Documentos

Homilia de D. Jacinto Botelho na cerimónia de ordenações sacerdotais

D. Jacinto Tomás Botelho
...

A encerrar o Ano Sacerdotal, a Igreja de Lamego dá graças a Deus, e rejubila com a ordenação de quatro novos padres que a misericórdia de Deus nos oferece. Te Deum laudamus, Te Dominum confitemur. É certamente a oração que brota humilde, sincera e comprometida do coração agradecido do André Filipe, do António Jorge, do Bernardo Maria e do José Filipe, que vêem realizado o seu sonho acalentado de há tanto tempo, e também de seus pais, irmãos e demais familiares, aqui presentes, a quem saúdo e cordialmente felicito. A mesma oração agradecida elevam ao Céu os nossos Seminários com as suas Equipas Formadoras e seminaristas, bem como os Párocos e fiéis das paróquias que os viram nascer e acompanharam o seu crescimento, e ainda os Párocos e fiéis das comunidades onde decorreu o seu estágio pastoral. A todos igualmente saúdo do fundo do coração.

Seguindo a orientação do Santo Padre Bento XVI, cuja recente visita a Portugal continua a incentivar-nos, quer pela força e coragem da mensagem que nos comunicou, quer pela autenticidade e humildade do testemunho contagiante que nos edificou, desde a Solenidade do Sagrado Coração de Jesus de 2009, a propósito dos 150 anos da morte do Santo Cura de Ars, apresentado como modelo de vida sacerdotal, temos, sacerdotes e leigos, intensificado a nossa oração, multiplicando muito especialmente a Adoração ao Santíssimo Sacramento, para pedir pela fidelidade de todos os padres, a qual tem como paradigma a fidelidade do próprio Jesus. É um programa de espiritualidade que queremos continuar a cumprir.

Por ocasião dos 50 anos da sua ordenação sacerdotal, João Paulo II começava a reflexão que partilhou connosco, Dom e Mistério, confidenciando-nos: “A história da minha vocação sacerdotal?! É sobretudo Deus que a conhece. Na sua dimensão mais profunda, cada vocação sacerdotal é um grande mistério, é um dom que ultrapassa infinitamente o homem. Experimenta-o claramente cada um de nós, sacerdotes, durante toda a vida. Perante a grandeza deste dom, sentimo-nos bem indignos dele.” E o Santo Padre Bento XVI, na homilia da recente Solenidade do Sagrado Coração de Jesus, na Praça de S. Pedro, em Roma, lembrando o caminho percorrido com S. João Maria Baptista Vianney ao longo do Ano Sacerdotal, repetia-nos uma vez mais que “o sacerdote não é simplesmente o detentor de um cargo, como aqueles de que a sociedade civil tem necessidade, para que nela se realizem certas funções. Ele, ao contrário, faz algo que nenhum ser humano pode fazer por si: pronuncia em nome de Cristo a palavra da absolvição dos nossos pecados, e muda assim, a partir de Deus, a situação da nossa vida. Pronuncia sobre as ofertas do pão e do vinho as palavras de acção de graças de Cristo que são palavras de transubstanciação – palavras que O tornam presente a Ele próprio, o Ressuscitado, o Seu Corpo e o Seu Sangue, e transformam assim os elementos do mundo: palavras que escancaram o mundo a Deus e o estreitam a Ele. O sacerdócio não é por isso simplesmente uma «função», mas sacramento: Deus serve-se de um pobre homem a fim de estar, através dele, próximo dos homens e actuar em seu favor. Esta audácia de Deus – sublinho a força desta expressão usada por Sua Santidade – esta audácia de Deus que Se confia, Ele próprio, a seres humanos; que, não obstante, conhecendo as nossas fraquezas, considera os homens, idóneos para agir e estar presentes em sua vez – esta audácia de Deus é o que de grande se esconde na palavra «sacerdócio». Foi esta sublime grandeza que ao longo do Ano Sacerdotal toda a Igreja, sacerdotes e leigos, procurámos descobrir, meditar e consciencializar.

Se todo o cristão, porque baptizado em Cristo, está revestido de Cristo, como ouvimos na segunda leitura, o que dizer do sacerdote, em que o «eu» de Cristo unido ao seu “realiza a permanência, a unicidade do seu sacerdócio”? São palavras de Bento XVI que continua: “Assim Ele (Jesus Cristo) é sempre o único sacerdote, e todavia muito presente no mundo porque Ele como que nos «funde» em Si e desta forma torna presente a Sua missão sacerdotal.  

O Evangelho de hoje regista a pergunta que o Senhor formulou aos discípulos, antes de revelar-lhes a Sua paixão, morte e ressurreição, já anunciada profeticamente por Zacarias, como o compreendeu S. João Evangelista, profecia que ouvimos na primeira leitura. A resposta consciente, reflectida e em cada dia actualizada por cada um de nós, a essa pergunta - E vós quem dizeis que eu sou? E tu quem dizes que eu sou? - é garantia da fidelidade que prometemos no dia da nossa ordenação. Mas uma resposta com estas qualidades implica uma relação com Ele muito íntima e profunda, o colóquio pessoal com o Senhor, como prioridade pastoral fundamental. Bento XVI afirmou-o numa das respostas às perguntas feitas pelos sacerdotes na Vigília do Sagrado Coração de Jesus, na Praça de S. Pedro: “É verdadeiramente «profissão» do sacerdote rezar, mesmo como representante das pessoas que não sabem rezar ou não têm tempo de rezar. A oração pessoal, sobretudo a Liturgia das Horas, é alimento fundamental para a nossa alma, para toda a nossa acção”.

Mas, como nos dizia o saudoso P. Rocha e Melo no último Simpósio do Clero de Portugal, “o ponto alto de toda a oração, o seu ponto de partida e de chegada é a Eucaristia”. “Ao celebrar cada dia a Eucaristia o sacerdote desce ao coração do mistério. Por isso a celebração da Eucaristia não pode deixar de ser para ele o momento mais importante do dia, o centro da sua vida”. A afirmação é de João Paulo II que, lembrando a proclamação a seguir às palavras da Consagração: Mistério da Fé, interrogava: “Não é daqui, porventura, que a própria vocação sacerdotal recebe a sua motivação mais profunda?” A resposta dá-a o mesmo João Paulo II, na riqueza do testemunho que nos deixou a seguir no livro da suas Bodas de Ouro Sacerdotais. “À distância de cinquenta anos da Ordenação, posso dizer que se encontra cada dia mais, naquele Mistério da Fé, o sentido do próprio sacerdócio. Ali está a medida do dom que ele é, como também ali está a medida da resposta que tal dom requer. O dom é cada vez maior! E é maravilhoso que assim seja. Bom é que um homem não possa dizer nunca que já correspondeu plenamente ao dom. É um dom e também uma tarefa: sempre! Ter consciência disto é fundamental para se viver plenamente o próprio sacerdócio.” Belo programa de espiritualidade sacerdotal e sugestivo compromisso como propósito do Ano que concluímos.

Eu gostaria de dizer-vos, como faço com os crismandos, salvas as devidas diferenças, voltando-me intencionalmente para vós, caríssimos diáconos, prestes a ser presbíteros, que concluístes o itinerário para o presbiterado. Mas, como sabeis, não terminou a vossa formação, a qual reveste agora uma exigência peculiarmente premente. A oração e a Eucaristia, que acima meditamos, com o sacramento da penitência, celebrado pessoalmente, e oferecido a quantos vos procurarão, são a garantia da formação permanente ordinária, como no-la apresentou o P. Amedeo Cencini, no Simpósio do Clero que já referi. A formação permanente é “processo de conformação e assimilação aos sentimentos do Filho obediente, do Servo sofredor, do cordeiro inocente, […] e que tende a plasmar no presbítero os sentimentos do Filho-Bom Pastor ou do Filho-Servo. […] Só o Pai pode formar em nós o coração de Seu Filho Jesus”. A formação permanente, muito mais que qualquer iniciativa, na linha do estudo teológico que as instituições da Diocese possam proporcionar (a formação permanente extraordinária) “é antes graça, graça que vem das alturas todos os dias, que na vida e através da vida sacerdotal, forma o coração do Filho-Servo, graça já concretizada na vocação que é chamamento quotidiano («matinal»), na Palavra-do-dia , na Eucaristia-do-dia, na Liturgia e no Ano Litúrgico, assim como em todos os acontecimentos e relações do dia, servindo-se das mediações humanas”. “O exercício do ministério – continua Cencini numa citação que faz de Torresin - é o primeiro lugar que deve tornar-se formativo, que leva a plasmar a alma do crente constituída pelo padre; se tal não acontece, corre-se o risco de o exercício do ministério desfigurar o padre”. “A formação é permanente […] quando o presbítero toma no seu coração, real e profundamente, a decisão de seguir o Senhor. Só a partir daquele momento a formação permanente tem início e se torna realidade. Por este motivo, para alguns, a formação permanente começou muito cedo, para outros nunca se iniciou, ainda que tenham celebrado 25 ou 50 de sacerdócio”. A interpelação é exigente, mas é condição indispensável para seguir o convite que Jesus nos faz no Evangelho: Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida há-de perdê-la, mas quem perder a sua vida por Minha causa há-de encontrá-la. Esta é a garantia dum ministério eficaz, generoso, alegre e fiel, sem ceder à sedução de seguir vozes de modas correntes e novidades doutrinais e disciplinares que desvirtuam o Evangelho ou à tentação de uma popularidade que nos tornaria simpáticos, mas poderia por em risco a autenticidade do testemunho e a verdade total que sem ambiguidades temos o dever de anunciar.

Voltados para a Mãe do Céu, a Senhora da Assunção, titular desta Catedral, consagraremos antes da Bênção final o nosso sacerdócio ao Imaculado Coração de Maria, como fez Bento XVI em Fátima, e repetiu na Praça de S. Pedro em Roma, no encerramento do Ano Sacerdotal, na Solenidade do Sagrado Coração de Jesus, para que, como rezaremos nessa consagração, “todo o homem veja a salvação do Senhor que tem o rosto de Jesus reflectida nos nossos corações para sempre unidos ao Seu”.

D. Jacinto Botelho, Bispo de Lamego



Diocese de Lamego