Dia Diocesano da Família e das Comunicações Sociais
Trofa, S. Gens de Cidai, 6 de Junho de 2004
Como no termo de qualquer discurso, tarefa ou caminhada nos habituamos a dizer uma expressão final de louvor, também a Igreja, num calendário de celebrações que evoca o projecto de Deus e a história da Salvação, celebra a Solenidade da Santíssima Trindade como síntese de fé e expressão de louvor.
Dizer “glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo” é formular a mais conhecida síntese da fé e o mais antigo símbolo de fé trinitária.
De facto nós acreditamos em Deus-Trindade. Quer dizer: Sabemos que Deus é um só, e no entanto acreditamos também que Ele é o Pai que criou o universo e o rege com amor e sabedoria. Acreditamos que Deus não está encerrado no infinito do céu, mas no Filho que é sua imagem veio ao nosso mundo e se fez um de nós. E acreditamos que realizou historicamente o seu projecto de amor na e pela força do Espírito que nos foi enviado.
Esta fé, que dizemos cristã porque teve no Filho, Jesus Cristo, o centro e o cume da revelação divina, não é fruto da nossa inteligência nem resulta da capacidade humana, mas é resposta, é o sim da totalidade do nosso ser à revelação, à manifestação que Deus fez de si mesmo muitas vezes e de muitos modos. Numa linguagem tão directa como simbólica Deus manifestou-se progressivamente numa história que a Sagrada Escritura guarda e transmite, de tal modo que os conceitos se foram aperfeiçoando e distinguindo até serem fixados pelo Magistério da Igreja, da qual somos membros fiéis, tanto como discípulos atentos do Mestre que é Cristo.
Aliás, o magistério da Igreja, que cumpre mandato institucional de Cristo, tem o legítimo papel de intérprete na leitura e compreensão do que Deus revelou e consta da tradição, oral e escrita, da Igreja. É por este critério que entendemos a Sabedoria de Deus como característica da sua obra de criação, de amor e benevolência em relação a todas as criaturas, entre as quais sobressai a pessoa humana. Identificada com Deus e personificada, esta Sabedoria é a Imagem perfeita do Pai. Veio ao mundo para nos restituir a graça perdida pelo pecado e concretizar visivelmente o Amor de Deus partilhando connosco a sua própria condição de precaridade e fragilidade. Foi esta fraqueza nossa que, em vez de afastar, aproximou Deus de nós. Fez-se Emanuel, Deus connosco.
Presente no mundo e rodeado de discípulos, Cristo, o Filho de Deus, ia falando do regresso ao Pai mas garantia que não deixaria órfãos aqueles que estavam e andavam com Ele: “Não vos deixarei órfãos… O Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, Esse ensinar-vos-á todas as coisas e vos recordará tudo o que vos tenho dito” (Jo. 14, 18 e 26).
Ensinar e recordar ou sugerir são funções do Pedagogo que Cristo prometeu. Entretanto o mesmo Cristo declara: “Tenho ainda muitas coisas para vos dizer, mas não as podeis compreender agora. Quando vier o Espírito da verdade, Ele vos guiará para a verdade plena” (Jo. 16, 12).
Foi de facto o Espírito Santo que orientou e levou os discípulos à compreensão da Verdade plena sobre o projecto de salvação de Deus. Sem a força e luz do Espírito os cristãos não poderiam compreender que o projecto de Salvação passou pela derrota, pela morte, pelo dom da vida de Cristo.
Só o Espírito pode continuar a convencer-nos da adesão a este projecto, isto é, à fé na Revelação através das Palavras explicativas e dos Factos ocorridos; numa palavra, só a Fé nos permite aceitar este Facto histórico que é a Salvação da Humanidade como projecto de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. É na concretização histórica deste projecto que o Deus único se nos revela como Pai, Filho e Espírito Santo.
O mistério da Salvação é mistério de Deus em comunhão de Amor.
O Amor e o Matrimónio
Criado à imagem e semelhança de Deus, o homem é imagem deste Deus Amor. Porque “Deus é amor e vive em si mesmo um mistério de comunhão pessoal de amor. Criando-a à sua imagem e conservando-a continuamente no ser, Deus inscreve na humanidade do homem e da mulher a vocação, e, assim, a capacidade e a responsabilidade do amor e da comunhão” (Fam. Cons. 11). Categoricamente se pode afirmar que “o próprio Deus é o autor do matrimónio” (G.S. 48), e que “o amor é, portanto, a fundamental e original vocação do ser humano” (Fam. Cons. 11).
Na mais esclarecida antropologia cristã diremos que o homem é um espírito incarnado, quer dizer, uma alma que se exprime e realiza no corpo informado por um espírito imortal. É por isso chamado ao amor nesta sua “totalidade unificada”, seja no Matrimónio seja na Virgindade (Cf. Fam. Cons.11).
Se o homem e a mulher escolhem a via do Matrimónio, mediante a qual se dão um ao outro como esposos, a sexualidade de ambos não pode reduzir-se à dimensão puramente biológica, mas diz respeito ao núcleo mais íntimo da pessoa humana como tal, enquanto imagem de Deus, em amor e fecundidade.
Segundo a Revelação Divina, interpretada pela Igreja, “o lugar único que torna possível esta doação segundo a sua vontade total é o matrimónio, … enquanto exigência interior do pacto de amor conjugal que publicamente se afirma como único e exclusivo, para que seja vivida assim a plena fidelidade ao desígnio de Deus Criador”(Fam. Cons. 11).
Por isso, a comunhão de amor entre Deus e os homens encontra um exemplo significativo e uma expressão forte na aliança nupcial, que evoca e significa as sucessivas Alianças entre Deus e o Seu povo e que culmina com a nova e definitiva Aliança entre Cristo e o Novo Povo de Deus. “O homem deixará pai e mãe, ligar-se-á à mulher e passarão os dois a ser uma só carne. É grande este mistério; digo-o, porém, em relação a Cristo e à Igreja” (Ef. 5, 31-32).
Quando S. Paulo cita palavras de Cristo e as relaciona com a Igreja, está a reafirmar a instituição matrimonial como desígnio de Deus desde o início, e a afirmar o seu definitivo cumprimento em Jesus Cristo: “O matrimónio dos baptizados torna-se assim o símbolo real da Nova e Eterna Aliança, decretada no Sangue de Cristo”(Fam. Cons. 13), e os esposos são um para o outro, e para os filhos, testemunhas da Salvação que Cristo realizou: o matrimónio é, para a nossa fé cristã, um dos sete sacramentos da nova Aliança.
A Família
O magistério da Igreja ensina que “segundo o desígnio de Deus, o matrimónio é o fundamento da mais ampla comunidade da família” (Fam. Cons. 14): dos pais e dos filhos, dos irmãos e das irmãs entre si, dos parentes e de outros familiares. João Paulo II disse um dia que “a família se torna um laboratório de humanização e de verdadeira solidariedade” (Jubileu das Famílias, 5). E é por isso natural que a Igreja considere que a família nascida do sacramento do matrimónio é o berço e o lugar onde pode encontrar mais facilmente as pessoas e onde as pessoas, alimentadas no ambiente do sacramento, se abrem mais avidamente à maternidade e solicitude da Igreja.
Certamente que todos fixámos um apelo objectivo e feliz que consta da Exortação Apostólica “Familiaris Consortio” a propósito dos deveres da família cristã, da sua dignidade e resposabilidade: “Família, torna-te aquilo que és”!(nº 17). A verdade é que, tendo presente o projecto de Deus à base do Amor intratrinitário, e reflectindo sobre a igreja enquanto projecção da Trindade, e sobre o matrimónio como instituição divina e como sacramento, a Família descobre a sua identidade, o que é, e a sua missão, o que pode e deve fazer (Cf. Fam. Cons. 17). “Igreja doméstica”, a Família é reflexo do amor trinitário, é comunhão de pessoas que não podem dispensar-se do amor mútuo, indissolúvel entre os cônjuges e abrangente em relação ao complexo familiar, sendo certo que em relação aos filhos o amor paterno assume o dever e função do verdadeiro “ministério de educação”.
Porque toda a paternidade vem de Deus Criador, à Família compete assumir o serviço à vida mediante a fecundidade que é sinal e fruto do amor conjugal.
Na responsabilidade generosa e sensata de transmitir a vida e na clarividência e determinação com que definem os valores e optam pelo modelo de educação para os filhos, os casais revelam a sua mentalidade cristã e a condição de pertença (livre, consciente e colaborante) à Igreja de que são membros, filhos e testemunhas. Primeiro, porque “para os cristãos, o sacramento do matrimónio, sinal concreto das núpcias de Cristo com a Igreja, é a fonte de toda a luz e de toda a graça de que os esposos precisam para viver o casamento como caminho de santidade, ou seja, de fidelidade um ao outro e de amor a Cristo ressuscitado” (Carta Pastoral “ Família, esperança da Igreja e do mundo”, nº 29). E, consequentemente, pela confiança que deve inspirar a solicitude da Igreja que, além de uma vasta doutrinação sobre a Família e seus problemas, procura ter “para todas as famílias uma palavra de verdade, de bondade, de compreensão, de esperança, de participação viva nas suas dificuldades por vezes dramáticas; a todos procura oferecer ajuda desinteressada, a fim de que possam aproximar-se do modelo de família que o Criador quis desde o princípio e que Cristo renovou com a graça redentora” (Ibid. Nº 41; Cf. Fam. Cons. Nº 65).
É hoje um axioma consensual e inegável que a família é a “célula primeira e vital da sociedade” (Dec. Apostolic. Act., nº 11) e, “uma sociedade que goza de direito próprio e primordial” (Dignit. Hum., nº 5), razão pela qual a sociedade em geral e o Estado devem, também em relação à Família, respeitar o principio de subsidiariedade. Sabemos que por parte do Estado não é fácil, não tem sido fácil, respeitar este direito em qualquer área, mas por isso mesmo nos compete reclamar e insistir.
Se a família é a esperança do mundo, também é a esperança da Igreja, como dizemos, os Bispos, na Carta Pastoral que tem data de 31 de Maio passado. Como “uma igreja em miniatura” ou “Igreja doméstica”, a família cristã é chamada, como tal e não apenas na singularidade de cada membro, a participar na vida e missão da Igreja, “enquanto comunidade intima de vida e de amor” (Fam. Cons., nº 50). Compete-lhe colaborar activamente na missão profética de Cristo e da Igreja, como instância evangelizadora; santificar-se e santificar, como povo sacerdotal na particularidade da sua dimensão e na universalidade que define a Igreja, e pelos modos e caminhos que são próprios da mesma Igreja; estar ao serviço da libertação da comunidade humana, hoje de modo premente e urgente, ao serviço da dignidade humana, da fraternidade e da paz.
O Meio Ambiente
Não ignoramos que, evocando o décimo aniversário do Ano Internacional da Família (1994-2004) e na sequência do Congresso da Família que celebrou o vigésimo aniversário da Exortação Apostólica Familiaris Consortio; este Dia Diocesano da Família tem um sentido de afirmação que precisa de ser sublinhado no ambiente da cultura e até da mentalidade pública que nos envolve e que constitui o que se chama, o que chamamos, crise da família.
Na Carta Pastoral que a Conferência Episcopal acaba de publicar denuncia-se uma cultura do provisório, do prazer, do consumo e do bem-estar material, da facilidade e do individualismo, do irresponsável e da morte, e de tantos outros elementos que vão contra o que chamam valores tradicionais na pretensão de imporem outros modelos de família e contraporem valores que são contra o Evangelho, contra a Igreja e contra as melhores tradições da nossa sociedade. A prática do divórcio e a contracepção são certamente dois dos elementos que mais profundamente ferem o matrimónio e a família.
Sobre a mentalidade que vai vegetando e sobre a opinião pública que se desenvolve e alastra, é oportuno reflectir na Mensagem do Santo Padre para o 38º Dia Mundial das Comunicações Sociais, celebrado em 23 de Maio passado. É que esta Mensagem tem o seguinte tema, que trouxemos para esta celebração do Dia da Família: “Os Meios de Comunicação social na Família: Um Risco e uma Riqueza”
Trata-se de reflectir sobre o uso que as famílias fazem dos meios de comunicação social, e também de nos interrogarmos sobre o modo como os meios de comunicação tratam a família, as suas dificuldades e problemas, esperanças e valores.
Constantemente a Igreja diz que “os meios de comunicação social, em qualquer forma que seja, devem inspirar-se sempre no critério ético do respeito pela verdade e pela dignidade da pessoa humana” (Mensagem, nº 2). Porque toda a comunicação tem uma dimensão moral, é necessário que haja sabedoria e discernimento no seu uso, quer por parte dos profissionais da comunicação quer por parte dos pais e educadores, e entre estes ocupam lugar importante os professores. Com efeito são praticamente ilimitadas as possibilidades e virtualidades que as comunicações sociais têm no âmbito da informação, da educação, da cultura, da cidadania, do crescimento espiritual e até da vocação para a vida, o que é determinante para a realização pessoal ou para o fracasso e frustração.
A Mensagem do Papa vai ao ponto de pedir tanto quanto exigir às autoridades públicas que procurem promover o matrimónio e a família. Se tal pedido ou exigência diz respeito à qualidade da legislação e actuação politica, não deixa de aplicar-se, na medida mais conveniente, à comunicação social: “Sem recorrer à censura, é imperativo que as autoridades definam politicas de regulação e procedimentos para garantir que os meios de comunicação não ajam contra o bem da família: os representantes da família deveriam fazer parte deste empreendimento político” (nº 4).
Sendo os termos desta Mensagem extremamente objectivos, serenos, respeitosos para a comunicação e apelativos para os pais e para as famílias, não deixa o Papa (não deixamos nós com o Papa) de tocar na ferida que afecta o nosso tempo, e na esperança de não agravar esta ferida ou a tornar crónica: “Os meios de comunicação não deveriam parecer ter uma agenda hostil aos valores familiares sólidos das culturas tradicionais, ou a finalidade de substituir tais valores, como parte de um processo de globalização, com os valores secularizados da sociedade consumista” (nº 4).
Reconhecemos a enorme potencialidade positiva dos meios de comunicação social, pedimos-lhes que reconheçam a responsabilidade moral que lhes cabe na administração de um poder espiritual enorme, que pertence ao património da humanidade e que está destinado a enriquecer toda a comunidade humana (João Paulo II aos especialistas das comunicações, 1987. Cf. nº 6).
Os meios de comunicação social entram diariamente nas nossas casas, nas nossas famílias, como hóspedes que desejamos receber com amizade, de quem desejamos despedir-nos sempre com gratidão.
Meus Caros fiéis:
A Exortação Apostólica pós-sinodal “Pastores gregis” de 16 de Outubro de 2003 (25º aniversário da eleição do Papa para o Supremo Pontificado) diz o seguinte (nº 52): “Pertence ao Bispo fazer com que sejam sustentados e defendidos os valores do matrimónio na sociedade civil, através de justas decisões politicas e económicas. Depois, no âmbito da comunidade cristã, não deixará de encorajar a preparação dos noivos para o matrimónio, o acompanhamento dos jovens casais e a formação de grupos de famílias que apoiem a pastoral familiar e, não menos importante, sejam capazes de ajudar as famílias em dificuldade. A proximidade do Bispo aos cônjuges e aos seus filhos, inclusive através de iniciativas de vário género com carácter diocesano, será para eles de seguro conforto”. Também é de conforto para mim a vossa presença neste Dia Diocesano da Família. Agradeço ao Senhor D. João Miranda Teixeira a solicitude com que tem acompanhado e fomentado a Pastoral familiar na Diocese. Agradeço ao Casal Presidente, ao Assistente e a todos os casais do Secretariado Diocesano da Pastoral Familiar a entrega sacrificada e alegre ao serviço das famílias. Felicito todos os Casais que quiseram fazer desta celebração um momento de jubileu e de renovação espiritual. À maneira de testemunho, com confiança e esperança, digamos com a Igreja: “A família cristã, igreja doméstica, é espaço aberto à presença do Senhor Jesus, santuário da vida. É comunidade apostólica, aberta à missão” (Past. Greg., nº 52).
Trofa, S. Gens, 6 de Junho de 2004
D. Armindo Lopes Coelho, Bispo do Porto