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Homilia das ordenações sacerdotais em Braga

D. Jorge Ortiga
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Na vida da Arquidiocese há momentos que se revestem dum carácter de extraordinaridade por aquilo que são e significam. As Ordenações são aquele momento de graça a acolher de joelhos e a provocar entusiasmo e novo ardor nos caminhos do anúncio do Evangelho e da edificação de comunidades verdadeiramente cristãs.

Estamos congregados como Povo Sacerdotal que, com S. Paulo, quis deixar-se encontrar pela Palavra. Prosseguimos a caminhada e vamos colocar-nos nos horizontes onde o Espírito Santo nos quer conduzir, "acolhendo a mesma Palavra" como Programa Pastoral Arquidiocesano. Conscientes de ser Povo Sacerdotal, os presbíteros privilegiam este Ano Sacerdotal confrontando-se com a fidelidade ao Sim dado a Cristo nesta querida Igreja Particular de Braga. Se o Povo de Deus presenciar sacerdotes que acolhem a Palavra, não ficará indiferente: os cristãos comprometidos ganharão novas motivações, os adormecidos acordarão para o essencial, os que deixaram morrer o dom da fé reconhecerão a alegria de recomeçar novo encontro com Cristo Vivo, os afastados da Igreja, indiferentes, agnósticos, ateus, hostilizantes reconhecerão na Palavra de Deus um sentido existencial que não engana e que ultrapassa as "questiúnculas" onde se perdem quotidianamente.

Para vós, caríssimos ordenandos, e para todo o presbitério de Braga, gostaria de pedir ao Senhor que, na linguagem de Jeremias, nenhum seja daqueles pastores que "perdem e dispersam as ovelhas do meu rebanho", que as "escorraçam sem terem cuidado delas" mas pastores com a consciência de que são dados (enviados) pelo Senhor para reunir e apascentar sem medo ou sobressaltos pois nenhuma se perderá por causa da muita solicitude, compreensão, acolhimento, ternura.

Estes pastores, na experiência de Paulo relatada aos cristãos de Éfeso, fazem de Cristo, e de mais nada nem ninguém, a sua paz no meio das vicissitudes duma história hodierna enigmática. Sabem que só Ele, para além de grupos ou partidos, edifica "um só povo", derruba os muros da inimizade ou represálias, testemunha "um só homem novo".

Para isso o pastor é, prioritariamente, aquele que "vai com Cristo para um lugar isolado", com tempo para assimilar a Palavra. Este partir para lugar isolado, "sem mais ninguém", é experiência individual (pessoal) mas Jesus quis retirar-se com "eles", os apóstolos, todos juntos. É preciso tempo mas se, como aconteceu no Evangelho, for necessário interromper porque "eram como ovelhas sem pastor" haverá coragem, serenidade, transparência para "ensinar muitas coisas", transmitdas se anunciadas em presbitério, ou seja, numa sintonia absoluta, em mundo de divisões antagónicas, vivenciando a unidade dum corpo de pessoas e de doutrina. Só a unidade, doutrinal e pastoral, dá capacidade para a Igreja mostrar que merece credibilidade.

Procurando olhar para o Ano Sacerdotal onde o santo Padre recorda aos Sacerdotes a fidelidade para fazer com que o Evangelho incida na vida hodierna, gostaria de enumerar um conjunto de itinerários, a confirmar ou percorrer de novo. Podem ser sugestões para um exame de consciência pessoal e colectivo. Atrevo-me, ainda, a solicitar uma circulação de ideias entre sacerdotes e leigos e estes comigo sobre estas perspectivas. Seria um modo de viver a comunhão.

Na vida dos padres e dos leigos rezo para que se encontre:

1 - Mais Evangelho, acolhido e vivido, e menos tradicionalismo e devocionismo. O encontro com o Evangelho supõe uma constante novidade de vida que sabe estar dum modo novo e coabitando com a Tradição sabiamente entendida. Muitos pretendem que a Igreja seja um repositório de tradições. O Evangelho é ruptura e provoca uma adesão nova a coisas que animam a fé. Só o Evangelho conta.

2 - Mais discípulos procuradores da verdade e menos dogmatismos rígidos. A grande aspiração do ser humano consiste na coerência com um projecto capaz de dar sentido à vida. O cristão caracteriza-se pela humildade de se deixar conduzir pela verdade que Cristo encerra e reconhecer que os outros são, igualmente, procuradores e possuidores de verdade. Os autoritarismos ou imposições nunca se poderão conciliar com a alegria de seguir, em comum, um itinerário que se descobre com a colaboração séria de todos, humildes e inteligentes.

3 - Mais testemunhos autênticos e menos mestres conhecedores de toda a verdade. Quando se procura a verdade, descortina-se a coerência como a linguagem que convence e arrasta. Num mundo de muitos barulhos eivados de auto-afirmação, urge "o vedetismo" duma fidelidade evangélica, a única capaz de permear os mais recônditos meandros das realidades terrestres que nos circundam. As palavras podem convencer momentaneamente, o testemunho arrasta e molda consciências para um ritmo de permanente conversão.

4 - Mais acolhimento e menos condenação. O mundo será sempre um cenário de mentalidades contrastantes. A uniformidade está ultrapassada. E fácil condenar o diferente quanto se impõe uma capacidade de acolher quem pensa diferente, quem erra, quem disse coisas injuriosas, quem necessita dum espaço para retemperar energias e ganhar coragem. Os erros devem ser condenados, as pessoas acolhidas com ternura e carinho de quem nos enriquece com o diferente modo de pensar e ver as coisas e os acontecimentos. A castidade, verdadeiramente assumida significa "ver a multidão", compadecer-se e verificar que são como ovelhas sem pastor e depois ensinar as coisas do Reino.

5 - Mais sinais de esperança, menos temores e medos. Na aventura duma civilização nova com paradigmas enigmáticos e geradores de confusão e perplexidades, só a multiplicação de sinais concretos e objectivos de esperança será capaz de destruir os medos e de ultrapassar os temores. Há razões para ver a beleza da vida e o profetismo da Igreja reside nesta capacidade de descortinar algo de novo a nascer. As violetas aparecem onde menos se espera. Urge ver um mundo novo que está a nascer.

6 - Mais humanismo integral e menos moralismos redutores. O mundo novo acontece na luta por uma dignidade de vida para todos. As misérias impõem o seu realismo e muitos acreditam na felicidade do "ter", adquirido por todos os processos e meios. Outros vivem marginalizados do mínimo indispensável e procurando contentar-se com conselhos que não conduzem à alegria. Só o protagonismo no compromisso de fazer com que os critérios transcendentais se tornem motivo de ultrapassar a crise, fará com que ricos e pobres se aproximem, não no sentido de meras ajudas assistencialistas e tranquilizadoras de quem dá algo. O mundo deve ultrapassar esta grande dicotomia e fazer com que a vida dos ricos e dos pobres se aproxime tornando a sociedade um jogo de oportunidades válidas para todos.

7 - Maior opção pelos pobres, menos compromissos com interesses. A universalidade do amor do discípulo de Cristo olha com paciência e persistência activa para a pobreza que ultraja e procura individualizar as causas para as eliminar e criar condições de vida digna para todos. Há muitos interesses a motivar a vida dentro da Igreja, na Sociedade, nos partidos. Urge inverter o sentido e acreditar que a pobreza dos outros nunca permitirá a felicidade de alguns. Pode parecer. O tempo demonstrará que só uma verdadeira civilização do amor se justifica.

8 - Mais cristãos adultos, menos leigos executores. Neste mundo a Igreja deve aparecer como mediador da dignidade da vida que Cristo quer oferecer a todos. Daí que o futuro da Igreja passa pela capacidade duma verdadeira comunhão que os documentos especificam de afectiva, como arte de querer bem, e efectiva, como responsabilidade concorde no discernir do específico de sacerdote e dos cristãos. O Povo de Deus nunca deverá ser um mero executor de ordens. Toca-lhe uma responsabilidade específica que já cresceu muito e já se manifesta verdadeiramente em muitos lugares. Só que não é suficiente. E, não esqueçamos, a formação é a única forma de permitir uma fé adulta que explica como agir e como intervir em correponsabilidade.

9 - Mais sinodalidade como testemunho e menos sintomas de imposição clerical por parte dos sacerdotes e leigos. O Povo de Deus foi sempre Povo a caminho, procurando terras novas e abrindo-se a experiências estruturantes, inéditos e contrastantes com os povos vizinhos. Não nos podemos comparar à assembleia que impõe o critério da maioria quase sempre delineada ou imposta pelos mais influentes. Caminhar é sinónimo de escutar o que o Espírito diz à Igreja Arquidiocesana ou paroquial para permitir que tudo esteja, de verdade, no "pareceu-nos a nós e ao Espírito". Necessitamos de procurar juntos e os diversos conselhos, são imprescindíveis. Saber escutar, saber dizer, saber aceitar, pode e deve tornar-se o paradigma duma sinodalidade que ainda se encontra longe duma efectiva concretização.

10 - Mais Arquidiocese, menos espírito individualista. O caminho da Igreja foi reconhecido pelo Concílio Vat. II como uma experiência que só se encontra na Diocese e que só aí tem a sua plenitude e verdadeiro significado. O Centro dinamizador e orientador terá de chegar aos espaços mais recônditos e aí encontrar a particularidade dum povo que, no contexto uniformizante da globalização, tem exigências peculiares e insubstituíveis. A credibilidade da Igreja no mundo moderno passa pelo testemunho da unidade. O individualismo pastoral separa da verdadeira vida que existe no todo. Nunca a obediência, interpretada como entrega da vida, exprimiu tão visivelmente a comunhão eclesial como antídoto a tantos interesses parciais e de grupo.

11 - Mais transparência em todos os aspectos e menos preocupação económica. Acolher a Palavra significa disponibilizar-se para possuir um dom que nos é oferecido e encerra as fórmulas para encontrar o necessário. A fantasia do amor consegue descortinar modos novos e permite que não vivamos preocupados com o dia de amanhã. Mas o dom deve tornar-se transparente e mostrar-se em todas as dimensões e significados. Centralizar numa pessoa é contraditório do sentido da comunidade e ocultar pode significar medo da verdade. A transparência mobiliza e responsabiliza, não ofende quem age por critérios do Reino e, no mundo actual, mostra o valor dos processos evangélicos. Ao pobre nada falta e sobra-lhe capacidade para oferecer e permite que de "uns e outros" permaneçamos "reunidos num só corpo".

12 - Mais realismo sereno, menos pessimismo desmotivador. Deixar-se encontrar pela Palavra, para a acolher na sua profundidade, não significa alhear-se e refugiar-se num mundo sonhado e irrealista. Teremos de mergulhar em todos os contextos e ter consciência da verdadeira realidade. Não é fácil. Só que o realismo sombrio não pode colocar-nos em atitude de defesa ou de paralisia. As dificuldades suscitam os profetas capazes de convencer para uma acção concorde, destruidora do que parece um pessimismo que impede a alegria de viver. O caminho que a Igreja deve percorrer neste momento tem de ser o da fé, da coragem e, particularmente, duma alegria serena que manifesta entusiasmo e paixão. Para o cristão a morte nunca é sinónimo de fim; conduz a manhãs novas inesperadas e em que muitos demoram a acreditar. Não queremos ser esta Igreja da esperança activa motivadora da concretização efectiva dum autêntico bem comum?

Neste Ano Sacerdotal, para uma Igreja Sacerdotal gerada pelo acolher da Palavra, quis deixar estas 12 pistas. Não valerá a pena pegar nelas, suscitar reflexão conjunta, promover partilha a publicar na Página da Internet da Arquidiocese ou no nosso Jornal Diário do Minho? Precisamos de estímulos. A vivência é a comprovação da verdade do conteúdo destas afirmações, a partilha pode ser estímulo a motivar-nos para novos estilos de vida e de comunidades.

Pensando nos sacerdotes, e concretamente em vós que sereis ordenados, quero terminar com a palavra do Papa Bento XVI para este Ano Sacerdotal: "Este ano tem como objectivo promover um esforço de renovação interior, de todos os padres para um testemunho evangélico maior e mais incisivo no mundo de hoje." - Renovação interior de todos, identidade procurada num sério exame de consciência, colocar o Evangelho no coração da sociedade moderna. Eis o que o Papa espera. Sejamos capazes dum trabalho pessoal sem desculpas. Na vida mais sacerdotal de cada um teremos uma Igreja mais renovada e levaremos o Evangelho ao mundo, com alegria visível e felicidade no exercício do ministério.

Sameiro, 19-07-09

† Jorge Ortiga, A.P.



Diocese de Braga