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«Educar, uma questão de liberdade»

Etienne Verhack
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Conferência de Etienne Verhack sobre Liberdade de ensino na Europa - factos, tendências e desafios

Tenho o maior gosto em estar aqui convosco, esperando poder contribuir para a reflexão e debate sobre uma problemática bem actual: A Liberdade de Ensino. Não sou jurista de formação, porém vou partilhar convosco alguns factos, tendências e desafios com os quais nos confrontamos actualmente. Fá-lo-ei, na medida do possível, na língua de Camões pedindo-vos antecipadamente desculpa por eventuais desvios da pronúncia lusitana. I. DIFERENTES MODELOS DE POLÍTICA EDUCATIVA Quando estudamos as políticas educativas da e na Europa, pode constatar-se uma diversidade de abordagens. Os sistemas democráticos europeus, que partilham os mesmos princípios, concretizam a liberdade de ensino de formas muito diversas. Isso explica-se em larga medida pelos diferentes desenvolvimentos históricos. 1.No Estado jacobino centralizador, o controlo central sobre o ensino está legitimado a partir do princípio que o Estado deve assegurar uma neutralidade ideológica e religiosa, a unidade da nação e a uniformidade do serviço administrativo. Um tal controlo é entendido como uma condição essencial para garantir a igualdade das ofertas de ensino e, por conseguinte, dos procedimentos, das estruturas escolares e dos conteúdos dos currículos. Este modelo está, historicamente, presente em França, em Espanha, na Suécia e em Itália. 2.No modelo do Estado central e da diversidade das iniciativas»(2), o governo exerce um controlo rígido e centralizador nas estruturas de ensino, no currículo principal e nas condições relacionadas com a profissão docente, mas aceita a existência de redes de ensino que não lhe pertencem. O direito que estas redes ou estabelecimentos escolares individuais têm de recrutar docentes e de se pronunciarem na elaboração dos currículos continua a ser uma das características cruciais deste tipo de modelo. Isto reflecte o pluralismo da sociedade e pode ser o espelho dos diferentes grupos éticos e religiosos. Este modelo é característico da Bélgica, da Holanda e da Alemanha, com uma variante na Irlanda. 3.O modelo do Estado não-interveniente e facilitador, muitas vezes associado à política de ensino descentralizado da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, reflecte discussões históricas relacionadas com o equilíbrio entre o poder central e os poderes locais. O ensino, neste caso, deve ser especialmente dirigido pelas autoridades locais e o papel do Estado não deve exceder a definição de condições mínimas. «Espera-se que o ensino seja a expressão da democracia local e não, por conseguinte, uma interpretação uniforme da identidade nacional». Estes modelos, todavia, não coabitam facilmente com a mudança de circunstâncias. A Inglaterra e o País de Gales têm um currículo nacional e exames correspondentes. Por outro lado, alguns dos sistemas mais centralizados estão activamente implicados num processo que privilegia a tomada de decisão ao nível do próprio estabelecimento escolar. Apesar de todos estes desenvolvimentos, as decisões tomadas ao nível dos estabelecimentos escolares são geralmente em maior número no ensino privado que no ensino público, dependendo dos países e do grau de ensino. Embora os diferentes países possuam abordagens muito diversificadas em matéria de gestão do sistema escolar – estando aí incluídas as escolas não estatais – , existem certos pontos comuns que convém sublinhar: ·A liberdade de fundar e de dirigir um estabelecimento escolar sem interferir (não obstante qualquer outro regulamento) na filosofia particular (tipicamente religiosa) que define a escola e o direito dos pais de escolherem os estabelecimentos escolares que reunam certos padrões comuns em matéria de qualidade educativa; ·A neutralidade filosófica das escolas estatais. Com efeito, as diferenças mais marcantes notam-se no grau, segundo o qual o financiamento público é concedido às escolas privadas de reconhecido de interesse público. Estas políticas merecem ser reconhecidas como «princípios internacionais constitucionais» entre as «tradições comuns da cultura democrática ocidental», às quais se referem o Tratado da União Europeia e o Tratado de Nice. A liberdade de ensino não é, simplesmente, a permissão ou a defesa de alternativas à escola estatal. Num determinado número de países, tornou-se evidente para os legisladores e outros responsáveis políticos que a inevitável transmissão de valores pelas escolas estatais requer que os pais das crianças estejam envolvidos nas decisões relacionadas com o currículo e com as respectivas pedagogias. O facto dos pais nem sempre poderem escolher a escola estatal que os seus educandos frequentam (contrariamente aos pais dos alunos das escolas privadas) torna ainda mais necessário o seu envolvimento naquilo que a escola ensina e na forma como o faz. II. O PAPEL DA LEGISLAÇÃO A liberdade de ensino é a liberdade menos amada entre todas as formas de liberdade de expressão. As razões são claras. Nas sociedades modernas, é típico que o Estado tenha apenas um papel de apoio em matéria de artes ou de comunicação social, contudo deve ser ele o garante de tudo o que envolve a instrução. Na maior parte das democracias ocidentais, a partir de meados do século XIX (e bem antes em alguns países), o Estado esteve, intimamente, envolvido no sistema educativo. Mas não foi simples definir, com precisão, qual o papel adequado do Estado num domínio que implica, de uma forma tão estrita, a formação dos valores e das abordagens da compreensão do mundo. Será oportuno que o Estado forme os seus próprios cidadãos ou será isto, na sua essência, contrário aos princípios da democracia? Do mesmo modo, não é fácil especificar as relações que o Estado deve ter com as numerosas iniciativas educativas da sociedade civil ou com os desejos dos encarregados de educação. Estas questões não são, de forma alguma, abstractas ou supérfluas; elas são a expressão de um conflito político recorrente em bastantes países. III. OS PRINCÍPIOS DA LIBERDADE O direito à liberdade de ensino está intimamente ligado com o princípio da liberdade, um valor essencial da democracia e uma condição indispensável ao desenvolvimento de homens e mulheres capazes de construir e manter uma sociedade livre e democrática. A liberdade em si, sem uma expressão institucional, torna-se um princípio vazio. A liberdade de ensino é um dos meios pelos quais uma sociedade constrói instituições locais, capazes de suscitar o compromisso dos cidadãos, especialmente dos pais. Cria também um espaço social para aí desenvolver instituições nas quais as crianças, tendo como base uma filosofia de vida coerente, podem ser educadas de forma que, numa sociedade pluralista, nenhum governo democrático imponha um único modelo. Exercendo o seu direito à diferença, as escolas não-estatais, bem como as escolas estatais verdadeiramente autónomas, oferecem ao nível local uma oportunidade de exercer outros direitos essenciais, tais como a liberdade de consciência, a livre prática da religião, a liberdade de associação e a liberdade de expressão. Numa sociedade livre, tendo em consideração o pluralismo cultural e filosófico, é necessária uma resposta e uma oferta de escolas com diferentes projectos educativos. Uma das razões pelas quais a liberdade de ensino não é uma liberdade «evidente» – como os outros direitos fundamentais – é que a maior parte das escolas não-estatais estão alicerçadas em confissões ou organizações religiosas. Na maioria dos países, é aceite que o ensino inclua, também, o facto de transmitir convicções e valores assentes em fundamentos religiosos ou filosóficos. Os membros da elite laica, que têm uma influência desproporcionada sobre a política pública, caracterizam-se, habitualmente, por atitudes negativas em relação à influência da religião tradicional. Desde sempre que existe a tentação de fazer do próprio Estado a base de uma ideologia a inculcar através das escolas estatais. A liberdade de ensino constitui uma ameaça a este projecto. Embora as famílias transmitam, especificamente, às crianças caminhos próprios para a compreensão do mundo, que estão, habitualmente, assentes numa religião, contudo, isto não significa que a influência da família seja contrária ao desenvolvimento dos valores democráticos. IV. O PRINCÍPIO DO PLURALISMO Em diversos países, a defesa do sector privado, em matéria de ensino, parece estar, directamente, relacionada com as opções políticas formais. A concepção socialista dos direitos ao ensino é, historicamente, entendida como hostil ao pluralismo externo, defendendo que a diversidade e a liberdade devem ser exercidas no próprio seio das escolas e não entre diferentes escolas. Na sua essência, existia um conflito polarizado entre, por um lado, a opção por um sistema público uniforme e neutro, controlado por um governo «único e laico» e, por outro, a opção por um pluralismo externo e pela escolha dos pais entre escolas diferentes, a partir de um sistema diversificado, que é, principalmente,de inspiração religiosa. Em grande medida, este eterno debate culmina numa discordância sobre a definição do «ensino público». Uma vez que fornecem um serviço público à sociedade, para o qual é muitas vezes acordado pelo governo um apoio financeiro, as escolas não-estatais poderiam ser consideradas como parte do sistema de ensino público (mas não «oficial»), agindo ao serviço do interesse público. Isto nem sempre acontece quando estas escolas preenchem certas lacunas do sistema escolar do Estado. Na generalidade, as escolas «reconhecidas» exercem uma função pública e deveriam, portanto, ser definidas, tal como foi mencionado mais acima, como exemplo «de utilidade pública» e legalmente como «serviço público». Certos países delineiam de outro modo os parâmetros do «ensino público». A maior parte das escolas católicas de Inglaterra faz parte do sistema «público», enquanto que, na Holanda ou na Bélgica, recebendo o mesmo subsídio do Estado, são consideradas «privadas». Quando existe entre os principais grupos políticos um consenso de longa data favorável à escolha da escola pelos pais, tal como acontece em determinados países da Europa, pode contar-se com um apoio geral das escolas não-governamentais. Em determinados países, isto leva ao reconhecimento total da diversidade do ensino e a uma tolerância positiva face aos diferentes tipos de iniciativas pedagógicas (e, em certa medida, à autonomia das escolas) como na Dinamarca, ou a mais uniformidade e a uma organização central, mais frequentemente quando a Igreja católica detém uma presença predominante (Irlanda). Uma outra questão é saber se a liberdade de ensino deve ser defendida para as escolas que se destinam às minorias culturais, religiosas ou linguísticas. A Dinamarca é um bom exemplo para mostrar como a «neutralidade» pode também ser definida como estímulo para apoiar, de forma positiva e igual, diferentes opções pedagógicas, com um lugar muito especial concedido à escolha dos pais. É certo que a existência de escolas não-estatais em numerosos países teve um impacto frutuoso na «liberalização» das políticas de ensino, na inovação e na experimentação em matéria educativas, embora esteja dependente, em larga medida, da obtenção de fundos públicos. Quanto mais as escolas independentes têm, diariamente, de lutar pela sua sobrevivência, maior é a pressão e preocupação com a qualidade e a fortiori com a renovação pedagógica a que estão sujeitas. V. ALGUNS MITOS Existe uma falsa hipótese comum segundo a qual as escolas não-estatais gozam sempre de uma autonomia invejável em relação aos controlos externos, o que lhes permite oferecer um ensino de uma maior qualidade do que aquele que é dispensado nas escolas estatais, concedendo um lugar destacável à inovação e à experimentação. A realidade é mais matizada; muitas vezes, as escolas não-estatais fazem parte de um sistema de ensino hierárquico e burocrático, que as trata com a mesma rigidez como trata as escolas estatais equivalentes. Em certos países (por exemplo, na Áustria, na Bélgica, em Espanha, em França, na Holanda e em Portugal), a legislação sobre o ensino é o reflexo de disputas políticas que se alastram há numerosas décadas; o resultado destes compromissos obtidos de uma forma tão difícil faz com que o quadro legislativo tenha muitas vezes tendência a ser mais rígido, inflexível e pormenorizado, tanto para as escolas estatais como para as privadas. No entanto, nos anos 90 apareceu nestes países uma tendência para deixar de considerar o controlo central como necessário ou útil, conduzindo, assim, a um movimento geral de descentralização das tomadas de decisão ao nível das instituições ou comunidades locais de ensino. Acredita-se cada vez mais que o próprio contexto da escola, a sua missão e a sua cultura, a sua organização autónoma e a sua capacidade de auto-avaliação são elementos extremamente importantes na qualidade da escola. Apesar de – mas não contrariamente a – esta tendência, a maior parte dos sistemas ocidentais de ensino tem uma forte tradição e uma convicção sempre muito firme da necessidade de um regulamento central da qualidade daquilo que os alunos aprendem na escola. Enquanto os padrões de qualidade continuam a ser da competência do Estado, há, no entanto, uma tendência clara para dar às escolas individuais – e, de uma certa forma, às escolas estatais – autoridade sobre as questões de pessoal. Isto é considerado como essencial a uma liberdade de ensino sensata, uma vez que a escolha real só pode existir se as escolas puderem estabelecer e manter um carácter distinto através da selecção dos professores e outro pessoal. Em última análise, há duas formas de se tornarem «um sucesso» para as escolas não-estatais – sem a ajuda do poder e dos recursos do Estado. A primeira assenta no serviço a uma clientela exclusiva, mais precisamente fazendo apelo a alunos de famílias desafogadas e que não procuram o auxílio de fundos do governo. A segunda assenta no facto de fornecer um currículo de alta qualidade e claramente orientado para os valores. Haverá sempre escolas do primeiro tipo, dirigindo-se aos pais, cuja preocupação principal é a exclusividade social, mas é importante sublinhar que a grande maioria das escolas não-estatais na Europa não é socialmente selectiva e procura distinguir-se através daquilo que oferece ao nível educativo. É importante para os pais que os seus filhos frequentem uma escola cujos diplomas sejam publicamente reconhecidos; é também importante para muitos deles o facto de não terem de pagar (ou de não deverem pagar demasiado caro) pela escolaridade dos seus filhos. As escolas não-estatais devem aceitar os modelos nacionais de gestão e de controlo de qualidade e, também frequentemente, uma determinada forma de currículo de base, para beneficiarem, por sua vez, do reconhecimento dos diplomas e da subvenção. Isso pode levar a uma diminuição da liberdade pedagógica e mesmo a uma certa derrota da sua missão específica. Um elemento central das escolas não-estatais continua a ser, no entanto, uma abordagem educativa própria e objectivos filosóficos e éticos específicos que lhes assegurem a continuidade da distinção pedagógica. Ao esforçarem-se por alcançar os seus objectivos religiosos, filosóficos ou ideológicos, as escolas independentes partilham determinados objectivos comuns às escolas estatais, no que diz respeito nomeadamente às particularidades da sociedade pluralista moderna e à diversidade de opiniões. Mesmo que sigam políticas de admissão baseadas na confissão religiosa do aluno, as escolas podem estar sujeitas a uma certa limitação da sua liberdade neste domínio, e podem ser obrigadas a informar os pais sobre os procedimentos de admissão e a explicar todas as decisões. As escolas religiosas estão habitualmente abertas a um grande número de famílias, exteriores à sua comunidade de fé, desde que estas aceitem a filosofia educativa da escola. Assim, as escolas confessionais irlandesas acolhem alunos de diferentes convicções, sob a condição de uma «cláusula de consciência» – própria do sistema estatal – que permite que não recebam instrução religiosa. VI. ALGUMAS CONTROVÉRSIAS 1. Distinção público / privado A primeira controvérsia provém dos próprios conceitos de escolas independentes, livres, não-governamentais e privadas. Todos estes termos adquirem diferentes perspectivas. De uma perspectiva histórica, as escolas «públicas» em muitas democracias ocidentais foram organizadas pelas Igrejas, tendo sido sustentadas por fundos públicos, enquanto que as «privadas» foram organizadas por indivíduos com um objectivo lucrativo, tendo sido sustentadas pelo pagamento de mensalidades. Até mesmo a distinção entre privado e público já não é verdadeiramente correcta. Afinal, as escolas não-estatais oferecem um serviço público, enquanto que as escolas estatais agem cada vez mais como se fossem instituições privadas e, em alguns países, são parcialmente privatizadas (por exemplo, as «grant-maintained schools» em Inglaterra, há uns dez anos). As leis sobre o ensino em certos países tendem a definir um estatuto uniforme para o pessoal escolar, quer trabalhe numa escola, legalmente, pública ou privada. 2. Financiamento Na maior parte dos casos, o pluralismo é invocado expressamente como a razão de um financiamento público às escolas não-estatais. A maioria dos sistemas na União Europeia, por exemplo, adopta este princípio como base, mas o modo, segundo o qual é aplicado na prática é, normalmente, deixado ao critério de cada Estado. O procedimento vai no sentido de que os fundos concedidos às escolas não-estatais devem ser suficientes de modo a permitir a sua subsistência sem recurso a receitas privadas. Um financiamento suficiente deve ser acordado pelo governo para assegurar o exercício realista da liberdade de ensino. O financiamento destas escolas é, em todos os casos, uma questão inevitável se (talvez mesmo constitucionalmente) a garantia da livre escolha de escola for essencial a uma sociedade e a um sistema político democráticos e se o Estado não for obrigado a torná-lo possível. Isto poderia ser considerado como um teste à credibilidade de um sistema democrático. A subvenção pública de uma escola não-estatal não a transforma numa escola estatal, submetendo, todavia, a regras de responsabilidade, de auditoria, de relatórios financeiros e de informação pública. A Constituição da Holanda tem o cuidado de utilizar um termo próprio referido à natureza específica da «subvenção» das escolas privadas, o conceito de bekostiging (custeamento), condicionando-o a um «número de exigências fundamentais de liberdade, qualidade, acessibilidade e igualdade». Parece que, normalmente, a concessão de um apoio financeiro conduz sempre a um determinado nível de controlo. O que será provavelmente menos bem aceite é o facto de o Estado utilizar a concessão de subvenção como um meio de pressão sobre as escolas não-estatais, afim de desenvolver as suas políticas e, por conseguinte, de abandonar a sua própria missão. Na maior parte dos países, um tal financiamento baseia-se mais nas condições de acesso dos alunos do que nas exigências de qualidade à saída (o que será mais compatível com a liberdade, a autonomia e a responsabilidade). Noutros termos, o governo interessa-se mais por aquilo que as escolas fazem do que pelos seus resultados educativos. 3. Igualdade de oportunidades Outra controvérsia constante emana do problema da composição da população escolar; resta saber se esta é selectiva ou inclusiva. Tal como as escolas estatais, as escolas independentes devem gerir o conjunto das questões educativas debatidas no seio das respectivas sociedades, incluindo neste debate temas como a autoridade regional e local em expansão nas escolas (que não pode resultar num acréscimo da autonomia das escolas!), a participação democrática na gestão, a garantia de qualidade, a lealdade do pessoal escolar, os direitos fundamentais dos docentes e dos alunos, bem como o impacto geral da secularização e do pluralismo cultural. Uma questão particularmente sensível é a de saber como conciliar a escolha dos pais e a liberdade de ensino com o princípio da igualdade de oportunidades. Os dados empíricos disponíveis sobre a estratificação das escolas não-estatais não são conclusivos. Parece que todas as classes sociais estão presentes, simultaneamente, nas escolas estatais e não-estatais. Uma diferenciação depende, efectivamente, do facto da escola poder contar com um financiamento público de modo a permitir que famílias de baixos rendimentos nela inscrevam os seus filhos, ou que ela pratique mensalidades elevadas para suportar os seus encargos de funcionamento. Um sistema objectivo de distribuição dos meios financeiros, baseado nas exigências qualitativas similares em relação às escolas estatais e não-estatais, poderia ser encarado como uma medida apropriada para a realização de uma igualdade de oportunidades educativas. Uma observação interessante de uma democracia multi-racial chama a atenção para o facto do «debate sobre a escola privada na África do Sul estar fortemente relacionado com a questão racial e de segregação. Paradoxalmente, as escolas privadas foram as primeiras a promover e a estabelecer um ensino não-racial». 4. Igreja e Estado Durante os dois últimos séculos, dependendo todavia dos diferentes países, o ensino estava maioritariamente nas mãos das Igrejas e ainda hoje, em certos países europeus, o departamento responsável pela educação se designa «Ministério da Educação e dos Assuntos Religiosos». Praticamente em todos os países, a legislação sobre o ensino é o resultado de interligações complexas entre o Estado e a Igreja (ou as Igrejas). Os países sob «autoridade» ou influência católica seguem modelos diferentes dos países de tradição protestante. Nos países escandinavos (à excepção da Dinamarca), o sistema de ensino assente na Igreja parece estar de acordo com a tradição «social corporativa» que promove mais a uniformidade do que a variedade (Noruega) ou que «municipaliza» o sector independente (Suécia, Finlândia). A aplicação da escolha parental no seio do sector governamental, que inclui a educação religiosa, ou o funcionamento de escolas confessionais no quadro do sistema do Estado, é característico de alguns países que não concedem fundos públicos às escolas não-estatais. Assim, na Inglaterra e na Holanda, por exemplo, as escolas católicas, protestantes e outras fazem parte do sistema público, mas as escolas não-estatais não recebem qualquer financiamento estatal. Na verdade, em relação a todas as discussões (especialmente em França) relacionadas com o fosso que separa a Igreja e o Estado, «o conceito de separação da Igreja e do Estado parece estar vazio. Pode ser utilizado tanto para justificar um dever de apoio das escolas religiosas como para proscrever todo o apoio deste tipo». VII. A LIBERDADE DE ENSINO E O DIREITO EUROPEU A. O Tratado de Maastricht No que respeito ao ensino geral, a competência dos Órgãos da União Europeia está limitada pelo Tratado de Maastricht (art. 149,4 ex 126) a medidas de encorajamento e a recomendações. A organização e o conteúdo do ensino continuam a ser matéria da competência dos Estados membros. No entanto, no que respeita à educação existe uma variedade bastante grande de instrumentos comunitários, dado que os ministros dos Estados membros pautam a sua intervenção de acordo com resoluções e conclusões, relatórios, livros brancos, planos de acção e memorandos. Algumas destas iniciativas, não estão previstas no Tratado, levantaram dificuldades em relação ao respeito do princípio de subsidiariedade. Um exemplo disso é o plano de acção sobre o «e-learning» que foi posto em acção sem qualquer controlo. B. A Carta e o projecto de Constituição No projecto do «Tratado instituindo uma Constituição para a Europa» foi integrada a «Carta dos direitos fundamentais da União», proclamada pelo Conselho Europeu em Dezembro de 2000. Estes textos referem-se a dois pontos importantes no que nos diz respeito. (1) No artigo II-14 encontra-se o «direito à educação»: · Todas as pessoas têm direito à educação, bem como ao acesso à formação profissional e contínua. · Este direito comporta a faculdade de frequentar gratuitamente o ensino obrigatório. · A liberdade de criar estabelecimentos de ensino, no respeito pelos princípios democráticos, bem como o direito dos pais a assegurarem a educação dos seus filhos de acordo com as suas convicções religiosas, filosóficas e pedagógicas, são respeitados segundo as leis nacionais que regem o seu exercício. (2) Um outro artigo importante da Constituição Europeia é o artigo 51 que se refere ao estatuto das Igrejas e das Organizações não-confessionais. Embora o direito nacional que regula as relações entre a Igreja e o Estado seja mantido, o artigo 51 da Constituição garante um diálogo. O artigo diz: · A União respeita e não julga prematuramente o estatuto do qual beneficiam, em virtude do direito nacional, as igrejas e as associações ou comunidades religiosas nos Estados membros. · A União respeita igualmente o estatuto das organizações filosóficas e não-confessionais. · Reconhecendo a sua identidade e a sua contribuição específica, a União mantém um diálogo aberto, transparente e regular com estas igrejas e organizações. C. Questões relacionadas com o direito europeu Em relação às questões relacionadas com o direito europeu, nota-se que estas surgem, em dois níveis, para o direito privado das escolas católicas: O primeiro nível refere-se ao conceito legal de educação. No que diz respeito a este conceito, houve uma mudança de paradigma no próprio interior do universo da escola católica na medida em que o centro de gravidade desta escola se deslocou. Este centro já não se compreende em primeiro lugar como a escola da Igreja ou de uma Instituição da Igreja, tal como uma ordem religiosa, mas sim como uma «comunidade cristã de educação» à qual pertencem os gestores eclesiásticos, os pais, os professores, os alunos e o pessoal não-docente. É sobretudo a componente dos pais que foi revalorizada no direito escolar canónico depois da Declaração «Gravissimum educationis». O segundo nível, onde surgem questões, é o do direito europeu em matéria de educação. Na maior parte dos países membros da União Europeia, o direito à liberdade de criação de escolas é garantido pela Constituição e pertence, por isso, às tradições constitucionais comuns, segundo o artigo 6,2 do Tratado. Na Constituição europeia, verifica-se uma relação directa entre a liberdade da escola e os direito dos pais. O artigo II-14,3 diz: «A liberdade de criar estabelecimentos de ensino, no respeito dos princípios democráticos, bem como o direito dos pais de assegurar a educação dos seus filhos de acordo com as suas convicções religiosas, filosóficas e pedagógicas são respeitados segundo as leis nacionais que regem o seu exercício.» Daqui resulta a garantia de um programa de formação próprio, embora esta liberdade seja muito reduzida na maior parte dos países membros fruto aos condicionalismos estritos exigidos para o financiamento das escolas privadas por parte do Estado. D. Algumas tendências mais ou menos recentes Não posso deixar de salientar, também, algumas tendências mais ou menos recentes que considero de grande relevância para as escolas privadas: 1. A DECLARAÇÃO DE BOLONHA, de 1999, suscitou a criação de um espaço europeu do ensino superior através da: · adopção de um sistema de diplomas facilmente legíveis e análogos. · implementação de um sistema assente em dois cursos, antes e após a licenciatura. Para aceder ao segundo curso o formando necessitará de ter concluído o primeiro, com uma duração mínima de três anos. Os diplomas entregues, no final do primeiro curso, corresponderão a um nível de qualificação adequado para a inserção no mercado de trabalho europeu. O segundo curso deverá conduzir ao mestrado e/ou ao doutoramento em muitos países europeus. · criação de um sistema de créditos – como o sistema ECTS – como meio apropriado para promover a mobilidade dos estudantes. · promoção da mobilidade ultrapassando os obstáculos à livre circulação. · fomento da cooperação europeia em matéria de avaliação da qualidade, na perspectiva da elaboração de critérios e de metodologias comparáveis. · promoção da dimensão europeia necessária no ensino superior, nomeadamente no que respeita à elaboração de programas de estudo, à cooperação entre estabelecimentos de ensino, aos programas de mobilidade e aos programas integrados de estudo, de formação e de investigação. É evidente que estas medidas exercerão e exercem já uma influência na oferta de estudos do ensino secundário e nos conteúdos ministrados para garantir a transição mais fácil do ensino secundário para o ensino superior. 2. A tendência, generalizada na Europa, de ver os estabelecimentos escolares lançarem-se em LUTAS CONCORRENCIAIS facilita a utilização de conceitos económicos no domínio da educação. Constatamos, com efeito, que a educação entrou na lista dos serviços transfronteiriços segundo o Acordo Geral sobre o Comércio dos Serviços (GATS, em inglês). Verificamos, igualmente, um aumento dos esforços das próprias escolas para fazerem funraising assim como um aumento da participação nas despesas pedidas aos pais. VIII. ALGUNS NOVOS DESAFIOS NA EUROPA A maior parte dos sistemas educativos mostram que tanto as escolas não-estatais como o próprio Estado podem aproveitar a responsabilidade partilhada para organizar um sistema educativo eficaz, permitindo que as escolas livres detenham uma parte da autonomia de que necessitam para exprimir a sua identidade e o seu carácter próprio. Na maior parte dos países da Europa, desenham-se novos desafios e colocam-se novas questões. 1. O problema das escolas «negras» e «brancas» Um determinado número de países, como a Bélgica e a Holanda, depararam-se com o desenvolvimento de escolas ditas «brancas» e «negras». Trata-se de um fenómeno que surge quando alunos não-europeus não são distribuídos de uma forma proporcional no seio do sistema escolar, concentrando-se assim num número relativamente reduzido de escolas. O que se passa nestes casos é o fenómeno denominado «fuga branca»: os pais de raça branca retiram os seus filhos destas escolas que possuem um elevado número de alunos imigrantes. Vemos, assim, que os pais podem exercer o seu direito de escolha da escola para os filhos – direito que fora estabelecido, afim de respeitar as diferenças religiosas, como meio de abandonar as escolas que eles entendam como «negras» e, por conseguinte, de nível de ensino inferior. Será necessária uma investigação mais aprofundada para conhecer verdadeiramente todas as motivações dos pais que gozam do direito efectivo de escolha da escola. Propuseram-se diferentes soluções para esta evolução. Uma política de distribuição que consistiria em convidar as diferentes partes a assinarem um acordo, tal como a fixação de «quota» para as crianças de origem estrangeira. Mas o problema continua: tratar-se-ia aqui mais de uma política assente na origem étnica do aluno do que assente em bases religiosas ou filosóficas da escola. Um tal acordo seria, por conseguinte, contrário à proibição da discriminação racial, protegida, entre outras, pela Convenção Internacional para a Erradicação de Todas as Formas de Discriminação Racial. Outra solução consistiria em obrigar as escolas não-estatais a aceitarem todos os alunos que desejassem inscrever-se, sem ter em conta a sua origem étnica. Esta solução não estaria, portanto, assente na livre cooperação das escolas estatais e não-estatais, criando simplesmente uma obrigação para estas últimas de inscreverem todos os alunos. Mas esta legislação seria então contrária à Constituição holandesa, artigo 23, que protege explicitamente a liberdade das escolas não-estatais de escolherem a sua base religiosa ou filosófica e de gerirem estas escolas sobre esta base. Esta inclui a liberdade de decidir a admissão ou não admissão dos alunos. 2. O patrocínio privado das escolas Um segundo fenómeno que suscitou discussões na Holanda refere-se ao patrocínio privado das escolas. Embora, como certamente sabeis, as escolas católicas da Holanda sejam subvencionadas como as escolas do Estado, a maior parte delas apela aos pais ou a patrocinadores particulares para pagarem as despesas de manutenção ou de restauração dos edifícios. Enquanto as firmas ou empresas patrocinarem a escola sem impor condições, não há problema. Mas que atitude tomar quando estas empresas quiserem influenciar o conteúdo do ensino ou a escolha do pessoal docente? A Constituição holandesa protege os direitos das escolas livres contra o Estado, mas não contra empresas privadas que querem aumentar a sua influência. Em 1997, foi concluído um acordo entre a Secretaria de Estado da Educação, quinze organizações nacionais não-governamentais e grupos de interesse. Este acordo prescreve um código de conduta e tem como ponto central uma comunicação aberta com os pais e uma forma de agir subtil e algo melindrosa. 3. O conflito entre as leis de anti-discriminação e o direito ao carácter próprio Um terceiro problema diz respeito ao conflito entre as leis de anti-discriminação e o direito das escolas não-estatais de conservarem o seu carácter próprio. Na maior parte dos países, aceita-se que uma escola possa conservar o seu carácter religioso, insistindo no direito de trabalhar unicamente com os docentes da mesma convicção religiosa. Mas ainda não é claro se todos os Tribunais dos países ou Estados com leis que proíbem todo o tipo de discriminação a partir da orientação sexual vão permitir às escolas tomar decisões relacionadas com a contratação de professores homossexuais. 4. Existem também dificuldades relacionadas com a política de admissão ou de tratamento de alunos Numerosas escolas católicas não-estatais admitem alunos que não partilham da fé cristã e, em certos países, são obrigadas a fazê-lo para poderem ser subvencionadas. Mas nem sempre é fácil saber em que medida se pode esperar que estes alunos participem nas aulas de religião católica e se, efectivamente, eles podem exigir que as outras matérias escolares sejam ensinadas de uma forma neutra, afim de evitar que prejudiquem a sua liberdade religiosa. É evidente que tais temas exigem muito tacto e a maior parte dos Tribunais Judiciais ficará hesitante quanto à intromissão nestas questões tão subtis. CONCLUSÃO A situação financeira das escolas católicas portuguesas não torna a vossa tarefa fácil. E, no entanto, a liberdade de ensino parte do princípio que os pais podem escolher a escola sem qualquer tipo de discriminação. É por essa razão que gostaria de encorajar-vos a continuar firmemente a lutar pelo reconhecimento pleno do papel da escola católica e pela melhoria da formação contínua dos seus professores. A escola católica contribui para a construção de uma cidadania portuguesa, europeia e mundial. Contribui para a realização de um modelo social português. Fazemo-lo juntos, Igreja e sociedade civil, no interior dos Estados, mas também, como já vimos, no interior de uma Europa. Esta Europa é, para nós, mais do que um mercado económico. É um continente que carrega uma herança cristã com vocação para estabelecer no mundo uma comunidade de solidariedade, de paz e, sobretudo, de sentido profundo pela vida. Muito obrigado pela vossa atenção. Etienne Verhack Secretariado Geral do CEEC


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