Homilia do bispo de Setúbal na Missa do Dia de Natal
«Estamos a celebrar uma das festas mais importantes para os cristãos que, juntamente com a Páscoa, exprime o conteúdo essencial da nossa fé. E o centro desta celebração é que Deus se fez presente entre nós no seu Filho Jesus, em Belém.
Esta é a alegre notícia com que começava a primeira leitura: “Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a paz, que proclama a salvação e diz a Sião: «O teu Deus reina»”. Esta alegre notícia não soa, porém, num contexto social idílico, em que as pessoas estariam bem e celebrariam triunfos e abundância. Pelo contrário, surgiu numa situação de guerra, destruição e dominação que levou à miséria e ao sofrimento, à frustração e ao desânimo. É nesse contexto que o profeta fala da fidelidade de Deus que não abandona o seu povo e que vem ao seu encontro sobretudo nas horas mais dramáticas da sua história. Ele é um Deus fiel e nunca deixa cair aqueles que ama, tornando possível a reconstrução da vida, da família, dos relacionamentos, do país, da esperança num futuro melhor.
Esta é a primeira mensagem do Natal, também para nós hoje. Mesmo que sintamos o peso da vida, de situações periclitantes de saúde, de relações conflituosas, de consequências dramáticas como as dos incêndios deste verão ou dos dramas de guerras, injustiças, pobreza e refugiados sem eira nem beira, que assolam a humanidade… mesmo no meio de tudo isto, a palavra do profeta vem alentar a esperança, fazer levantar o olhar e dizer-nos: Não desistas, não te sintas só, o teu Deus não está longe e olha-te com carinho, dando-te a certeza de que é possível, com a força do seu Espírito, levantar-se dos abismos da violência, do sofrimento e da morte. Esta palavra entrou no coração de muita gente. E foram esses que realizaram os sonhos de Deus: reconstruíram vidas, aplanaram dificuldades, abriram novas estradas de liberdade, de solidariedade, de futuro. A Palavra de Deus não faz o trabalho por nós, mas torna-nos capazes de realizá-lo. Sim; existem milagres, mesmo que alguns teimem em não os ver! E realizam-se no coração dos homens e mulheres que se deixam contagiar pela Palavra poderosa e carinhosa de Deus. O Natal é a celebração e a proposta desses milagres.
A segunda palavra de boas novas, provém hoje da Carta aos Hebreus e diz-nos que Deus não ficou apenas a olhar, a encorajar e a motivar as nossas lutas e sonhos, mas veio tomar pessoalmente parte na vida da humanidade: “Muitas vezes e de muitos modos falou Deus antigamente aos nossos pais, pelos Profetas. Mas, nestes dias, que são os últimos, falou-nos por seu Filho”. Essa palavra, que movia os profetas e os construtores da humanidade, tomou forma humana “tornou-se carne” e “veio habitar entre nós”. Tornou-se, segundo a palavra da profecia, “Emanuel”, que quer dizer: “Deus connosco”. Assumiu as nossas dores e as nossas debilidades, mas igualmente as nossas capacidades, os nossos sonhos, os nossos esforços de bem, de comunhão, de justiça, de paz. Não deixou de ser o Filho de Deus e portador da força renovadora do seu Espírito, mas tornou-se igualmente um Filho desta terra e desta humanidade, nascido de uma mulher chamada Maria, inserido na história humana, com lugar e tempo bem determinados. E, a partir daí, a história humana conheceu novos horizontes.
A terceira palavra deste dia, centra-se naquilo de mais específico tem o Natal, como memória atualizadora da vinda de Deus para o meio de nós: a forma como essa vinda se processa. O sinal da mudança que o anjo dá aos pastores para reconhecerem o Salvador é pouco solene e não tem nada de pomposo: “Encontrareis um Menino recém-nascido, envolto em panos e deitado numa manjedoura”. Fala de uma família humilde, de um parto em condições improvisadas e sem o conforto de uma verdadeira casa, de uma manjedoura como berço de um bebé… enfim, de uma família de deslocados que brevemente passam à condição de exilados ou refugiados. Não é propriamente a entrada triunfal de quem é anunciado como Salvador e Filho do Senhor do universo.
Para quem estiver habituado a medir o sucesso pelo luxo e os cachets dos espetáculos ou das campanhas publicitárias; quem avalia o poder pela capacidade destruidora dos exércitos e das manobras intimidadoras das grandes potências; quem coloca como lema de vida “eu em primeiro lugar” ou “a minha nação em primeiro lugar”, como modo de trepar sobre a dignidade e os direitos dos outros; quem acha que os músculos e a capacidade destruidora lhe dão o direito de desfraldar a força bruta ou ficar simplesmente indiferente perante o sofrimento, as aspirações de vida, de justiça, de amor dos mais frágeis; quem se acha no direito de usar dos bens que são de todos para as suas manias de grandeza, de destruir a natureza e o futuro; quem pensa e figura o poder de Deus à luz desses critérios; … para todos esses o presépio é completamente insignificante e até perigoso, porque é revolucionário e vai certamente levar as pessoas a sonhar com um mundo diferente, de rosto humano e sustentador de esperança.
A narração do Natal é sinal humano do sonho de Deus para a humanidade. Um sonho que Ele vem sonhar connosco. Nasce bebé, que não pode sequer sobreviver se não tiver quem cuide dele. E aí começa a mudança de mentalidade. Um projeto humano, um projeto divino não se pode impor. Oferece-se, para ser acolhido e cuidado. Nasce na ternura que suscita o vagido de uma criança recém-nascida, que é apelo a que alguém a pegue ao colo, a alimente e a faça crescer. É assim o projeto de Deus é assim que começam os projetos humanos.
O Cuidador do Mundo, aquele que vem libertar-nos da radical fragilidade de seres humanos, que vem abrir horizontes para além deste maravilhoso, mas frágil planeta, nasce menino frágil e, na debilidade do seu vagido de bebé, ensina-nos a lei fundamental do projeto de Deus: é preciso acolher, acarinhar e cuidar das fragilidades! Porque todos somos frágeis, é preciso cuidar uns dos outros, é preciso cuidar sobretudo daqueles em que mais se manifesta a fragilidade: os que precisam de outros pela sua pequenez, insuficiência pessoal, idade avançada ou pobreza de meios; os que, pelos seus erros e passos mal andados comprometeram o seu futuro e o dos outros; os que foram deixados à margem do progresso e buscam desesperadamente uma terra onde possam viver com dignidade e paz; aqueles que, pela fragilidade desta terra são vítimas de desastres naturais ou da incúria e insensatez humana, como os que foram dramaticamente afetados pelos incêndios do verão passado. Sem esse cuidado, a vida não é possível, o futuro fica comprometido, mesmo este planeta virará um deserto.
Perante tudo isso, o Natal é um ato de coragem de Deus: não vira a cara para o lado, não se fecha na sua grandeza, mas envolve-se diretamente na transformação deste mundo; deixar-se crescer nas mãos frágeis dessa humanidade que, para ser salva, tem de aprender a cuidar de si própria e a deixar-se cuidar por Ele.
Que a contemplação do presépio, na simplicidade dos meios, mas no aconchego da ternura e da solidariedade, nos ensine verdadeiramente a rejeitar a lógica destrutiva dos predadores e a tornar-nos mutuamente acolhedores e cuidadores das fragilidades, para que seja possível um mundo mais justo, mais fraterno, onde possa germinar a justiça a fraternidade e a paz.»
D. José Ornelas
[Nota: A Missa da Solenidade do Natal do Senhor presidida pelo bispo de Setúbal na igreja de São Simão, em Azeitão, foi transmitida pela RTP]
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