Homilia de D. Jorge Ortiga na vigÃlia pela vida nascente
Hoje, véspera do I Domingo do Advento, a Igreja diocesana une-se à Igreja Universal para rezar pela vida nascente. Um apelo lançado a todos os crentes, às comunidades paroquiais, Seminários, as associações, movimentos e institutos religiosos.
A Palavra de Deus recordava-nos que “chegou a hora de acordar do sono”. É um alerta pertinente e desafiante. Pode acontecer que muitos cristãos, absorvidos pelas preocupações do presente, se tenham habituado à ideia da desvalorização da vida nascente, pactuando indirectamente com as políticas que colocam em causa a vida humana dos mais frágeis. Mesmo em tempo de incerteza social não podemos colocar de lado os valores que fundamentam e dão profundidade ao nosso agir ético e moral. A fé não é uma moral mas tem consequências morais para a nossa vida crente.
O “Verbo fez-se carne e habitou no meio de nós”. Tal como Deus cuidou do seu Filho também nós temos a responsabilidade partilhada de cuidar da vida toda e da vida de todos (Cf. E.V. 87-91). O Natal, dia do nascimento do rebento, é o “grande Sim de Deus à vida humana”, porque Deus veio estabelecer a sua tenda no meio dos homens e mulheres através do Seu Filho, Jesus Cristo.
A defesa da vida move-nos pelo princípio de sermos criação amorosa de Deus, formados à imagem e semelhança, dignos de respirar a beleza da criação e de constituirmos laços fraternos no mundo. A dignidade de cada pessoa revela-se na preocupação que cada sociedade tem pela humanização da vida. A vida não pode ser decidida com base em meras vontades legislativas ou políticas à revelia da dimensão humana e espiritual do ser humano.
As orientações da Igreja são claras porque nos movemos pelos passos de Jesus, Ele que é o “Caminho, a Verdade e a Vida”. Por isso “a Igreja, sentindo que deve, com igual coragem, dar voz a quem a não tem”, faz uma reafirmação preciosa e firme do valor da vida humana e da sua inviolabilidade, e, conjuntamente, um ardente apelo dirigido em nome de Deus a todos e a cada um: respeitar, defender, amar e servir a vida é tarefa que Deus confia a cada homem” (Cf. E.V. 5).
Reconhecer a vida como dom inviolável, não manipulável, para além das vontades individuais, coloca-a também no âmbito do religioso. A existência humana só é plena quando compreendida na sua globalidade e inteligibilidade, onde nascimento, crescimento e morte interagem na definição de qualidade de vida. Integridade e complementaridade nem sempre aceite pelas sociedades actuais. Qualidade de vida que integra necessariamente a transcendência e a espiritualidade. Sem o horizonte de Deus a vida perde sentido porque termina na materialidade dos nossos corpos. Se não colocamos o horizonte da vida eterna que sentido terá lutarmos pela vida?
É por causa da desvalorização da vida como um todo (vida-morte-eternidade) que assistimos a um “Inverno Demográfico” que assola o nosso país e o Ocidente. Eu tive a oportunidade de expressar esta minha preocupação no Encontro das Conferências Episcopais da Europa, em Zagreb, afirmando que “estão em causa a viabilidade e a sobrevivência de Portugal como país e como nação. Sem uma reposição do justo equilíbrio geracional entraremos numa situação delicada. A opinião pública vive absorvida pelas questões socioeconómicas esquecendo a responsabilidade ética que determina os comportamentos”.
Na verdade, trata-se de consciencializarmo-nos da necessidade permanente de uma cultura da vida que valoriza a alegria da paternidade e da maternidade, que sublinhe o direito à vida desde a concepção até à morte e que se comprometa na realização de políticas familiares verdadeiras. A aceitação passiva das leis contra a vida – liberalização do aborto, anticonceptivos, eutanásia – promovidas por minorias sob o signo da igualdade deveria levar a repensar o modelo de sociedade que estamos a gerar.
Fabrice Hadjadj, no seu livro Para uma mística da carne, ao comparar a morte premeditada e a morte por guerra ou fome [caso chinês de população excessiva] descreve bem a perversidade de um determinado tipo de compaixão: “O meu filho morrerá, porventura nos meus braços, terá talvez uma vida dolorosa, mas esta cruz da história é melhor do que a calma apavorante de tê-la suprimido sem remorsos – em nome de uma compaixão altaneira, que por nada se deixa surpreender”. Compaixão sem remorsos e sem memória que não é mais do que simples assistencialismo e exercício de poder sobre vontades debilitadas. O problema é esse mesmo: é que já nada nos surpreende e tudo é permitido em nome dos mais altos valores da cidadania!
É curioso ver que muitos apelidaram a Igreja e sua doutrina social de conservadora quando esta alertou para os riscos do modelo económico baseado na maximização dos lucros. Mas, em nome do progresso e do avanço civilizacional, a mensagem da Igreja não foi ouvida. E qual foi o resultado? O pântano económico-financeiro. O mesmo está acontecer em relação aos valores e aos comportamentos.
No entanto, a Igreja continuará a propor uma antropologia da beleza da vida, com base no compromisso, na fidelidade e no respeito do corpo humano. Somos acusados de retrógradas! Não tarda nada veremos as sociedades a repensarem o quadro moral com que edificaram e formaram as novas gerações. Quadro esse que já está a merecer reflexão séria em muitos países tidos como referência absoluta ao nível dos valores humanos e morais.
Por isso, a liturgia da Palavra de hoje é um convite à vigilância. É um apelo para que “abandonemos as obras das trevas e nos revistamos das armas da luz”, porque “os filhos das trevas são mais astutos que os filhos da luz”. O Advento exige conversão pessoal ao evento de Cristo. Conversão que apela ao trabalho pessoal de transformarmos as sombras da morte em vida, de modo a “revestir-nos do Senhor Jesus”.
Preparemo-nos para o Natal para que nasça na sociedade uma nova mentalidade, defensora dos valores da vida. Olhemos para as situações de precariedade e procuremos levar a bênção, a paz e o amor de Deus.
Que Maria e S. José nos ajudem a acolher alegremente o dom misterioso da maternidade e da paternidade para sermos anunciadores da esperança e do amor de Deus por toda a humanidade.
Sé Catedral, 27-11-10
† Jorge Ortiga, A.P.
Diocese de Braga