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Homilia de D. Manuel Clemente na solenidade do Cristo Rei

D. Manuel Clemente
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«O Reinado de Cristo, glória e responsalibidade dos cristãos»

Irmãos e irmãs, especialmente o laicado militante e os que hoje são oficialmente admitidos como candidatos ao diaconado permanente. Membros, nós todos, do Reino de Cristo em que o Baptismo nos inclui, quando também celebramos, em recordação viva e estimulante, os 75 anos da fundação da Acção católica Portuguesa: 1. Celebramos Cristo Rei, celebramos o seu reinado. Isto significa desde já duas coisas: que Ele está vivo; e que exerce o reinado de modo activo e concreto, na realidade novíssima que a sua ressurreição inaugurou. Efectivamente, começou há dois milénios a resposta divina às nossas questões constantes. Começou em Cristo e actua agora, como acontecerá amanhã. Num modo divino, tão surpreendente... Significa vida totalmente entregue, realiza-se no serviço simples. Poucos deram por isso, entre Nazaré e Jerusalém, mesmo os que viram milagres e ouviram palavras únicas…. A ressurreição de Cristo não lhe modificou essencialmente o ser e o agir; plenificou-os, digamos, tornando imediata e precisa a sua acção em qualquer tempo e lugar. A Ele mesmo, Filho de Deus e Pastor nosso, audível na Palavra, actuante nos Sacramentos e na caridade que o seu Espírito nos comunica e, por nós, aos outros. E tudo com aquela singeleza discreta que tanto contrasta com os deslumbramentos mundanos. Cristo reina, sabemo-lo bem. Antes e depois de tantos reinos efémeros e, sobretudo, muito mais a fundo e na raiz das coisas. Antes, porque concretiza a iniciativa divina do verdadeiro amor: atrai-nos precisamente o seu amor, que aqui nos traz e tão intimamente nos fala. Depois, por ser a resposta cabal e tão longamente esperada a toda a inquietação da alma e às últimas indagações da inteligência. Mais a fundo, porque nos atinge e salva lá onde nada chegava e ninguém acedia, verdadeiramente “mais íntimo do que o nosso próprio íntimoâ€, como queria Santo Agostinho. Assim atraídos e envoltos, estamos nós, por Cristo Rei. E comissionados também. Disse-nos São Paulo que o reinado de Cristo vai derrubando fronteira após fronteira, até à última, que é a da morte. Tendo-a ultrapassado em si mesmo, pela ressurreição que sempre celebramos, Cristo vence-a agora pela actividade do Espírito, em todos e através de todos os que se queiram autenticamente seus, de consciência e obras. Inclui-nos e compromete-nos também a nós, os que no Baptismo começámos a ressuscitar com Cristo, feitos seus membros como “sacerdotes, profetas e reisâ€. Inclui-nos a nós, esta descrição do reinado de Cristo, há pouco ouvida: “É necessário que Ele reine, até que tenha posto todos os inimigos debaixo dos seus pés. E o último inimigo a ser aniquilado é a morteâ€. Inclui-nos de algum modo a nós, porque estas sucessivas vitórias de Cristo têm o nosso coração como campo de batalha e contam connosco, para que a caridade vença e convença a muitos mais. Essa é e tem de ser a qualidade da Igreja, Corpo de Cristo no mundo e para o mundo, com aquele coração “pastoral†que o profeta ilustrava em nome de Deus: “Irei em busca das minha ovelhas e hei-de encontrá-las. […] Eu as levarei a repousar […]. Hei-de procurar a que anda perdida e reconduzir a que anda tresmalhada. Tratarei a que estiver ferida, darei vigor à que andar enfraquecida e velarei pela gorda e vigorosaâ€. - Como nos havemos de rever e refrescar nestas palavras, todos os que celebramos a Cristo, como nosso Rei e Pastor! Insistentemente, amados irmãos e irmãs, sintamo-nos integrados e mobilizados neste reinado de Cristo em que, século após século, circunstância a circunstância, mesmo por entre aparentes desmentidos e tantas contradições, a morte vai sendo realmente vencida; e, sobretudo, não desistamos de a vencer com Cristo, corporal e espiritualmente falando. 2. É bom recordarmos e reconhecermos o que foi o verdadeiro progresso no campo dos direitos humanos, acontecido com o influxo do Cristianismo, tão correspondente aliás às melhores expectativas e intuições da humanidade de qualquer tempo e lugar. A dignidade da vida de cada um, da concepção à morte natural; a consistência da família humana, quando um homem e uma mulher em complementaridade essencial e fecunda participam na criatividade divina, para preencherem quantitativa e qualitativamente a terra, na sucessão das gerações; nesta mesma ordem de ideias, a consideração positiva do trabalho humano, como contribuição pessoal para uma economia saudável; ou o papel do Estado, como primeiro responsável pelo bem comum de todos e cada um dos cidadãos, na indispensável subsidiariedade de todos os corpos intermédios, a partir das famílias… Por estas e outras fronteiras se alargou o reinado de Cristo, com as suas próprias palavras e atitudes prolongadas pelo Espírito em todos os autenticamente seus. É deste Reino, só deste Reino, que somos e queremos ser, não recuando um passo, não desertando nunca, não cedendo um milímetro nas alargadas fronteiras em que a vida já venceu a morte. Fronteiras do Reino, vitórias da vida: não podemos recuá-las, antes reforçá-las como cristãos na sociedade e como sociedade fermentada pelo Cristianismo. Dissemos “da concepção à morte naturalâ€, em lema que há-de ser cada vez mais comum. Não desistimos de requerer o respeito pela vida desde o primeiro momento dela, no ventre materno onde acontece; e de requerê-lo também em todo o tempo que perdurar depois, da infância à velhice, considerando positivamente cada uma das suas etapas. Fronteiras do reino, sempre garantidas em cada gesto solidário: com as mães e os pais, na criação de todas as condições necessárias para que a vida comece e se desenvolva; solidários com os mais novos, para que sejam devidamente formados, incluindo nisto o direito dos pais a escolherem o tipo de escola que querem para os seus filhos, em plena paridade estatal – privada, quanto a direitos e custos; solidários com os casais novos, para que sejam igualmente apoiados na habitação, no trabalho e na conjugação dos respectivos horários laborais, para poderem ter uma verdadeira convivência familiar, alargada aliás a outros parentes e amigos, fruindo o Domingo como descanso geral de toda a sociedade; solidários com os idosos, que hão-de ser reconhecidos como indispensáveis elos inter-geracionais, pela contribuição que só eles podem dar, com a sabedoria existencial que é própria da sua idade e experiência; solidários com os doentes de qualquer idade, uma vez que a vida humana inclui também as enfermidades que, devendo ser medicamente ultrapassadas, também podem ser ocasião de amadurecimento próprio e alheio. Quanto a este último ponto, não duvido de que, além dos cuidados paliativos que temos de incrementar e generalizar, o mais determinante será a companhia e a estima reconhecida de familiares e amigos, em que afinal todos devemos tornar-nos uns para os outros, especialmente em relação aos mais necessitados. Ninguém quererá partir se se sentir respeitado e amado. Como sociedade, seríamos nós a “morrer†se recuássemos nesta última fronteira, que exige de nós, bem pelo contrário, a conversão à vida como realidade total e não parcializada por reduções antropológicas, tão ilusórias como egoístas. Sendo verdade que “a cessação de tratamentos médicos onerosos, perigosos, extraordinários ou desproporcionados aos resultados esperados pode ser legítima†(Catecismo da Igreja Católica, nº 2278), não é menos verdade que a vida é uma só e com igual dignidade, quer no vigor saudável quer na última prostração: nem excessos terapêuticos que prolongassem artificialmente a vida, nem “eternas juventudes†que a reduzissem a mera fruição. Transportamos todos uma humanidade complexa, com algo de trágico que não devemos iludir, pois também aí encontramos a nossa condição. 3. Caríssimos irmãos leigos, tão generosamente comprometidos nas diversas acções eclesiais e sociais, pessoal e associadamente; e vós, caríssimos irmãos, que nesta celebração sereis oficialmente admitidos como candidatos ao Diaconado: é a este Reino que pertenceis, sobretudo quando, em vós e à vossa volta, levais de vencida as mil e uma marcas de morte que ainda subsistem, da miséria ao abandono, do egoísmo à violência e da exploração à fraude. Estais onde deveis estar, como fronteiros do Reino de Cristo, vencendo a morte e progredindo sempre, nos pequenos sinais da última vitória que já vos enche a alma: dessa vitória acontecida em Cristo e a acontecer no mundo pela acção do seu Espírito. Do seu Espírito em vós, muito precisamente. – E como é exaltante, amados irmãos e irmãs, como é exaltante e esperançoso, saber que, apesar de tantas dificuldades e resistências, nossas e alheias, estamos com Cristo, do lado certo da vida! Sabemo-lo. Como sabemos também que, activando o reinado de Cristo pela caridade operosa, em sentimentos justos e atitudes concretas, o encontramos a Ele mesmo, sempre e mais. É outra qualidade e exigência da nossa religião. Pelo dogma da incarnação, divindade e humanidade são em Cristo unidade sem mistura, mas em mútua e completa acessibilidade. Podendo ter momentos distintos, como o Evangelho mostra em Jesus, oração e solidariedade aproximam-se definitivamente numa caridade só. Rezamos para servir e servimos para rezar, naquela oração legítima que só a caridade pode preencher, incluindo-nos afinal no próprio Deus Amor. Assim ouvimos no Evangelho, assim percebemos no melhor da nossa vida. Tão simples e imprescindível como isto: só nos relacionamos autenticamente com Cristo quando o fazemos caridosamente com os outros. É esta a verdade e o juízo final das coisas: “Porque tive fome e destes-me de comer; tive sede e destes-me de beber; era peregrino e me recolhestes; não tinha roupa e me vestistes; estive doente e viestes visitar-me; estava na prisão e fostes ver-me. […] Quantas vezes o fizestes a um dos meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestesâ€. – Na verdade, que simples e declaradas são as fronteiras do Reino de Cristo e da comunhão com Ele! E com quanta precisão e urgência coincidem com a integral salvação do mundo! Que glória e que responsabilidade para quem quiser ser cristão deveras! É esta, caríssimos irmãos e irmãs, é esta precisamente a substância da nossa fé, crescendo em esperança pela prática da caridade. Convence-nos quando se realiza assim, e só assim. - E que imenso e situado “programa†é este, caríssimos irmãos e irmãs! Para os fiéis leigos, particularmente os associados nos vários movimentos e obras; para os candidatos ao sacramento da Ordem, no grau que mais vincadamente lhe exprime o serviço humilde aos irmãos e aos pobres. E para todos nós, em geral: aí temos a comunhão de Cristo na comunhão com os outros, saciando fomes e sedes, não deixando isolado nem só a nenhum dos que a vida isola ou aparta. Falar do reinado de Cristo pode parecer abstracto a alguns e utópico a outros… Mas quando o anúncio é realizado num encontro, quando a caridade ultrapassa o egoísmo e nos compromete no serviço do outro, nessa altura tocamos o próprio Cristo ressuscitado que em cada um nos espera, sobretudo nos pobres de todas as pobrezas. Aí nos sabemos, aí nos colocamos como cidadãos do seu Reino, daquela “Cidade de Deus†de que também falava Santo Agostinho, essa que tem como lei o amor de Deus e do próximo, acima de todo o egoísmo mortal. Aí nos sabemos. E por isso mesmo, nesta solenidade de Cristo Rei, também queremos todos, para cada um de nós e para a Igreja do Porto em crescendo evangelizador e missionário, um compromisso maior com o alargamento constante e circunstanciado das fronteiras do Reino. Fronteiras identificáveis em cada gesto fraterno e alargadas em cada compromisso concreto pela justiça e a pela paz, segundo Deus. Sé do Porto, Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, 23 de Novembro de 2008 + Manuel Clemente, Bispo do Porto


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