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Homilia do arcebispo de Braga na ordenação episcopal de D. Pio Alves

D. Jorge Ortiga
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A Ordenação Episcopal de D. Pio Alves de Sousa é para a Igreja um dom de Deus. Um dom recebido e oferecido livremente em prol do testemunho do mistério pascal de Cristo. É em memória de Cristo, Verbo gerado por Deus no seio da humanidade, que celebramos fraternalmente este acontecimento altamente significativo para toda a Igreja.

Em tempo quaresmal a caminho para Páscoa, o Evangelho narra com-paixão a ressurreição do amigo de Jesus, Lázaro, irmão de Maria e de Marta. Uma história real, familiar e de amigos íntimos, onde se joga o diálogo entre a fé, o sentimento e a razão. Um colóquio transparente acerca da realidade última da nossa existência em Cristo, de certeza e de dúvida: «Eu sou a ressurreição e a vida... Crês tu isto?» (Jo 11, 25-26).

Neste encontro íntimo e pessoal, diante da morte humana, Cristo não nos deixa sem resposta. Apresenta a luz da fé como o campo fértil para a realização da promessa e da esperança para além da morte biológica. Diante da verdade “Eu sou a Ressurreição e a Vida” cabe-nos responder: «Sim, Senhor, creio que Tu és o Cristo, o Filho de Deus, que havia de vir ao mundo». Assim respondeu Marta.

Esta experiência de fé tocante e audível ao nosso coração comove-nos. Porquê? Esta narrativa é humana, demasiadamente humana! Quem de nós não experimentou já a dor da perda de um amigo ou familiar? Este acontecimento humano mas também divino seria ininteligível sem o dom da fé, sem a esperança que vem de Deus, sem o exercício da amizade íntima. Jesus ao ver Maria a chorar a morte de seu irmão, «comoveu-Se profundamente e perturbou-Se» Segundo o texto: «Jesus chorou. Diziam então os judeus: “Vede como era seu amigo”». Jesus não tem vergonha de exprimir os sentimentos. Num extremo ato de liberdade e de confiança em Deus, coloca a vida de Lázaro nas mãos do Pai. E “ao verem o que Jesus fizera, acreditaram n’Ele”. É o momento sublime da experiência do transcendente. É este o lugar da oração. Acredita-se e basta!

A intensidade do amor de Jesus pelo seu amigo faz com que o Pai abra o túmulo da morte à vida abundante. Nisto se cumpre a profecia de Ezequiel: “Infundirei em vós o meu espírito e revivereis” e esperança de Paulo: “O espírito permanece vivo por causa da justiça”. O Espírito de Deus, que habita no coração do homem, infunde a luz intensa da ressurreição e “dá vida aos nossos corpos mortais”. Deus, fonte da vida, não deixa que o Homem, seduzido pela mentira e pela desconfiança, permaneça no túmulo da morte e com as ligaduras que actam eternamente o corpo e o espírito à escravidão do mal tão presente na vontade humana.

É diante da espectacularização do humano e da violência gratuita que a Igreja torna audível a emergência da esperança e da fé. Como afirmava Chesterton “um homem que não acredita em Deus acredita em qualquer coisa”. Para que a fé cristã possa florescer e dar testemunho de tudo o que em acreditamos, vemos e ouvimos de Jesus Cristo, precisamos da verdade e da caridade, tão harmoniosamente sintetizadas no lema que D. Pio Alves escolheu para o seu ministério episcopal: “Caridade na Verdade”.

A plausibilidade e credibilidade da fé cristã joga-se na procura da fonte desta Verdade que dá sentido à existência humana. Crer na ressurreição é acreditar na vida de Deus, na sua bondade e no seu amor. É no reconhecimento do humano ferido, das nossas e das feridas dos outros, que seremos curados e salvos. Bento XVI na sua Encíclica Caritas in Veritate di-lo claramente: “Sem Deus, o homem não sabe para onde ir e não consegue compreender sequer quem seja […] Por isso, a maior força ao serviço do desenvolvimento é um humanismo cristão que reavive a caridade e que se deixa guiar pela verdade, acolhendo uma e outra como dom permanente de Deus. A disponibilidade para Deus abre a disponibilidade para os irmãos e para uma vida entendida como missão solidária e jubilosa.” (nº 78).

A ressurreição de Lázaro é antecedida por esta disponibilidade absoluta de Jesus para os seus irmãos e amigos. Ele cura as suas feridas! Se assentirmos às palavras de S. Paulo “o espírito permanece vivo por causa da justiça”, compreenderemos que a “missão solidária e jubilosa da humanidade” permanece órfã por causa da desconfiança e da mentira que assola os centros de decisão da vida pública das sociedades contemporâneas.

Santa Catarina de Sena chama a isto a “nuvem do egocentrismo ou do amor egoísta por nós próprios que nos cega ao ponto de não podermos discernir e conhecer a verdade”, gerando decisões com base no que agrada ou desagrada, beneficia ou promove o bem-estar exclusivo de quem detém o poder ou de quem deles se aproxima. Sem verdade nem moral nas atitudes degrada-se a vida pública mediante a instituição de redes e grupos de influência que se servem dos bens públicos com o fim de enriquecimento pessoal.

Exige-se e reclama-se que se “fale verdade” mas são poucos os que o fazem pessoal ou institucionalmente, e que humildemente se colocam na disposição de reconhecer as faltas e os erros pessoais e coletivos. Diante desta histérica e estéril procura de verdade o que terá a Igreja para dar ao mundo? Inundados pelo ceticismo existencial e sem promessa de futuro, estatizados por um mal-estar político, económico-financeiro, nós cristãos acreditamos que podemos chegar à verdade pelo pensamento, pela experiência da fé, pelo amor e pela esperança, como exercício autêntico da amizade com Deus e da caridade para com os irmãos. Como cristãos, segundo uma feliz expressão do padre Congar, “amamos a verdade como amamos uma pessoa”.

Falta-nos uma consciência moral coletiva capaz de gerar confiança e entrega gratuita às causas humanas para projetarmos com serenidade o futuro. Urge uma mudança de paradigma social que todos reconhecem como óbvia e necessária; urge uma nova cultura cívica e educativa das novas gerações a partir da Verdade e da Fraternidade; impõe-se a participação crítica de todos os cidadãos na denúncia do mal e no anúncio de propostas novas e dignas para a vida humana. O “espírito” de uma nação, de pessoas crentes e não crentes, só permanecerá “vivo” na medida em que se fizer da justiça a ação prática da verdade no amor e do amor na verdade. Enquanto as vítimas da história, da mentira e da maldade humanas não forem justificadas, permanecerá a impunidade e o descrédito de toda sociedade e das estruturas públicas responsáveis pela sadia convivência entre todos os cidadãos.

É neste cenário quase trágico para a sociedade contemporânea que a Igreja tem a missão intemporal de proclamar sem medo e sem mordaças a “verdade na caridade” e testemunhar pessoalmente o valor da caridade que revela a verdade única de Deus. Esta é a missão de todo o Episcopado: “Vigário do “grande Pastor das Ovelhas” (Heb 13, 20), o Bispo deve manifestar com a sua vida e com o seu ministério episcopal a paternidade de Deus, a bondade, a solicitude, a misericórdia, a doçura e a autoridade de Cristo, o qual veio para dar a vida e para fazer de todos os homens uma só família, reconciliada no amor do Pai, e a perene vitalidade do Espírito Santo que anima a Igreja e a apoia na sua debilidade humana” (Diretório Pastoral dos Bispos, nº 6). Manifestar a paternidade de Deus, fazendo de todos os homens uma única família, com a autoridade com que Cristo deu a vida pelos seus, garante assim a perene vitalidade do Espírito Santo, que é força libertadora das trevas que impedem a aurora de uma nova humanidade.

A nossa fé não é crer apenas que a existência humana tem um significado particular, mas que tem um sentido último que transcende todas as nossas palavras e atitudes. Encontrar-se com Deus, a Verdade que sacia, é beber da luz ressuscitadora que não se apaga. Lázaro estava morto. O amor de Cristo, que não era mero sentimento, fez com que recontratasse a vida. Ajudar a encontrar sinais de esperança na vida é o desafio que se coloca neste tempo à Igreja e aos cristãos. Conscientes de que não resolveremos os problemas do mundo, podemos com o nosso testemunho crente alimentar a esperança de um tempo novo e abraçarmos amorosamente a vida de tantos e tantas pessoas à espera de uma presença libertadora.

Na esperança de que, em tempos de perturbação social, haja um compromisso alargado para que a verdade seja amada e testemunhada, e a caridade assumida permanentemente por todos, termino com as sábias palavras de Bento XVI: “Sem verdade, sem confiança e amor pelo verdadeiro, não há consistência e responsabilidade social, e a atividade social acaba à mercê de interesses privados e lógicas de poder com efeitos desagregadores na sociedade” (C.I.V. 5).

É esta fonte de esperança que dá sentido à existência da Igreja e ao ministério de cada um dos seus batizados, nomeadamente dos Bispos, na busca das razões da nossa existência à luz do mistério pascal de Jesus Cristo. Caminhemos para a Páscoa comungando o pão que alimenta as nossas forças e nos faz participar das delícias do banquete da nova Páscoa.

Braga, 10 de abril de 2011

D. Jorge Ortiga, arcebispo primaz de Braga



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