Homilia do bispo da Guarda no 5.º domingo da Quaresma
Celebramos o IV Domingo da Quaresma, também chamado o I Domingo da Paixão. A Quaresma entra, assim, na sua etapa final, apelando a uma preparação mais próxima e intensa para a celebração mistério Pascal.
O Evangelho de hoje relata-nos o episódio da ressurreição de Lázaro e remete-nos para a Pessoa de Jesus, que é Palavra viva e fonte de vida. Desejamos, de facto, também nós aproveitar estas duas semanas de Quaresma que nos separam da Páscoa para aprofundar a nossa relação com Cristo, que, pela Sua Morte e Ressurreição, confirmou a importância da vida de cada um de nós e lhe abriu novos horizontes de esperança, com o anúncio da Vida Eterna.
O quadro da ressurreição de Lázaro apresenta-se-nos carregado de grandes e profundos sentimentos humanos que também eram partilhados pela pessoa de Jesus. Jesus também cultivava relações de amizade e tinha naquela família de Betânia uma referência importante para a Sua vida e o Seu Ministério. Por isso, as irmãs de Lázaro sentiram-se na obrigação de comunicar a Jesus a doença do irmão. Jesus dirige-se para casa deste Seu amigo, com consciência de que Ele já tinha morrido e no primeiro encontro com as irmãs comoveu-se e chorou, disse o autor do Evangelho. No diálogo que, entretanto, estabelece com elas parte da fé na ressurreição final que elas também partilhavam e anuncia-lhes que o estado final de vida ressuscitada já se antecipa na Sua Pessoa, ao dizer – “Eu sou a ressurreição e a vida, quem acredita em mim não morrerá”. O milagre da Ressurreição de Lázaro, que Jesus realiza na comunhão com o Pai, credencia a missão de Jesus e, ao mesmo tempo, diz do seu apreço pela vida, neste caso pela vida do Seu amigo Lázaro e pela relação de amizade que lhe dá consistência.
Jesus é, de facto, a Palavra eterna de Deus Pai que, pela Sua encarnação, entrou no jogo das relações e da condição humana. Ele é Palavra viva e fonte de Vida para quantos se decidem pela relação com Ele, na Fé. Mas é também para todos , através da Mensagem evangélica que dirige a toda a humanidade, um indicador do respeito e do cuidado que merece todo o ser humano, pela vida que lhe foi dada para ele viver na alegria e na esperança e indicador igualmente das condições sociais indispensáveis para que a vida de cada ser humano se possa realizar em todas as suas potencialidades. O evangelho é, de facto, a grande lei da dignidade e da defesa da vida humana enquanto tal.
Ao falarmos de vida humana, queremos referir-nos à vida de cada pessoa vivida com dignidade em todas as suas dimensões. Cada cidadão, para exercer o seu direito a viver com dignidade precisa de condições materiais e, por isso é seu dever procurá-las e ser ajudado pelos outros a encontrá-las. Mas as condições materiais não chegam. As boas relações interpessoais e sociais são ainda mais importantes; o mesmo se diga da cultura que permita à pessoa compreender a sua realidade e a do mundo para, em consequência, tomar as decisões mais corretas. Mas a vida humana autêntica inclui também a abertura necessária aos valores espirituais, que fazem parte da condição humana como tal e ainda à relação com Deus, que chamamos dimensão religiosa da Pessoa humana. Se eliminamos ou esquecemos qualquer destas dimensões da pessoa humana, ficamos com a vida atrofiada e, portanto, sem horizontes, com risco de perder o seu sentido, pois, no fundo, cada ser humano leva em sim mesmo a vocação de exercer a sua responsabilidade na construção da história, mas com horizonte de eternidade. Sendo assim uma cultura transformada em modelo de educação que insiste exclusivamente no individualismo e na satisfação de gostos e necessidades materiais, silenciando, propositadamente ou não, as dimensões humanas mais importantes, como são a gratuidade das relações, as dimensões moral e espiritual da vida ou a sua relação com Deus são uma cultura e um modelo de educação que não servem.
Por sua vez a vida humana, para se cumprir na sua verdade total, precisa de um quadro de vida social que lhe ofereça as necessárias condições para o Seu desenvolvimento. E é esse quadro de vida social que temos de repensar, pois aquele que temos provou que não serve. E não serve não apenas porque não está a conseguir realizar a sustentabilidade económica e financeira do sistema.
Não serve porque umas vezes silencia e mesmo desvaloriza as dimensões mais importantes da vida humana, como são as dimensões moral, espiritual e sobrenatural; outras vezes, porque nas suas disposições legais agride diretamente a vida das pessoas, como são os casos da lei do aborto que temos ou mesmo de leis que afetam negativamente muitos aspetos da instituição familiar. Não se compreende, por exemplo, que uma família com filhos seja prejudicada pelas leis fiscais em relação outras situações que não são família e onde não há filhos.
Também o sistema educativo que temos em Portugal, um sistema de facto teleguiado de cima para baixo e sem capacidade para comprometer as famílias como primeiras instâncias da responsabilidade de definir o modelo de educação para os seus filhos, não serve. E os resultados negativos estão à vista. Só não os vê quem é cego.
Estamos à espera dos primeiros resultados dos censos, mas desde já é muito recomendável que a sociedade portuguesa, na hora de se reorganizar, venha a fazer uma reflexão séria sobre o que eles nos vão dizer sobre a baixa natalidade que está a pôr em causa a própria sustentabilidade do sistema em que vivemos; e também quanto ao que nos vão dizer sobre a distribuição da população portuguesa por todo o território nacional. A sua desigual distribuição, com o abandono de certas zonas do país, já coloca sérios problemas ao todo nacional, mas ainda vai agravá-los. Isto porque é sabido que as grandes concentrações de pessoas em espaços mais reduzidos, sendo embora uma lei geral do movimento das populações, não criam só condições favoráveis à vida humana de qualidade. E como prova disso, vê-se o êxodo que se verifica para fora dos grandes centros quando as circunstâncias de calendário e de tempo o permitem. Isto significa que a autêntica qualidade de vida de todas as pessoas, incluindo aquelas que se concentram nas áreas urbanas, beneficiaria com a redistribuição das populações. Esperamos que apareçam políticos corajosos – o que até agora não tem acontecido – com medidas capazes de inverter este movimento de sentido único para as grandes centros, que continua a esvaziar as periferias. E esta é a hora de, como sociedade que está a repensar os seus modelos de organização, colocarmos este problema nos termos em que ele deve ser colocado, porque essa é a forma de podermos vir a conseguir as necessárias condições para a autêntica qualidade de vida, mesmo dos que se sentem beneficiados pelas ofertas que lhes são feitas nos grandes centros.
Temos de ter a coragem de sair dos nossos túmulos, como diz a leitura de Ezequiel e acordarmos para dimensões da vida que têm andado esquecidas. Deixemo-nos conduzir pelo Espírito e assim encontraremos as condições também sociais que são necessárias para que os cidadãos todos possam viver a vida, com verdadeira qualidade. Para isso temos que fazer, também a nível da organização da sociedade, uma escolha de fundo: decidir e programar em função dos interesses imediatos (e ficamos sob o domínio da carne, como diz S. Paulo) ou decidir e programar com largueza de horizontes, o que inclui todas as dimensões da vida dos cidadãos, incluindo das gerações futuras (este é o domínio do espírito).
Que a celebração da Páscoa para a qual nos preparamos nos ajude a optar pela largueza de horizontes a partir da Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Juncais, Fornos de Algodres, 10/04/2011
D. Manuel da Rocha Felício, Bispo da Guarda
Quaresma