanidade que compartilhamos todos, crente ou não crentes. Logo a abrir o ano com o Dia Mundial da Paz, sob o lema “FamÃlia humana, comunidade de pazâ€, Bento XVI não se esqueceu de citar o artigo 16º da Declaração, classificando-a aliás e na generalidade do seu articulado como “uma aquisição de civilização jurÃdica de valor verdadeiramente universal†. – Uma aquisição, deveras? De facto assim a entende o Papa, desejando-a sem recuos, antes reforçada com todas as consequências, como logo adianta: “Deste modo quem, mesmo inconscientemente, combate o instituto familiar, debilita a paz na comunidade inteira, nacional e internacional, porque enfraquece aquela que é efectivamente a principal ‘agência’ de paz†. E, ao terminar esta Mensagem, Bento XVI não esquece nova alusão laudatória do texto que comemoramos. Integra-o na altura em que apareceu e projecta-o no tempo que vivemos, com palavras de clara assunção: “Há sessenta anos, a Organização das Nações Unidas tornava pública, de maneira solene, a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948-2008). Com tal documento, a famÃlia humana reagia aos horrores da II Guerra Mundial, reconhecendo a sua própria unidade assente na igual dignidade de todos os homens e pondo, no centro da convivência humana, o respeito pelos direitos fundamentais dos indivÃduos e dos povos; tratou-se de um passo decisivo no árduo e empenhativo caminho da concórdia e da paz†. As frases são eloquentes, quase grandiloquentes. E, não se podendo propriamente falar em resultados “positivos†da II Guerra Mundial, poder-se-á pelo menos admitir com o Papa que, por absoluto contraste com os males da guerra, se estabeleceram melhor os alicerces da paz. É natural que, tendo sido ele mesmo atingido pelo terrÃvel conflito na sua adolescência, o Papa Ratzinger não admita recuos nem esbatimentos na Declaração de 1948. Assim foi no princÃpio deste ano e assim voltou a ser em Abril, antes e durante a sua visita à s Nações Unidas. Poucos dias antes, Bento XVI dirigiu uma Mensagem aos participantes no seminário internacional organizado pelo PontifÃcio Conselho ‘Justiça e Paz†(11-12 de Abril). O seminário versou especificamente o tema “Desarmamento, desenvolvimento e paz. Perspectivas para um desarmamento integralâ€. E o PontÃfice não deixou de evocar o papel da Organização das Nações Unidas desde os seus começos, vendo nela a plataforma decisiva para semelhantes desideratos. É significativa a alusão que faz à sua génese, para imediatamente referir as actuais circunstâncias, que de algum modo a contrastam: “E se, depois dos horrores da segunda guerra mundial, a famÃlia humana deu prova de grande civilização, fundando a Organização das Nações Unidas, hoje a comunidade internacional parece como que confundida†. Bento XVI acompanhou o ConcÃlio Vaticano II (1962-1965), como jovem perito. ConcÃlio que apresentou a relação Igreja – Mundo em termos dinâmicos e recÃprocos, como leitura dos “sinais dos tempos†e respectiva resposta por parte dela, segundo o conhecido e reconhecido nº 4 da Constituição Pastoral Gaudium et Spes: “Para cumprir tal missão [ = continuar a obra de Cristo], a Igreja tem o dever de perscrutar incessantemente os sinais dos tempos e de os interpretar à luz do Evangelho, de tal sorte que possa responder, de um modo adequado a cada geração, à s perenes interrogações dos homens sobre o sentido da vida presente e futura e sobre a sua relação recÃproca. Importa, por conseguinte, conhecer e compreender este mundo no qual vivemos, as suas esperanças, as suas aspirações, a sua Ãndole frequentemente dramáticaâ€. À luz deste texto de 1965, compreenderemos melhor a referência actual de Bento XVI à fundação das Nações Unidas, como salto civilizacional no imediato pós-guerra. Mas também compreenderemos que, semelhante leitura dos “sinais dos tempos†leve agora o Papa a requerer “um novo humanismo, que ilumine o homem na compreensão de si mesmo e do sentido do próprio caminho na história†. Na verdade, como humanidade geral, seremos porventura menos unÃvocos agora, em termos de valores sólidos e requeridos, do que o éramos como sobreviventes do último conflito mundial. Mas, duma hipotética constatação disso mesmo não se pode passar à geral desistência do patamar alcançado há sessenta anos. Bem pelo contrário, Bento XVI insiste na necessidade de maior definição da pessoa humana, cada qual e na generalidade, garantindo-se mais e melhor na consciência e na reflexão. Querendo dizer que, se os valores se relativizam e os direitos se esfumam, mais necessário é fundamentá-los na humanidade que certamente transportamos e em motivações que verdadeiramente nos dignifiquem e afinal defendam, pessoal e colectivamente. Insistindo o Papa: “Todavia, será difÃcil encontrar uma solução para as diversas questões de natureza técnica, sem uma conversão do homem ao bem nos planos cultural, moral e espiritual†. Não há outro caminho de futuro. Apesar de decepções e contrastes, os propósitos de há seis décadas requerem aprofundamento e compromisso, não deixando alternativa nem sofrendo desistências. Bento XVI insiste, de novo em tom esperançoso, exortativo: “Então, chegou o momento de mudar o curso da história, de recuperar a confiança, de cultivar o diálogo e de alimentar a solidariedade. Estas são as nobres finalidades que inspiraram os fundadores da Organização das Nações Unidas, verdadeira e própria experiência de amizade entre os povos†. A 15 de Abril passado, Bento XVI tomou o avião rumo a Washington. Durante a viagem teve um encontro com os jornalistas que o acompanhavam e, entre outros assuntos, falou também sobre os sessenta anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Nomeadamente, valorizou o facto de nela terem confluÃdo diversas tradições culturais, “sobretudo uma antropologia que reconhece no homem um sujeito de direito precedente a todas as Instituições, com valores comuns a serem respeitados da parte de todos†. Tem sido um ponto recorrente nas intervenções do Papa – como nas dos seus predecessores – esta insistência em “valores comuns a serem respeitados da parte de todosâ€. Sobretudo na essência humanista desses valores comuns, na precedência do homem em relação a tudo o mais no campo do direito e das instituições, que se hão-de orientar precisamente para a humanidade de todos e de cada um. Embate esta insistência na resistência difusa em relação à s afirmações fortes. Por isso alude Bento XVI à confluência de “diversas tradições culturais†que defendem a prevalência do ser humano. Facilmente aà encontra a própria verdade cristã, mas por vezes prefere deter-se no entendimento comum da humanidade com um todo. Assim aconteceu, aliás, com a fundação da Organização das Nações Unidas e o sentido geral da sua actividade, nas bases que a Declaração de 1948 fixou. Bento XVI insiste: “É precisamente esta a finalidade fundamental das Nações Unidas: que salvaguardem os valores comuns da humanidade, sobre os quais está assente a convivência pacÃfica das nações: a observância e o desenvolvimento da justiça†. Reparemos que se trata de finalidade fundamental, não realidade acessória, a salvaguarda dos “valores comuns da humanidadeâ€. Na verdade, é sobre eles ou na respectiva decorrência que se estabelecem a justiça e a paz, obviamente necessitadas de condições e critérios unÃvocos. Longe de qualquer relativismo ético, insiste, parece-lhe muito importante que “o fundamento das Nações Unidas seja exactamente a ideia dos direitos humanos, dos direitos que expressam valores não negociáveis, que precedem todas as instituições e são o fundamento delas†. Como “organizaçãoâ€, as Nações Unidas só o são ou conseguem ser nessa base, dum entendimento comum e prévio sobre direitos e deveres, pessoas e apoios institucionais aos seus destinos. Valores que não se adicionam “de foraâ€, antes sobressaem “de dentro†de cada ser humano. E por assim ser com cada um também o será com todos, como o confirma no essencial a generalidade das culturas: “é importante que haja esta convergência entre as culturas que encontraram um consenso em relação ao facto que estes valores são fundamentais e estão inscritos no próprio ser Homem†. E, quase a concluir a sua entrevista durante o voo Roma – Washington, Bento XVI chega a dizer que as Nações Unidas só podem subsistir mantendo-se fiéis a tais valores, única base sólida para a construção ou reconstrução da paz. A viagem tinha também esse significado, urgido agora pelas circunstâncias polÃticas e sócio-económicas: “Renovar a consciência de que as Nações Unidas, com a sua função pacificadora, só podem trabalhar se tiverem o fundamento coral dos valores que depois se expressam em ‘direitos’ que devem ser observados por todos†. O Papa termina deixando claro: “Um dos objectivos da minha missão é confirmar este conceito essencial e actualizá-lo no que for possÃvelâ€. Não estranhemos a “actualização†aqui referida por Bento XVI, pois se refere à humanidade em que todos avançamos. Desde o século XVIII (na América e em França), as sucessivas plataformas e redacções acordadas neste domÃnio foram evoluindo com a própria sociedade a que se referiam. A primeira alusão aos direitos e à s liberdades individuais, em termos sobretudo polÃticos, foi necessariamente complementada, desde meados do século XIX, com a referência aos direitos sociais, económicos e laborais. A segunda metade do século XX valorizou a liberdade e o desenvolvimento dos povos de todo o mundo, especialmente os que saÃram da colonização europeia. Actualmente, alargam-se as declarações a outros campos, com especial atenção ao domÃnio ecológico e à sustentabilidade do planeta e dos seus recursos. Ou seja, Bento XVI tanto confirma o papel das Nações Unidas, quanto aos valores e direitos que elas declaram e cuja efectivação a requerem, como admite a actualização e o reforço da Organização nesse sentido e atendendo à marcha do tempo . Naturalmente, a intervenção mais importante do Papa sobre os Direitos Humanos, à luz da Declaração de 1948, foi o discurso que pronunciou na manhã de sexta-feira 18 de Abril durante a visita à s Nações Unidas. Insiste no referido ponto do apuramento geral de valores centrados na pessoa humana, sua dignidade e salvaguarda. Apuramento verificável em todos os continentes e culturas, quanto ao essencial, mais incoativo aqui, mais expresso noutros lugares, conforme a marcha das civilizações e das culturas. É o saldo mais precioso da humanidade vivida, a condensação maior das suas aspirações e propósitos. É a essa luz que Bento XVI aprecia a Declaração. E nestes precisos termos: “A referência à dignidade humana […] leva-nos ao tema sobre o qual somos convidados a concentrar-nos este ano, no qual se celebra o sexagésimo aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. O documento foi o resultado de uma convergência de tradições religiosas e culturais, todas motivadas pelo comum desejo de colocar a pessoa humana no centro das instituições, leis e intervenções da sociedade, e de considerar a pessoa humana essencial para o mundo da cultura, da religião e da ciência. Os direitos humanos estão cada vez mais presentes como linguagem comum e substrato ético das relações internacionais. Ao mesmo tempo, a universalidade, a indivisibilidade e a interdependência dos direitos humanos servem todas de garantias para a salvaguarda da dignidade humana†. Tudo importante neste trecho citado, para compreendermos o nexo e avaliarmos a importância da Declaração, no pensamento de Bento XVI: 1º) No documento convergem várias tradições religiosas e culturais da humanidade, convergência esta que lhe assegura a validade e objectividade gerais; 2º) Tal convergência tem o seu ponto forte e comum na centralidade da pessoa humana, institucional, social e culturalmente servida; 3º) A partir daqui tem a humanidade uma base comum de linguagem, ética e relacionamento; 4º) A dignidade humana, em qualquer circunstância e latitude, garante-se exactamente pelo conjunto integral dos direitos assim apurados e promovidos. E é tanta a importância que o Papa dá a este ponto, que não o larga sem um aprofundamento maior, para mais o consolidar face a qualquer tentativa de relativização. Radica-o na natureza das coisas, qual manifestação espontânea da humanidade de todos e de cada um, como geral e essencialmente se manifesta, antes e no fim de qualquer indagação. É uma evidência, mas evidência apurada e indispensável, mais forte do qualquer positivismo jurÃdico: “Tais direitos estão baseados na lei natural inscrita no coração do homem e presente nas diversas culturas e civilizações. Remover os direitos humanos deste contexto significaria limitar o seu âmbito e ceder a uma concepção relativista, segundo a qual o significado e a interpretação dos direitos poderia variar e a sua universalidade seria negada em nome de contextos culturais, polÃticos, sociais e até religiosos diferentes†. Bento XVI reconhece certamente o papel das culturas na definição de vários tipos particulares de humanidade, como vivência, sentimento e perspectiva. Mas ainda mais reconhecerá esta humanidade em si mesma, no que tem de comum e essencial, para que todos nos sintamos parte dela, e nisso tenhamos a maior garantia e estÃmulo para a paz e a solidariedade universais. Por isso adianta: “Contudo não se deve permitir que esta ampla variedade de pontos de vista obscureça o facto de que não só os direitos são universais, mas também o é a pessoa humana, sujeito destes direitos†. Ponto importantÃssimo, de facto, na reflexão do Papa Ratzinger, tão convicto se mostra de que os direitos em causa se firmam na ética e na racionalidade, muito mais do que na mera legalidade. Valoriza por isso a Declaração de 1948, porque ela “fortaleceu a convicção de que o respeito dos direitos humanos está radicado principalmente na justiça que não muda, sobre a qual se baseia também a força vinculante das proclamações internacionais†. O Papa não se esquece de sublinhar a contribuição positiva da religião para o fortalecimento dos direitos humanos. A parte final do seu discurso de 18 de Abril incide precisamente neste ponto. Primeiro para sublinhar tal conveniência, depois para insistir na liberdade religiosa. Sobre a contribuição dos crentes para uma sociedade respeitadora da dignidade e dos direitos da pessoa, entende que “uma visão da vida firmemente ancorada na dimensão religiosa pode ajudar a obter tais finalidades, dado que o reconhecimento do valor transcendente de cada homem e mulher favorece a conversão do coração, que leva depois a um compromisso de resistir à violência, ao terrorismo e à guerra e de promover a justiça e a paz†. Sobre a liberdade religiosa, considera-a um direito “compreendido como expressão de uma dimensão que é ao mesmo tempo individual e comunitária, uma visão que manifesta a unidade da pessoa, mesmo distinguindo claramente entre a dimensão de cidadão e a de crente†. Quando há quem alegue motivações religiosas para fenómenos tão negativos como o terrorismo e alguns dos actuais conflitos, o Papa aponta, bem pelo contrário, a vantagem social de se considerarem os outros a partir da religião, como sujeitos irrecusáveis dum destino transcendente: “Tais direitos estão baseados e modelados sobre a natureza transcendente da pessoa, que permite a homens e mulheres percorrerem o seu caminho de fé e a sua busca de Deus neste mundo. O reconhecimento desta dimensão deve ser fortalecido se quisermos apoiar a esperança da humanidade num mundo melhor, e se quisermos criar as condições para a paz, o desenvolvimento, a cooperação e a garantia dos direitos das gerações futuras†. Com este conjunto de alusões e insistências, podemos concluir com alguns pontos essenciais da apreciação papal dos direitos humanos, na comemorada herança de 1948: 1º) A Declaração Universal dos Direitos do Homem representa uma aquisição civilizacional irrecusável e empenhativa de todos. 2º) A sua universalidade advém-lhe também da confluência nela de diversas tradições culturais. 3º) Tal confluência faz-se em termos de prevalência da pessoa humana. 4º) A religião, em si mesma, por defender a transcendência de cada ser humano, contribui positivamente para o reforço destes direitos; sendo a liberdade religiosa consequência directa e indispensável de tal transcendência. Com a sua reflexão, Bento XVI associa-se assim, do modo mais próximo e estimulante, à s oportunas comemorações dos sessenta anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem. (Intervenção no Colóquio sobre os sessenta anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, na Sociedade CientÃfica da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 10 de Dezembro de 2008) Manuel Clemente Direitos humanos Share on Facebook Share on Twitter Share on Google+ ...