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Discurso do Presidente da CEP na abertura dos trabalhos da 156ª Assembleia Plenária

D. José Policarpo
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Discurso do Presidente da CEP na abertura dos trabalhos da 156ª Assembleia Plenária Senhor Núncio Apostólico Senhores Arcebispos e Bispos Senhores Presidentes da CNIR, FNIRF e FNIS Senhores Jornalistas 1. Reunimo-nos, como habitualmente, ainda em ambiente de celebração pascal. A Páscoa deste ano teve para a CEP um acrescido sentido de esperança: iniciámos a Semana Maior reunidos nas exéquias do Senhor Bispo de Viseu que o Senhor convidou a comer, já este ano, a Páscoa da Terra prometida. Unir-nos-emos a ele, na Eucaristia de um destes dias, louvando o Senhor pelo seu ministério episcopal e merecendo, com os méritos de Jesus Cristo, a purificação definitiva da sua alma. Todos sentimos como é impossível celebrar a Páscoa sem nos deixarmos devorar pelo zelo e pela urgência da salvação do mundo. A morte de Cristo, o Justo, lembrou-nos que não haverá libertação do homem e da sociedade sem uma ruptura transformadora, que vença a raiz do mal e do pecado e faça florir os gérmenes de vida, de amor, de justiça e de paz, dons da criação e que nenhum pecado destruiu. A profundidade dessa ruptura está bem significada na morte de Cristo, uma morte que não é o culminar de uma condenação, mas o início de uma nova esperança, de uma liberdade que seja caminho para o amor, de uma alegria e felicidade que sejam já as primícias da bem-aventurança. A celebração pascal impõe-se à Igreja como fonte de discernimento e de juízo, sobre si mesma e sobre a sociedade. A harmonia da felicidade e da justiça não se conseguem sorvendo sofregamente os bens que a natureza nos oferece, numa pressa de viver sem aceitar essa ruptura do sofrimento e da morte. A natureza sem redenção, mesmo no que tem de mais belo, está ferida de caducidade. E a vida encarrega-se de o mostrar dramaticamente. A euforia de felicidade imediata, própria das nossas sociedades de consumo, é continuamente manchada pelo sofrimento e pela dor, da violência, da desilusão de amor, da perda da alegria e da paz. O homem só será feliz e poderá fruir dos bens da criação, se aceitar viver essa ruptura que lhe transformará o coração e fará dele uma “nova criatura”. Isso é agora possível com a força do Espírito de Jesus ressuscitado, que dá sentido à exigência e sofrimento, torna firme a nossa fidelidade na luta pela vida, define o âmbito da missão da Igreja enviada ao mundo com essa força e essa “boa-notícia”. A Páscoa de Cristo define o sentido da missão da Igreja na sociedade. Em Sexta-Feira Santa acompanhámos o Santo Padre, a quem saudamos filialmente, na Via-Sacra, evocação do caminho da Cruz do próprio Jesus, percorrido agora na serenidade e na esperança. E na longa marcha das 14 estações, fomos abraçando os diversos sofrimentos do homem contemporâneo, com o mesmo amor com que Cristo abraçou a Sua Cruz, para se transformarem numa só cruz, a d’Ele, a única que nos permite fazer do sofrimento, um caminho para a liberdade. Ali passaram os horrores das diversas guerras que dilaceram, neste momento, a família humana e entre as quais temos dificuldade em identificar alguma que seja justa; ali ecoaram os gritos de tantas vítimas inocentes, o pânico de populações assustadas com o fenómeno irracional do terrorismo. Mas ouvimos também o sofrimento silencioso dos pobres, dos desempregados, dos doentes e dos solitários. Só a Igreja pode abraçar esse sofrimento e oferecê-lo, com o de Cristo, fazendo dele caminho de redenção. Só a Páscoa, na densidade da sua mensagem, nos pode comunicar a serenidade e a esperança, no seio deste drama humano. O mundo tem o direito de esperar da Igreja, na sua palavra e no seu testemunho, que ela seja agora, neste momento concreto, “casa da comunhão”, foco de esperança e de serenidade, determinação em lutar pelo homem e pela vida, pela sua dignidade e pelo seu direito à felicidade. 2. Ninguém estranhará que seja neste espírito pascal que abordaremos todos os assuntos que constituirão a nossa Agenda. Que ao menos na voz da Igreja sobressaia sempre esta visão sobrenatural de toda a realidade humana. Voltaremos ao tema da família. Como experiência humana, ela está no centro da busca da felicidade e do amor, torna-se alicerce do equilíbrio da sociedade, serviço da vida e escola de comunhão. Por ser entre as realidades humanas a mais decisiva, ela é o protótipo dos valores da natureza que só encontrarão a plenitude da sua verdade na ruptura da redenção. Só a Páscoa de Jesus Cristo garante à família a chave da sua plena realização, pois não se constrói um amor que dure para a eternidade, sem a força do Espírito de Cristo ressuscitado. Muitos têm tendência em considerar a doutrina da Igreja sobre a família, que o mesmo é dizer sobre a realização amorosa do homem e da mulher, como um travão retrógrado à liberdade, à consideração de novas formas de ser. Mas não é esse o espírito que nos move: escutamos todo o sofrimento dos homens e mulheres do nosso tempo, dilacerados ou desiludidos na sua busca da felicidade; perscrutamos ansiosamente os caminhos novos que o evoluir do tempo e da história anunciam para a família; não queremos esquecer, nem abandonar, todos aqueles e aquelas que, na busca da felicidade, trilharam caminhos que a Igreja não aprova. Mas estamos profundamente convencidos que só há um caminho para o homem ser feliz, e esse caminho é Jesus Cristo, o único que renova o coração e permite viver, de maneira nova, todas as coisas. A Páscoa de Jesus fundamenta uma visão do homem e da sua plenitude e não queremos, nem podemos, afastar-nos dela. 3. Só esta novidade pascal poderá iluminar outro tema da nossa Agenda: as vocações sacerdotais e outras de total consagração a Cristo e à Igreja. Nelas a vivência de Cristo ressuscitado radicaliza-se numa forma nova de viver a busca da felicidade e do amor. Em nenhuma outra experiência se vive mais a radicalidade da Páscoa, como na virgindade consagrada. Esta é uma ousadia de quem acredita na Páscoa, incompreensível para quem vive o imediato da natureza, excluindo a tal ruptura do homem novo. É impressionante como, num mundo onde todas as linguagens vão num sentido diferente, o Espírito de Deus continua a atrair os corações jovens de homens e mulheres para essa aventura da radicalidade pascal. A Igreja precisa dessas vocações, e Deus não lhas regateará. Uma pedagogia pastoral que as suscite só pode passar pelo aprofundamento da fé em Cristo Vivo, pela iniciação à oração e pela ousadia do chamamento. 4. No próximo Domingo completam-se 30 anos sobre a Revolução de Abril, acontecimento que deu início a um novo ciclo da História de Portugal como Nação. Nesse dia, há 30 anos, a Conferência Episcopal estava reunida aqui em Fátima, nesta reunião da segunda semana da Páscoa. Foi uma coincidência feliz, que permitiu aos Bispos de então, reagirem em conjunto à surpresa dos acontecimentos. Estamo-lhes gratos por esse testemunho de serenidade, confiança e discernimento pastoral. Perceberam a novidade de um futuro novo e começaram a definir o lugar da Igreja na nova ordem que se anunciava. Trinta anos depois, compete-nos a nós continuar esse discernimento sobre a especificidade da Igreja no Portugal democrático e a intuir a sua contribuição para a construção de uma sociedade mais justa e fraterna. Digo-o sem hesitações: este aniversário, a Igreja também o celebra e saúda todos aqueles e aquelas que, neste período de tempo, lutaram com generosidade e ideal para ajudarem a construir o quadro institucional que garanta o progresso, a harmonia e a paz. Nas últimas semanas, muitas têm sido as análises sobre estes trinta anos depois de Abril e algumas têm referido o papel da Igreja no Portugal democrático. Elas oscilam entre os que querem manter vivo o espírito da Revolução, como se os primeiros intentos de Abril tivessem sido relativizados pelo quadro constitucional estabelecido e os que preferem falar de evolução, que só pode significar aprofundamento contínuo da convivência democrática. No que ao papel da Igreja diz respeito, as análises situam-se também num leque muito aberto, que vai daqueles que a acusam de se ter aliado à direita e ter sido uma das forças que contrariou Abril, até aos que gostariam, no momento presente da nossa vida nacional, de a ver mais interventiva. Queremos ser fiéis à serenidade e lucidez dos nossos antecessores neste ministério. Com a mesma clareza que assumimos que nós, os Pastores, não nos imiscuímos na política partidária, desafiamos os fiéis leigos a empenharem-se, com a lucidez e o espírito pascal, em todas as frentes onde se decida a construção de um Portugal democrático com qualidade, com generosidade, com a lucidez das opções claras e da definição de objectivos válidos. Através deles a Igreja tem de estar na política, porque quer participar na construção de um Portugal melhor. A nós os Pastores pertence-nos iluminá-los com a doutrina da Igreja acerca das grandes questões da sociedade; temo-lo feito e continuaremos a fazê-lo. Como sempre, talvez mais do que nunca, a intervenção doutrinal é um elemento importante no processo dinâmico e transformador que deve animar sempre um corpo vivo, como o é uma sociedade organizada. O quadro democrático, em que o sentir colectivo decide do quadro institucional e inspira as leis, parece-nos indiscutível. Mas para que não se caia na rotina de mecanismos democráticos formais, é preciso enriquecer o nosso conviver com a educação, o alargar o acesso à cultura, aprofundar o discernimento lúcido dos problemas e das soluções, criar consensos para aquelas que não podem esperar ou ficar sujeitas à dialéctica da luta política. Queremos participar, com os meios ao nosso alcance, para o aprofundamento contínuo da nossa vida comum, em democracia. A Igreja não é de esquerda, nem de direita; os cristãos, individualmente, podem sê-lo. Mas reconheço claramente que tanto à esquerda, como à direita, há modelos de sociedade que não cabem no quadro da doutrina social da Igreja. 5. O Espírito de Deus, graça pascal por excelência, é um Espírito transformador. Que Ele inspire todos aqueles que querem empenhar-se na construção de uma sociedade justa, harmónica e fraterna, e nos inspire a nós para a lucidez da nossa missão. Fátima, 19 de Abril de 2004 † JOSÉ, Cardeal-Patriarca Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa


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