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Homilia de D. Armindo Lopes Coelho na celebração do Domingo de Páscoa

D. Armindo Lopes Coelho
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Celebramos a Solenidade da Páscoa, precedida do Tríduo Pascal com Vigília e continuada durante a Oitava. Esta linguagem da Liturgia da Igreja ajuda-nos a compreender a Solenidade do acontecimento e da celebração, e também o sentido e conteúdo da nossa fé cristã. Bastaria reflectir no sentido da palavra e do conceito de ressurreição para nos determos sobre a interrogação que queiramos imaginar, sem tentativas de distorção, de correcção, de reinterpretação ou de referências comparativas. A ressurreição de Cristo é mesmo o mistério fundamental e radical da nossa fé cristã: “Cristo morreu pelos nossos pecados... foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras..., Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e vã a nossa fé”(I Cor. 15, 3-11). Estas palavras do Apóstolo S. Paulo são palavras de quem, antes de se converter a Cristo, perseguiu os Apóstolos, perseguiu a Igreja que emergira da Ressurreição de Cristo e do Pentecostes. São palavras que nos deixam serenos na nossa incapacidade de compreensão natural. São palavras que se inserem bem no contexto de outras páginas da Escritura sobre as quais nos debruçamos mesmo quando celebramos a fé, que não é compreensão ou dedução lógica mas o sim, o amen firme que damos como resposta ao Deus que nos fala e não se engana nem nos engana. O Evangelista S. João, que se reconhece como “o discípulo predilecto” de Cristo sem se identificar como o Apóstolo, conta que no primeiro dia da semana, isto é, no dia depois de sábado, Maria Madalena foi de manhã cedo ao sepulcro onde Jesus fora depositado após a morte, viu a pedra do sepulcro removida, o túmulo vazio, concluiu e avisou Pedro e o outro “predilecto” de Jesus: “Levaram o Senhor do sepulcro e não sabemos onde o puseram” (Jo. 20, 2). Simão Pedro e João “ainda não tinham entendido a Escritura, segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos” (Jo. 20, 9). O resto do relato joanino é tão simples como enigmático ou especulativo: Simão Pedro e João foram também ao sepulcro . João viu as ligaduras que tinham envolvido o Corpo de Jesus, mas não entrou logo no sepulcro. Simão Pedro entrou no sepulcro, viu as ligaduras e o sudário. Viu... João entrou também: viu e acreditou. Estamos perante uma narração verosímil, histórica, natural sobre o caminho para o túmulo, que estava vazio, e até sobre conjecturas explicáveis: roubaram o Mestre. Mas aparece um elemento novo, que nos transcende: João viu e acreditou. Se até aqui “ainda não tinham entendido a Escritura”, agora aparece alguém, João, o discípulo predilecto, que acredita. Mas ficamos ainda todos nós sem justificação lógica ao nosso próprio nível. Por que acreditou? Entretanto, os Actos dos Apóstolos apresentam-nos Pedro a falar às multidões no dia de Pentecostes, e a fazer o primeiro anúncio (Kerigma) do Ressuscitado: “Esse Jesus que vós matastes, cravando-o na cruz, é o Jesus que Deus ressuscitou. E disto nós somos testemunhas” (Act. 2, 23 e 32). E mais tarde, em casa de um militar romano e convertido, e de novo em nome dos outros Apóstolos, Pedro faz o discurso da historia, da identidade e da fé (Act. 10, 34-43): Refere que Cristo foi baptizado por João, apresentado como Messias, conhecido por ter passado a vida a fazer o bem. Recorda que os inimigos de Jesus O crucificaram e que Ele foi ressuscitado por Deus ao terceiro dia, e que Deus permitiu que Ele se manifestasse e aparecesse a pessoas determinadas e nomeadamente a eles, discípulos, que comeram e beberam com o Mestre depois de ter ressuscitado. E é este o testemunho que têm para dar. E acrescenta que do Senhor ressuscitado receberam o mandato de falar ao povo. E finalmente afirma, em aviso que é convicção de fé: “Quem acreditar n’Ele recebe pelo seu nome a remissão dos pecados”(Act.10, 43). Meus caros fiéis: Quando celebramos na liturgia da Igreja o mistério da Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo, evocamos e celebramos acontecimentos e factos históricos que pertencem à História e que, como é o caso da Ressurreição, ultrapassam o nível e o âmbito da História, e são do nível da Fé. O que herdamos dos Apóstolos e da tradição cristã é a Fé que professamos, cultivamos e alimentamos, e da qual damos testemunho. Mas esta Fé, se é herança e continuidade que recebemos e transmitimos, é dom de Deus para as primeiras testemunhas, é dom de Deus para toda a tradição da Igreja, é dom de Deus para todos e cada um de nós. Não estamos a celebrar a Páscoa do Senhor por força de uma tradição que se manteve, mas por força do dom da Fé que nos alimenta e orienta hoje, Fé que é a mesma que atravessou em fidelidade toda a História do Cristianismo e da Igreja. Celebrando a Páscoa ou mistério da Ressurreição de Cristo, afirmamos a nossa condição de cristãos e desta condição damos testemunho público. Mas o testemunho não é apenas conhecimento e transmissão de conhecimento. Testemunho é afirmação da Verdade que conhecemos e nos compromete de tal modo que a rejeição do nosso testemunho põe em causa a nossa fé com a Verdade que anunciamos e põe em causa o conteúdo e a veracidade e o direito e o dever de dar dimensão e expressão pública àquilo que dizemos, àquilo que afirmamos em adesão de Fé a Deus e à Sua Mensagem. Já sabemos de cor o que se diz e se escreve e se procura demonstrar como esmorecimento de fé, como falta de fé, como diminuição de prática religiosa, como debilidades da Igreja, como o nosso futuro comprometido, como amanhã sem futuro, como racionalismo triunfante, como progresso científico a substituir a fé. Hoje ninguém diz que “roubaram o Senhor”, porque ontem proclamaram a “morte de Deus” e já se calaram pela frustração. Mas hoje, sem se questionar expressamente a Ressurreição (que interesse tem para o Agnosticismo de moda?), há os movimentos culturais (mesmo iletrados) e muitas instituições refugiadas e apostadas naquilo que chamam cultura... Pouco lhes interessando o dia de Páscoa ou o feriado preparatório que importa questionar (pelo significado religioso e não pela ponte que prolonga), substituem a fé que não têm por aproveitamentos ou vestígios inscritos na memória, nas tradições populares ou folclóricas, de adultos e de crianças, de liturgias estropiadas ou subvertidas, de práticas gastronómicas ou de turismo explorado ( às vezes chamam-lhe religioso). Certamente que entre nós e eles há de comum a partilha de uma mesma interrogação e perplexidade. Que temos de compreender e tolerar, até porque é facilmente explicável. Mas compreensão e tolerância não pode ser cedência ou abdicação, covardia ou fuga da nossa parte. O Apóstolo S. Paulo aos cristãos de Colossos pregava: “Se ressuscitastes com Cristo, aspirai às coisas do alto... Afeiçoai-vos às coisas do alto e não às da terra. Porque vós morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus” (Col.3, 1-4). Acreditamos que pela morte de Cristo morremos para o pecado. Ele é a fonte da nossa autêntica liberdade. Acreditamos que Cristo ressuscitou e nós somos candidatos à ressurreição com Ele e por Ele. Vivemos pela fé na dignidade da vida a que Cristo nos elevou. Manifestemos afeição, felicidade, por esta condição cristã. E demos testemunho público e feliz desta fé e condição cristã. Porque o Senhor ressuscitou! Aleluia! Porto, 11 de Abril de 2004 D. Armindo Lopes Coelho, Bispo do Porto


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