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«Estive na prisão e foste ter comigo»

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A Reforma do Sistema Prisional: um contributo da Comissão Nacional Justiça e Paz

A finalidade deste contributo A Comissão Nacional Justiça e Paz pretende com este documento dar um pequeno contributo para o debate relativo à reforma do sistema prisional. Começamos por clarificar a natureza e finalidade deste contributo. Parece mais ou menos consensual a ideia de que é maléfica a sobrelotação das nossas prisões e que esta não se justifica em razão dos índices de criminalidade do nosso país. A Comissão para o Estudo e Debate da Reforma do Sistema Prisional (CEDERSP) veio pôr em evidência o facto de a proporção da população prisional no conjunto da população portuguesa em geral ser das mais elevadas da União Europeia antes do alargamento (apenas superada pelas da Inglaterra e País de Gales), quando também podemos verificar que são inferiores os nossos índices de criminalidade grave ou violenta. Por outro lado, também considerou essa Comissão, e vem sendo geralmente reconhecido por outras instâncias, excessiva a percentagem de presos preventivos no conjunto global dos reclusos (cerca de trinta por cento), embora neste aspecto não estejamos distantes da média dos referidos países da União Europeia. Verificamos também que a mudança deste estado de coisas não depende fundamentalmente de reformas legislativas. Já hoje é clara na legislação penal a natureza da pena de prisão como último recurso e a preferência pela aplicação de penas alternativas a ela. No entanto, a opinião pública em geral, o cidadão comum, ainda associa as funções próprias dos sistema penal, exclusiva ou predominantemente, à pena de prisão, como se as penas alternativas não fossem verdadeiramente adequadas à realização dessas funções, ou fossem até expressão de um certo permissivismo indiferente perante a gravidade do crime e das suas consequências para as vítimas. A própria magistratura muitas vezes se deixa influenciar directamente por esta mentalidade (contra as orientações legais), ou (o que até certo ponto é compreensível) tem em particular consideração este tipo de reacção do cidadão comum. Não podemos esquecer que, de forma cíclica, há momentos de particular sensibilidade da opinião pública para a necessidade de severidade no combate ao crime. É muito provável que isso possa suceder em face da mediatização de determinados crimes particularmente graves. Ainda que por vezes se trate de reacções excessivamente emotivas ou superficiais, não podemos ignorar ou desprezar, de forma sobranceira, essa sensibilidade. Com este nosso contributo, queremos fundamentalmente ajudar a mudar a mentalidade que associa necessariamente a função do sistema penal à pena de prisão e valorizar a aplicação de penas alternativas a esta na perspectiva dessa função. Parece-nos que estas podem revestir-se de características efectivamente sancionatórias (não são simples medidas de assistências social ou destinadas apenas a evitar a prisão) e contribuir (muito mais do que a pena de prisão, que nesta perspectiva se torna muitas vezes claramente contraproducente) para a regeneração e reinserção social do agente do crime. A longo prazo, são estas regeneração e reinserção social que garantem de forma consistente a segurança das vítimas, mais até do que o cumprimento de severas penas de prisão, que muitas vezes não evitam a reincidência, ou até para ela contribuem. Nesta perspectiva, no plano dos princípios e das mentalidades, encontramos no pensamento social cristão, e no que a este âmbito se refere, luzes particularmente úteis para todos, cristãos e não cristãos. Queremos colocar em relevo essas luzes, sem nos determos muito na análise das soluções técnico-jurídicas, as quais, não deixando de ser relevantes, não nos parecem, pelas razões indicadas, por si só decisivas para alterar a situação actual. E também queremos salientar que é à comunidade em geral, mais do que aos técnicos e especialistas, que queremos dirigir-nos em primeiro lugar. Queremos chamar a atenção para um problema que é hoje, como tem sido ao longo da história, muitas vezes ignorado, como quem pretende esconder o lado mais triste e sombrio da sociedade, mas que nem por isso torna este menos triste e sombrio. Para o mudar, todos têm um papel a desempenhar, começando desde logo por o enfrentar com outro olhar, sem fatalismos e numa óptica de esperança. A pena à luz da mensagem bíblica São vários os episódios bíblicos que mereceriam uma análise pormenorizada numa perspectiva cristã das finalidades da pena criminal: o pecado e o castigo de Adão e Eva, o fratricídio de Caim, as relações de Deus com o povo eleito, as parábolas do filho pródigo e da ovelha perdida, o episódio da mulher adúltera, o diálogo de Jesus com o bom ladrão, etc. É claro que não podemos transpor directamente a mensagem bíblica a respeito das relações entre o pecador e Deus e o sentido da justiça e da misericórdias divinas para o direito penal. Pecado e crime não são sinónimos, o primeiro tem a ver com a atitude interior, o segundo com comportamentos externos socialmente danosos. Através do sistema penal, nunca poderemos impor a conversão interior do criminoso, mas apenas propor ou facilitar essa conversão. A justiça humana é necessariamente imperfeita e nunca poderá reflectir fielmente a justiça divina. Mas tudo isto não significa que, com o necessário esforço de mediação, não possamos colher da mensagem bíblica importantes pontos de referência para o tema que nos ocupa. De alguns dos referidos episódios bíblicos, o cardeal Carlo Maria Martini retira, a este respeito, quatro ideias fundamentais: a consciência da culpa já contem em si a pena (é o próprio pecador quem se auto-condena); a culpa transforma a pena em responsabilidade (quem errou deve assumir, como pena, responsabilidades mais graves e onerosas); a pena não cancela a dignidade da pessoa e não a priva dos seus direitos fundamentais; Deus não fixa o culpado na sua culpa, identificando-o com ela, mas dá-lhe a esperança de um futuro melhor que aponta para a sua reabilitação completa e lhe pede para não repetir os erros e ressarcir o mal feito com gestos positivos de justiça e bondade . Um ponto importante a reter é, desde logo, este: por mais grave que seja o crime, não é destruída a dignidade da pessoa como imagem de Deus e a esta é dada sempre a possibilidade de recomeçar. Afirma-se no documento da Comissão Social do Episcopado Francês Justiça e Solidariedade, de 10 de Dezembro de 1992: «O cristianismo, inspirando-se no Evangelho (cfr. Luc. 15, 11-31; Jo 8, 1-11), recusa-se a ver no criminoso apenas o seu crime; considerando que este não é nem uma fatalidade nem a última palavra do ser, pretende empenhar o culpado num processo de “reinserção” espiritual» .E afirma ainda o cardeal Carlo Maria Martini: «A pessoa humana é o valor máximo em virtude da sua inteligência e vontade livre, do espírito imortal que a anima e do destino que a espera. A sua dignidade não pode ser desvalorizada, desnaturada ou alienada, nem mesmo pelo pior dos males que o homem, individual ou associadamente, possa realizar. O erro enfraquece e deturpa a personalidade do indivíduo, mas não a nega, não a destrói, não a desclassifica, reduzindo-a ao reino animal, inferior ao do homem» . O magistério da Igreja Católica e a pena Afirma o Catecismo da Igreja Católica a respeito dos fins das penas: «As penas têm como primeiro efeito o de compensar a desordem introduzida pela falta. Quando a pena é voluntariamente aceite pelo culpado, tem um valor de expiação. A pena, para além de preservar a ordem pública e a segurança das pessoas, tem também valor medicinal: deve, na medida do possível, contribuir para a emenda do culpado» (n.2266). Na sua mensagem por ocasião do Jubileu das Prisões, de 9 de Julho de 2000, João Paulo II aborda directamente a questão da reinserção social do condenado: «Estamos ainda longe do momento em que a nossa consciência poderá estar certa de ter feito tudo o possível para prevenir a delinquência e reprimi-la eficazmente, para que não continue prejudicando e, ao mesmo tempo, para oferecer a quem transgride o caminho de um resgate e de uma nova e positiva inserção na sociedade.» (n. 5). E também os malefícios da pena de prisão e a necessidade de encontrar penas alternativas a esta: «Os dados que estão à vista de todos dizem-nos que esta forma de punição geralmente consegue resolver só em parte o fenómeno da delinquência. Antes, em vários casos, os problemas que cria parecem maiores do que aqueles que procura resolver. Isto impõe um reexame tendo em vista uma possível revisão.» (n.5) . Afirmou ainda João Paulo II, na homilia dirigida aos reclusos da prisão romana Regina Coeli, também nessa data: «A pena, de facto, não pode reduzir-se a uma simples dinâmica retributiva, nem sequer pode configurar-se como uma retorsão social ou uma espécie de vingança institucional. A pena e a prisão têm sentido se, enquanto afirmam as exigências da justiça e desencorajam o crime, servirem para a renovação do homem, oferecendo a quem errou uma possibilidade de reflectir e de mudar de vida, para se inserir a pleno título na sociedade» (n.5). Esta renovação do homem é também uma forma de fazer justiça às vítimas, que não são esquecidas: «As próprias pessoas às quais causastes sofrimento talvez sintam ter tido mais justiça ao olharem para a vossa mudança interior do que para a pena por vós expiada.» (n.5) . Justiça e perdão Na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1 de Janeiro de 2002 Não há Paz sem Justiça, não há Justiça sem Perdão , João Paulo II aborda a questão da relação entre justiça e perdão, conceitos habitualmente encarados como contraditórios, mas que na sua perspectiva não o são: «Muitas vezes me detive a reflectir nesta questão: qual é o caminho que leva ao pleno restabelecimento da ordem moral e social tão barbaramente violada. A convicção a que cheguei, raciocinando e confrontando com a Revelação bíblica, é que não se restabelece cabalmente a ordem violada, senão conjugando mutuamente justiça e perdão. As colunas da verdadeira paz são a justiça e aquela forma particular de amor que é o perdão. (...) Por isso, a verdadeira paz é fruto da justiça, virtude moral e garantia legal que vale sobre o pleno respeito de direitos e deveres e a equitativa distribuição de benefícios e encargos. Mas, como a justiça humana é sempre frágil e imperfeita, porque exposta como tal às limitações e aos egoísmos pessoais e de grupo, ela deve ser exercida e de certa maneira completada com o perdão que cura as feridas e restabelece em profundidade as relações humanas transformadas. Isto vale para as tensões entre os indivíduos, como para as que se verificam em âmbito mais alargado e mesmo as internacionais. O perdão não se opõe de modo algum à justiça, porque não consiste em diferir as legítimas exigências de reparação da ordem violada, mas visa sobretudo aquela plenitude de justiça que gera a tranquilidade da ordem, a qual é bem mais do que uma frágil e provisória cessação das hostilidades, porque consiste na cura em profundidade das feridas que sangram nos corações. Para tal, justiça e perdão são essenciais (n. 2-3)». O perdão e a justiça não são, pois, antagónicos. O perdão ultrapassa e completa as exigências da justiça, sem anular essas exigências. E fá-lo em função de uma mais sólida e consistente harmonia social («que cura em profundidade» as «feridas que sangram nos corações»). Por outro lado, o perdão não tem uma dimensão puramente individual, moral ou religiosa, tem também uma dimensão social: «Como acto humano, o perdão é, antes de mais, uma iniciativa individual do sujeito na sua relação com os seus semelhantes. Porém, a pessoa tem uma dimensão social essencial, que lhe permite estabelecer uma rede de relações com a qual se exprime a si mesma: infelizmente não só para o bem, mas também para o mal. Consequentemente, o perdão torna-se necessário também a nível social. As famílias, os grupos, os Estados, a própria comunidade internacional, necessitam de abrir-se ao perdão para restaurar os laços interrompidos, superar situações estéreis de mútua condenação, vencer a tentação de excluir os outros, negando-lhes possibilidade de apelo. A capacidade de perdão está na base de cada projecto de uma sociedade mais justa e solidária.» (n.9). O perdão nesta dimensão social leva a encarar a pena como um instrumento de reconciliação entre o agente do crime e a sociedade, que permite recompor aquela comunhão que a prática do crime rompeu. Exprime-se, a este respeito, o juiz francês Michel Anquestil: «O delinquente age contra ele ao agir contra a sociedade, pois destrói qualquer possibilidade de conquistar a felicidade, ao retirar-se da comunhão, ao marginalizar-se a si próprio (...) A pena humanizada não é, em rigor, vingança cega, violência destinada a dominar quem é punido: ela é abertura a uma comunhão restabelecida, ela traz consigo a oferta de perdão, ou não é justa! (...) No fundo, o ideal da pena, a esperança que ela traz consigo é o de convidar quem é punido a tornar-se o filho pródigo da parábola. (...)Quando a culpa é reconhecida, raramente o princípio da pena é contestado. São as condições do julgamento, e depois da execução da pena, que suscitam um formidável sentimento de revolta e matam à nascença a possibilidade de reconciliação». A prestação de trabalho a favor da comunidade À luz das ideias expostas, podemos agora debruçar-nos sobre alguns dos desafios que coloca a reforma do sistema prisional. É nítido o propósito da Comissão de Estudo e Debate sobre a Reforma do Sistema Prisional (CEDERSP), que viu acolhidas no essencial as sua sugestões na proposta governamental de alteração do Código Penal, de favorecer uma aplicação muito mais frequente das penas alternativas às penas de prisão e em particular a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade. Essa proposta de alteração do Código Penal estabelece uma regra de substituição por prestação de trabalho a favor da comunidade da pena de prisão não superior a dois anos e da pena de multa (ver artigo 58º, nº 1 e 7, do Código na versão constante dessa proposta). Poder-se-ia dizer que o quadro legislativo vigente não favorece grandemente a aplicação desta pena. Pode substituir penas de prisão até um ano (artigo 58º, nº 1, do Código Penal vigente), sendo que, em relação a crimes menos graves, há uma regra geral de opção pela pena de multa (artigo 70º do mesmo diploma). Não poderá, pois, aplicar-se, em princípio, a crimes de gravidade reduzida, sendo que também não será aplicável a crimes mais graves, puníveis com pena de prisão superior a um ano. No entanto, esta dificuldade não explica, por si só, a tão reduzida aplicação desta pena. Essa aplicação não tem entre nós qualquer relevo estatístico, quando noutros países europeus chega a atingir proporções próximas dos cinco por cento do total das condenações. Há outro tipo de dificuldades reais e que parecem intransponíveis: a necessidade de aceitação do condenado (artigo 58º, nº 5, do Código Penal), pouco provável quando não há confissão; a difícil compatibilização do horário da prestação de trabalho a favor da comunidade com o horário de trabalho do condenado, tendo em conta que este horário não pode ser afectado e que há que preservar um descanso mínimo (artigo 58º, nº 4, do mesmo diploma) e o facto de grande número dos condenados padecer de toxicodependência, o que dificulta a prestação de trabalho em condições aceitáveis, não susceptíveis de criar danos à entidade beneficiária. Mesmo assim, só um espírito rotineiro e avesso às inovações e uma mentalidade pouco sensível às virtualidades desta pena explicam o tão pouco frequente recurso a ela. Não se pode falar hoje em ausência de estruturas de apoio à execução desta pena, desde logo porque até há várias entidades dispostas a colaborar com o Instituto de Reinserção Social e a beneficiar dessa prestação que nunca dela chegaram a beneficiar por falta de condenações. Por isso, as alterações legislativas, por si só, poderão não ser suficientes para alterar este estado de coisas. Importa sensibilizar os magistrados para as virtualidades da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade. Os esforços de formação do Centro de Estudos Judiciários neste sentido ainda não produziram efeitos significativos. E é fácil identificar essas virtualidades à luz das ideias acima expostas. Trata-se, antes de mais, de uma pena com um alcance sancionatório efectivo. A prestação de trabalho, ainda que voluntária, é, por si, penosa, representa um verdadeiro sacrifício. Torna-se nítido que o condenado, com a prática do crime, contraiu uma dívida para com a sociedade que deve reparar. São, pois, satisfeitas as «justas exigências de reparação da ordem violada» de que fala João Paulo II na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1 de Janeiro de 2002 acima referida. Não se trata de uma simples advertência simbólica ou de uma medida de assistência social que faça perder a especificidade da intervenção penal. É de esperar que a comunidade em geral reconheça isso mesmo, e não veja no recurso a esta medida alguma forma de permissivismo. Ao mesmo tempo, também é nítido que com esta pena se facilita a reconciliação entre o agente do crime e a comunidade afectada com a prática desse crime, o restabelecimento daquela comunhão que esta prática quebrou. O alcance pedagógico da condenação traduz-se no reforço, na consciência do condenado e da comunidade em geral, dos laços de fraternidade entre todos. A prisão, pelo contrário, tende a acentuar o fosso entre o condenado e a comunidade, contribuindo para o isolamento e marginalização deste. Pode dizer-se que mais facilmente se harmonizam a justiça e o perdão, se for este o nome que quisermos dar a esta reconciliação entre o agente do crime e a comunidade. Também através desta pena se reconhece, mais do que se verifica com a pena de prisão, que a dignidade do condenado enquanto pessoa não é destruída com a prática do crime. Este não é humilhado ou estigmatizado, mas reconhecido como pessoa útil à sociedade e disposto a reconciliar-se com esta e a recomeçar uma vida nova. Por outro lado, através desta pena também se torna nítido que, como o exige a ética cristã, ao mal do crime não se responde com outro mal (estamos longe da lógica vindicativa da lei do talião), mas com o bem, com uma actividade meritória por parte do condenado. A suspensão condicionada da pena de prisão Outra das penas que a Comissão de Estudo e Debate sobre a Reforma do Sistema Prisional (CEDERSP), e a proposta governamental de alteração do Código Penal que acolhe as sugestões dessa comissão, pretendem favorecer, como alternativa à pena de prisão, é a suspensão da execução da pena de prisão condicionada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta. Actualmente, há um recurso frequente à suspensão da execução da pena de prisão. Esta é, depois da pena de multa, a pena mais aplicada. Na grande maioria dos casos, essa suspensão não é condicionada pelo cumprimento de deveres ou observância de regras de conduta. Esta traduz, pois, uma simples advertência e ameaça de cumprimento da pena de prisão em caso de cometimento de novos crimes. Evita-se a prisão com os seus efeitos dessocializadores, mas o caracter efectivamente sancionatório da pena dilui-se grandemente, a ponto de muitas vezes a pena de prisão suspensa nessas condições não ser reconhecida como verdadeira pena pelo próprio condenado (o qual quase não a distingue da absolvição) e pela opinião pública em geral (que tenderá a associar ao permissivismo esta alternativa à prisão). Perante crimes de gravidade significativa, o juiz vê-se muitas vezes perante o dilema de aplicar uma pena de prisão efectiva, com todos os seus inconvenientes dessocializadores, ou uma pena de prisão suspensa na sua execução, que não se adequa à gravidade desse crime e às exigências de prevenção geral em jogo. Se a esta suspensão forem associados a obrigação de cumprimento de deveres ou observância de regras de conduta, essa inadequação pode não se verificar. Partindo dos princípios acima indicados, os deveres e regras de conduta em questão poderão corresponder a deveres de solidariedade social que permitam aquela “reconciliação” com a comunidade a que vimos aludindo, para além de deveres de reparação para com a própria vítima. A proposta governamental de alteração do Código Penal decorrente das sugestões da Comissão de Estudo e Debate sobre a Reforma do Sistema Prisional (CEDERSP) vem possibilitar a suspensão da execução da pena de prisão até cinco anos (quando agora esse limite é de três anos), tornando obrigatória a subordinação dessa suspensão ao cumprimento de deveres ou observância de regras de conduta quando a condenação se situe entre os três e os cinco anos (artigo 50º, nº 1 e 3, do Código Penal, na versão decorrente dessa proposta). Também se torna claro (o que não se verifica face ao quadro legal vigente) que uma prestação de trabalho a favor da comunidade pode condicionar a suspensão da execução da pena (artigo 51º, nº 1, c), da referida versão). Ficam, assim, mais abertas as possibilidades de recurso a esta pena na perspectiva que vimos defendendo, não apenas para evitar os efeitos des socializadores da prisão, mas também para sancionar o condenado de um modo que favoreça a sua “reconciliação” com a comunidade. A prisão e a dignidade do condenado Ainda que possa, e deva, recorrer-se com mais frequência às penas alternativas à pena de prisão, uma visão realista impõe que reconheçamos a necessidade da pena de prisão para os crimes mais graves. Importa, por isso, ter presente, por um lado, a ideia, já atrás realçada, de que a dignidade da pessoa humana nunca é anulada pela prática do crime, por maior que seja a gravidade de que este se possa revestir. E nunca podemos desistir, também por maior que seja a gravidade do crime ou do percurso criminoso do condenado, do objectivo (sempre proposto e nunca imposto) da reabilitação deste. Estes são princípios a que inevitavelmente nos conduz a ética cristã. Por isso, nunca as condições de execução da pena de prisão podem ser contrárias à dignidade humana. Esta impõe exigências mínimas relativas à alimentação, saúde, higiene, privacidade, liberdade religiosa, acesso à cultura, etc. É sabido como, em alguns destes aspectos, as condições das nossas prisões estão longe de satisfazer tais condições mínimas A pena de prisão consiste apenas na privação da liberdade (e esta é, por si só, suficientemente gravosa), não em qualquer tipo de sofrimentos ou incómodos que dela não derivam necessariamente. E se as condições da vida prisional não são, por razões conhecidas, as que mais favorecem a reinserção social dos condenados, há que reduzir ao mínimo os seus malefícios nesta perspectiva. A reinserção social do condenado é também um objectivo da pena de prisão, por mais difícil que possa parecer, e não apenas das penas alternativas a esta. São frequentes queixas da parte de reclusos de violações dos seus direitos fundamentais, provocadas por outros reclusos ou até por quem deveria proteger esses direitos, os próprios guardas prisionais. Não podemos ignorar a particular vulnerabilidade do recluso na defesa efectiva dos seus direitos. Parece-nos que ainda não se encontraram mecanismos que garantam cabalmente essa defesa. Poderia pensar-se, por exemplo, na institucionalização de uma entidade independente como um provedor do recluso. A prisão preventiva Uma outra questão que vem sendo repetidamente levantada a respeito da situação das nossas prisões tem a ver com a proporção excessiva dos presos preventivos (ronda os trinta por cento) no conjunto global da população prisional. Também quanto a este aspecto, uma prática arreigada parece afastar-se dos princípios constitucionais e legais, neste caso os da presunção de inocência do arguido e da excepcionalidade da prisão preventiva. Uma vez que se presume a inocência do arguido até à sua condenação por sentença transitada em julgado, seria de esperar que fosse mais habitual, mesmo em relação a crimes graves, que o mesmo aguardasse o julgamento em liberdade para, só depois do trânsito em julgado dessa condenação, cumprir a pena de prisão em que tenha sido condenado. Na grande maioria dos casos não é, porém, assim: quem é condenado em pena de prisão já aguardava o julgamento na situação de prisão preventiva. Quem aguarda o julgamento na situação de prisão preventiva é com frequência (cerca de um quinto dos casos) condenado em pena de prisão suspensa na sua execução. Mais grave do que isso (que até poderá ser compreensível nalgumas situações) é que venha a ser absolvido quem aguarda o julgamento em prisão preventiva, o que tem ocorrido com uma frequência menor (em percentagens próximas dos cinco por cento), mas mesmo assim superior ao que seria aceitável, pela flagrante injustiça que representa. Há que considerar ainda que o recluso em prisão preventiva sob vários aspectos está numa situação pior do que os condenados, não beneficiando, como estes, de saídas precárias ou todo o tipo de medidas tendentes à sua reinserção social. E com frequência uma parte significativa da pena é cumprida em regime de prisão preventiva. Também quanto a este aspecto, há uma mentalidade corrente na opinião pública que não se coaduna com os princípios constitucionais e legais. Essa mentalidade faz associar automaticamente os crimes mais graves à prisão preventiva, quando os pressupostos desta não dependem directamente da gravidade do crime indiciado, mas da existência de perigos de fuga, de perturbação da investigação e da prova, de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas (artigo 204º do Código de Processo Penal). É corrente, por exemplo, a indignação no caso de libertação judicial (por não aplicação da prisão preventiva) de arguidos indiciados pela prática de crimes graves, como se isso representasse uma frustração da acção policial ou um sinal de impunidade (que não é, pois o arguido poderá obviamente vir a ser condenado, na altura própria, em pena de prisão). Os próprios magistrados não se conseguem libertar desta mentalidade, ou, por causa dela, temem não ser compreendidos pela opinião pública. Justifica-se, pois, um esforço pedagógico junto da opinião pública que leve à compreensão da função da prisão preventiva e do relevo do princípio da presunção de inocência do arguido, assim como das garantias de defesa deste antes da sua condenação definitiva. A criminalidade e a toxicodependência A generalização da vigilância electrónica para controlo da obrigação de permanência na habitação, como medida alternativa à prisão preventiva, tem permitido um recuso menor a esta medida, o que poderá ainda intensificar-se. Impõe-se, porém, reconhecer que muito frequentemente (até quando os crimes isoladamente não são particularmente graves) a prisão preventiva se impõe como medida necessária para evitar o perigo de continuação da actividade criminosa decorrente da toxicodependência do arguido. Nestas situações, importa ter presente que é o tratamento (não a prisão por si só) que afasta de forma definitiva e duradoura o perigo de continuação da actividade criminosa. A legislação vigente (artigo 55º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro) contempla já a obrigação de tratamento como medida de coacção. O recurso a esta medida é, porém, diminuto. Justificar-se-iam alguns ajustamentos legislativos que tornassem mais fácil esse recurso: permitindo a sua aplicação logo no primeiro interrogatório judicial de arguido detido sem necessidade de exame pericial que comprove a toxicodependência; estendendo-o aos caos de tratamento ambulatório e não o limitando ao internamento, que pode não se justificar ou estar dependente de parecer médico ou vagas, inexistentes ou desconhecidos aquando desse interrogatório. Compreende-se, mesmo assim, que haja situações em que não se vislumbra à partida a viabilidade do tratamento e a prisão preventiva é mesmo necessária para evitar o perigo de continuação da actividade criminosa. Impor-se-á, então, dar ao maior número possível de reclusos a possibilidade de tratamento na própria prisão. Não sendo claramente as condições do meio prisional as mais adequadas para esse tratamento, a verdade é que as experiências realizadas têm dado os seu frutos e só é de lamentar que abranjam ainda apenas um número de reclusos relativamente reduzido face a um universo tão amplo. O combate à criminalidade e o combate à toxicodependência A relação entre a criminalidade e a toxicodependência não pode, pois, ser ignorada. Há que reconhecer as limitações intelectuais e volitivas provocadas pela toxicodependência, sem desresponsabilizar em absoluto os toxicodependentes. E, sobretudo, importa ter presente que o combate à criminalidade não pode ser desligado do combate à toxicodependência. Também quanto a este aspecto, as intervenções legislativas, judiciais e policiais, sendo importantes, não deixam de ter um alcance limitado. Por várias vezes, o magistério da Igreja Católica tem considerado as tentativas de legalização da droga como uma cedência a um mal a que se impõe resistir, como se impõe não desistir de lutar contra esse mal e não se resignar à ideia de ver surgir uma classe inferior de seres humanos subdesenvolvidos que dependem da droga para viver . Ao mesmo tempo, esse magistério vem acentuando que a verdadeira luta consiste na recuperação dos valores. A droga não se combate só com intervenções de índole sanitária e judicial, mas também, e sobretudo, com a criação de novas relações humanas, ricas em valores espirituais e afectivos . Afirmou João Paulo II: «Os fenómenos da droga (...) não se combatem, nem pode incrementar-se uma acção eficaz para a cura e a recuperação dos que são suas vítimas se não se restaurarem os valores humanos do amor e da vida, os únicos capazes, especialmente se forem iluminados com a fé religiosa, de dar um sentido pleno à nossa existência» . Conclusão Como dissemos no início, nem sempre a sociedade em geral tem dado o relevo devido à situação das nossas prisões e dos reclusos que nelas passam parte apreciável das suas vidas (e, em grande medida, da sua juventude). Talvez se possa pensar que, pelos crimes que cometeram, não serão merecedores de particulares cuidados e atenções... Mas é precisamente contra esta mentalidade que queremos reagir. A dignidade da pessoa não desaparece com a prática do crime- já o dissemos. Não podemos dividir a sociedade entre nós e eles, os bons e os maus, os cumpridores da lei e os criminosos, porque todos verificamos que a linha que separa o Bem do Mal atravessa o íntimo de cada um de nós. Numa família, quem erra não deixa de ser filho, filha, pai, mãe, irmão ou irmã. Às vezes, é precisamente quando algum parente ou amigo é preso que despertamos para esta realidade, desconhecida até então. Um cristão não pode ser indiferente a um Deus que se identifica com quem sofre e até com quem sofre pelo mal que cometeu («Estive na prisão e foste ter comigo», Mt, 25,36). Por isso, queremos deixar aqui este pequeno contributo, que parte da consideração dos reclusos como membros da família alargada a que todos pertencemos, sem ignorar que dela também fazem parte as vítimas dos crimes e que nela, como em todas as famílias, há espaço para a justiça, o castigo, a emenda e o perdão.


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