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Eucaristia no centro da família

D. Jorge Ortiga
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Homilia do Arcebispo de Braga na Missa da Ceia do Senhor

Numa evocação da instituição do sacerdócio ministerial, acolhendo o mandato do amor e o dom da Eucaristia, podemos compreender a missão duma outra vocação que só se compreende à luz do “amai-vos uns aos outros”. A vida em família, concretização e vivência do Sacramento do Matrimónio, encontra na liturgia de hoje muita luz e intuição programática. Cristo quis entregar a “lei” da Vida Trinitária que sempre viveu com o Pai e com o Espírito Santo. No Cenáculo, tratava-se de entregar o núcleo central de toda a Sua mensagem. Fê-lo como mandato e como experiência vivida na Sua pessoa. Mandou amar como Deus ama e exemplificou com o gesto de lavar os pés. Aí pareceu humilhar-se num gesto impróprio e fora do habitual e mostrou aos discípulos, nomeadamente a Pedro, que é preciso amar numa doação total de si e ser amado na aceitação de tudo quanto os outros oferecem. Amar e deixar-se amar, dar e acolher, a partir daquele momento tornou-se o itinerário do discípulo que serve e é servido, aceita e dá para uma simbiose de vidas que querem uma comunhão idêntica à que vivenciamos na Eucaristia. Também recordamos a sua instituição e deveríamos senti-la como o dom por excelência que, também ela, nos leva à entrega de nós mesmos numa oblação contínua e constante. A vida é, assim, Eucaristia que se aceita e Eucaristia que se dá. A esta luz compreenderemos o mistério profundo do matrimónio ou da família e reconhecemos o lugar que a Eucaristia deve ocupar na vida familiar. Se ela é modelo e referência é necessário reconhecer o lugar que ocupa ou deve ocupar no dinamismo quotidiano da vida em família. Por este motivo as famílias cristãs devem colocar a Eucaristia no seu centro, fazendo com que a participação activa e frutuosa na eucaristia seja questão decisiva e essencial para a sua vida, existência e missão. A família, dum modo normal, “nasce” na Eucaristia, aí robustece a sua fidelidade e amor, aí compreende a sua missão na Igreja e na sociedade. Para isso é fundamental que se disponibilize para acolher a Palavra como programa de vida, se introduza numa atitude de oração pessoal e comunitária e se sinta interpelada para o serviço quotidiano do amor no interior da mesma vida familiar e no mundo profissional ou no âmbito da comunidade crente. Trata-se de abrir a família à Eucaristia como um trabalho pastoral de primordial importância e evangelizar a família através da eucaristia num intuito de responder às reais necessidades da mesma. Aí se dá à família a melhor riqueza que a Igreja lhe pode proporcionar: a presença vivificante de Cristo que “ama a Igreja como Sua esposa e deu-se a si mesmo para a santificar” (Ef. 5, 25-26). Este primado a atribuir à Eucaristia tem outras exigências muito concretas. A sua celebração é uma festa e conduz à redescoberta da importância do repouso em família e do exercício da caridade no dia do Senhor. Todos os dias, no dom da vida oferecida por Deus, são passagens do pecado à graça, da morte à vida, do sentir-se perdido ao encontro duma pátria. Mas, desde os primórdios da Igreja, como exigência muito espontânea e natural, foi reservado o primeiro dia da semana para a celebração do mistério pascal. O domingo é, deste modo, o dia em que o Senhor ressuscitou e aparece repetidamente aos seus discípulos para partir o pão eucarístico com eles. Por isso, o domingo deve ser sempre a festa por excelência, o dia da alegria e do repouso do trabalho. Neste contexto, a família, para poder corresponder às solicitações e obrigações que lhe são colocadas, tem necessidade de, como tal, nutrir-se na mesa eucarística e aí encontrar a luz e a força divina para continuar o empenho duma vocação. Sabemos que, na actualidade, o dia do Senhor, a Páscoa semanal, tornou-se um neutro e vazio “fim-de-semana” onde há lugar planeado para tudo e a Eucaristia pode ser colocada como ápice passageiro a transtornar a tranquilidade dum repouso meramente humano. A família não consegue encontrar-se unida nem sequer ao domingo. Os trabalhos dispersam e dificilmente se consegue congregar toda a comunidade familiar. A isto teremos de acrescentar os gostos e as vontades de cada um que solicitam e exigem ocupações diferentes. Daí que, nem sempre, ela consegue harmonizar-se com as exigências do dia do Senhor. Tudo pode parecer razão e haverá momentos em que, na verdade, assim o é. Temos, porém, de reconhecer que a causa fundamental é a debilidade da fé que vai permitindo a celebração do domingo de qualquer maneira ou a falta da mesma fé que, com demasiada facilidade, faz com que os membros da família se sintam dispensados. Outros valores se impõem e a participação na Eucaristia torna-se opcional e, noutras circunstâncias, em horários diferentes, para as diversas pessoas que compõem a família. Para muitos será utopia. Penso, porém, que importa o exemplo de pequenos grupos e gostaria de ver multiplicadas aquelas famílias que conseguem reservar tempo para uma preparação da eucaristia, para uma participação festiva e para um repouso familiar em Dia do Senhor. Muitos parecem cansados de viver em comum e querem fugir a esta alegria festiva dum dia marcado pela Eucaristia. Como seria bom que os cristãos organizassem o dia o Senhor dum modo festivo, reservando tempo para uma participação no mistério pascal retemperando energias e conseguindo usufruir graças de Cristo para uma vida que, naturalmente, se confronta com muitas dificuldades. Participar na Eucaristia e repousar como família pode parecer impossível. Se o cristão deve dar à Eucaristia o centro, também terá de recuperar o verdadeiro sentido do domingo. Não são as forças exteriores que podem afastar-nos desta meta. Os resultados virão depois. O domingo não pode ser um dia como tantos outros. Tem um valor que coloca a família na responsabilidade de examinar-se em comum, descansar serenamente e encontrar-se com o Amor de Deus que se tornará luz para o amor quotidiano. Quando as famílias compreendem a Eucaristia dominical e a querem viver em comum, descobrem o significado do domingo como espaço para repousar na atenção aos outros e como mandato recebido por quem deu a vida para que déssemos a vida. O mundo se transformará e as relações entre as pessoas serão diferentes, pois a família vive o amor entre si e torna-o comunicativo, ou seja, serviço à humanidade. Senhor Jesus, pão do céu oferecido em alimento, faz com que as nossas famílias sintam fome do encontro eucarístico; permite que, em comunidade, todos sintam a solidariedade fraterna entre os presentes e os ausentes; dá-nos a experiência duma festa geradora de encontros amigos e fraternos para que o repouso encontre formas novas de se organizar para uma alegria e paz das pessoas entre si e no contacto com a natureza. Sé Catedral 05/04/2007 + Jorge Ferreira da Costa Ortiga, Arcebispo Primaz


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