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Homilia de D. Carlos Azevedo na celebração eucarística pelas vítimas do sismo do Haiti

D. Carlos A. Moreira Azevedo
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Reunirmo-nos para manifestar a nossa comunhão com um povo atingido por uma dramática catástrofe é atrevimento de uma comunidade orante. Como diz o poeta Daniel Faria: “pelos golpes desferidos sei / o tamanho profundo das espadas”. Bastariam as notícias e as imagens do pobre Haiti para nos encher de silêncio, nos esvaziar de palavras, no chão de tanta dor, tanta destruição, tanta ausência!

A Palavra de Deus deste dia parece distante dos sentimentos que aqui nos congregam. Mas reparemos como estas duas leituras sublinham a liberdade de Deus e a liberdade de cada ser humano diante dos problemas.

A narrativa da unção de David por Samuel corresponde a uma construção literária para fazer crer que Deus escolhe para orientar o seu povo quem ele quer. Pretende-se demonstrar como as perspectivas de Deus não são as mesmas das criaturas. Este episódio revela a emancipação do pensamento bíblico em relação ao processo de sacralização. No antigo Israel e nas religiões primitivas houve sempre a tentação de alguns se arrogarem o título de instrumentos de Deus. Para isso se sacralizava o interessado. Ora, os profetas não querem fazer Deus depender de tais fatalidades e apontam para a liberdade do ser humano. Ensinam então que a eleição de Deus se revela na acção livre do ser humano, ainda que viole os tabus e os critérios fixados. É na própria vida de cada pessoa que acontece a descoberta dos sinais de Deus, se gera compromisso e se cria fidelidade. Deus manifesta-se em parceiros e escolhe quem apresenta um terreno disponível para a reciprocidade livre e activa. Em cada hora da história Deus chama-nos a ser livres mensageiros e testemunhas activas do seu amor, particularmente em momentos que gritam por fraternidade. Ser impulsionado por Deus não prende Deus às nossas decisões, mas desata-nos para a fantasia da caridade.

O evangelho cita uma acção atrevida deste David, o eleito da primeira leitura: “entrou na casa de Deus e comeu dos pães da proposição, que só os sacerdotes podiam comer”. A fome justificou romper as regras do sagrado. A narração de S. Marcos põe-nos diante da liberdade dos discípulos de Jesus, apanhados em flagrante delito de violar o sábado, o dia sagrado. A polémica existia no interior do judaísmo: o legalismo dos fariseus seria um modo de fazer a vontade do Pai? Cristo, ao declarar que é Senhor do sábado, afirma ter o direito, fundado na sua missão, de pôr em dúvida as precisões legalistas, ainda que dessacralizando, como ficou patente no caso dos pães da proposição.  Quando o ser humano se abre para Deus, à maneira de Jesus, permite que se realiza nele a iniciativa divina e assim conhece a verdadeira medida do sábado: serve-se dele, sem nunca se escravizar. Ultrapassar mero sentimento ou mecanismos de asfixiante rotina e organizar uma resposta eficaz e sólida é intenção da Caritas Portuguesa ao recolher fundos para socorrer as maiores necessidades após esta primeira fase agitada por tamanha perturbação, vestida de exausto luto.

Jesus veio ensinar-nos que o nosso Deus não é o que manda terramotos ou cheias para castigar os humanos. O processo de dessacralização da natureza, operado pelo cristianismo, não nos retira responsabilidade e amor pela criação e pela natureza. À medida que cresce o conhecimento científico dos fenómenos naturais somos chamados a assumir atitudes coerentes e consequentes no urbanismo e nos critérios de desenvolvimento.

Estamos unidos em oração a todos os que provam com a sua partilha de bens que não estão centrados nas mágoas lusitanas, mas atentos a quem atravessa aflição sem margens. Ao estar presentes nesta celebração somos convidados por Deus, somos escolhidos para ser sinais da sua misericórdia e compaixão na hora atribulada do povo do Haiti. E ser parceiros de Deus impele-nos à liberdade da partilha, dos gestos solidários, à caridade na verdade.

D. Carlos Moreira Azevedo, Presidente da Comissão Episcopal de Pastoral Social



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