Homilia do Bispo do Porto na Missa do Corpo de Deus D. Armindo Lopes Coelho 26 de Maio de 2005, às 22:46 ... A Igreja celebra os principais acontecimentos da História da Salvação, centrada em Cristo, através de um calendário devidamente sistematizado e normalmente segundo um critério cronológico hierarquizado. E não deixa de realçar acontecimentos e mistérios que não pertencem a um lugar ou tempo determinado, mas abrangem, qualificam ou inspiram todo o tempo e calendário litúrgico. É o que acontece com a Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo, pelo seu lugar e importância na Igreja Universal, nas Igrejas particulares, instituições ou templos que o tempo consagrou. E a história da Igreja em Portugal estabeleceu tais relações com esta devoção e práticas relacionadas que para nós a designação “SantÃssimo Corpo e Sangue de Cristo†traz à memória colectiva e suficientemente longa outras denominações já consagradas: Festa do Corpus Christi, festa do Corpo de Deus... Quando por isso o saudoso Papa João Paulo II veio ao nosso encontro com sugestões pastorais para o terceiro milénio, com a Carta EncÃclica “Ecclesia de Eucharistia†(Quinta-feira Santa de 2003), com a Carta Apostólica “Mane nobiscum Domine†(7 de Outubro de 2004) e com o convite para celebrarmos o Ano da Eucaristia entre Outubro de 2004 e Outubro de 2005 (para nós será encerrado em 30 de Outubro), encontrou-nos em ávida receptividade e fortaleceu-nos com a solicitude de novas motivações: O Congresso EucarÃstico Internacional no México (no inÃcio do Ano EucarÃstico) e a Assembleia Ordinária do SÃnodo dos Bispos, no próximo mês de Outubro, que vai ocupar-se do seguinte tema: “A Eucaristia fonte e ápice da vida e da missão da Igrejaâ€. Pelo meio acontecerá a Jornada Mundial da Juventude, em Colónia. Tinha a promessa da presença de João Paulo II. Está prometida já a presença de Bento XVI. No termo da viagem-peregrinação-provação no deserto, Moisés falou ao povo de Deus a quem pediu essencialmente que não perdesse a memória da protecção de Deus: “Recorda-te de todo o caminho... Atribulou-te e fez-te passar fome... mas deu-te a comer o maná que não conhecias... para te fazer compreender que o homem não vive só de pão... Não te esqueças do Senhor teu Deus... Foi Ele quem, da rocha dura, fez nascer água para ti e, no deserto, te deu a comer o maná, que teus pais não tinham conhecido†(Deut. 8, 2-16). À distância no tempo e na interpretação autêntica da revelação divina progressiva, a Igreja ensina: “A Missa é, ao mesmo tempo e inseparavelmente, o memorial sacrificial em que se perpetua o sacrifÃcio da cruz e o banquete sagrado da comunhão do corpo e sangue do Senhor†(Catec. da Igreja Católica, 1382. cf. Ecc. de Euc. nº 12). O maná do deserto foi dom de Deus para não esquecer, para recordar. A Eucaristia é o dom por excelência que Cristo nos deixou: da Sua Pessoa na humanidade sagrada, e também da sua obra de salvação. O sacrifÃcio de Cristo na cruz aplica aos homens de hoje “a reconciliação obtida de uma vez para sempre para a humanidade de todos os tempos†(Ecc. de Euc. nº 12). “O sacrifÃcio de Cristo e o sacrifÃcio da Eucaristia são um único sacrifÃcio†(Cat. 1367). Mas a Páscoa de Cristo inclui paixão, morte e ressurreição. Estando vivo e ressuscitado, Cristo torna-se, é, “pão da vida†(Jo. 6,35.48), “pão vivo†(Jo. 6,51) na Eucaristia. Este pão vivo na Eucaristia chama-se presença real por excelência (é substancial, e por esta presença torna-se presente Cristo completo, Deus e homem†(Paulo VI, Myst. Fidei). Ele disse: “Assim como o Pai, que vive, Me enviou e Eu vivo pelo Pai, assim também o que Me come viverá por Mim†(Jo. 6,57). Sendo sacrifÃcio (de uma vez para sempre), a Eucaristia é também banquete permanente, isto é, sempre disponÃvel: “Em verdade, em verdade vos digo: Se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós†(Jo. 6,53). E perante a perplexidade dos discÃpulos, resistentes à aceitação destas palavras, Cristo insistia: “A minha carne é, em verdade, uma comida, e o meu sangue é, em verdade, uma bebida†(Jo. 6,55). Quando após a consagração o Celebrante proclama “mistério da féâ€, os crentes respondem “Anunciamos, Senhor, a vossa morte, proclamamos a vossa ressurreiçãoâ€. Esta fé que as gerações cristãs viveram ao longo dos século é a fé que continuamos a proclamar como mistério em que acreditamos e do qual damos testemunho explÃcito. É o Amen da fé que pronunciamos e vivemos quando comungamos o Corpo do Senhor “entregue†por nós, e o Sangue do Senhor “derramado†por nós. Quando terminamos a aclamação da fé após a Consagração, acrescentamos este pedido: “Vinde, Senhor Jesusâ€, o qual significa a “tensão escatológica†da celebração eucarÃstica. Quem se alimenta de Cristo na Eucaristia recebe na terra a vida divina, como primÃcia da vida futura em plenitude. E é nesta vida recebida (comungada) na Eucaristia que está o segredo da ressurreição futura: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e Eu ressuscitá-lo-ei no último dia†(Jo. 6,54). Assim, “a tensão escatológica suscitada pela Eucaristia exprime e consolida a comunhão com a Igreja celeste†(Ec. de Eucharistia, nº 19), o que responsabiliza os fiéis neste mundo perante a pátria celeste, ao mesmo tempo que faz depender a bem-aventurança celeste dos gestos de fraternidade, caridade, humildade, espÃrito de serviço e compromisso para os que participam na Eucaristia. Compreende-se que a doutrina desenvolvida ao longo dos documentos eucarÃsticos do Papa João Paulo II possa ser sintetizada através de alguns enunciados emblemáticos: A Igreja vive da Eucaristia, porque Cristo disse: “Eu estarei sempre convosco, até o fim do mundo†(Mt. 28,20). Na Eucaristia Cristo está “com uma intensidade sem parâ€. Sacramento por excelência do mistério pascal, a Eucaristia está no centro da vida eclesial, é a fonte e centro de toda a vida cristã. Se os Apóstolos, os Doze, estiveram com Cristo na última Ceia, e aceitaram comer e beber o Corpo e o Sangue do Senhor, entraram pela primeira vez em comunhão sacramental com Ele. E é desta comunhão sacramental que desde então e até ao fim dos séculos a Igreja é edificada: “Fazei isto em memória de mim†(cf. Lc. 22,19). E “a incorporação em Cristo, realizada pelo Baptismo, renova-se e consolida-se continuamente através da participação no sacrifÃcio eucarÃstico, sobretudo na sua forma plena que é a comunhão sacramental†(Ec. de Euc. nº 22). De vez em quando é necessário recordar, como Moisés no deserto e como Cristo no Cenáculo, que “o culto prestado à Eucaristia fora da Missa... está ligado intimamente com a celebração do sacrifÃcio eucarÃstico†(Ec. de Euc. 25). Esta “presença real†de Cristo destina-se à comunhão, sacramental e espiritual, e os fiéis aprofundaram e desenvolveram ao longo do tempo a devoção e a prática da piedade eucarÃstica em adoração a Jesus sacramentado, escondido no Sacrário ou exposto solenemente ou em procissão pelas ruas, cultivando intimamente “a arte da oraçãoâ€. A Eucaristia e a Penitência (a Reconciliação) estão intimamente unidas. Há certamente devotos do sacrifÃcio-sacramento da Eucaristia que não comungam, apesar da fé, pela relutância em se sujeitarem à confissão e reconciliação sacramental. Entraram numa espécie de devoção eucarÃstica habitual e sem mais exigência. E há os que, embora devotos e eucaristicamente piedosos, não comungam por causa da disciplina da Igreja e das normas que afectam situações irregulares. E no entanto, a Igreja é comunhão, vive da Eucaristia que “cria comunhão e educa para a comunhão†(Ec. de Euc. nº 40). “Não é o cálice de bênção que abençoamos a comunhão com o Sangue de Cristo? Não é o pão que partimos a comunhão com o Corpo de Cristo? ... Há um só pão... formamos um só corpo†(1 Cor. 10,16-17). No mistério eucarÃstico, Jesus edifica a Igreja como comunhão. A Eucaristia manifesta esta comunhão. O contexto em que se integra a realidade da comunhão é o mesmo do apelo à comunhão, da comunhão plena e da comunhão possÃvel embora imperfeita, mas é também o problema da tensão gradual no tempo e nas situações concretas, e sobretudo o problema da tensão escatológica que acentua a pertinência da nossa comum exclamação contemplativa: Mistério da Fé! Mistério da fé, a Eucaristia é também mistério da luz; e começa por ser mistério da luz. Quando Cristo se lhe referia de modo ainda inicial e os Apóstolos pareciam desistir de entender, Pedro assume-se como porta-voz da fé dos outros Apóstolos e da Igreja de todos os tempos: “Senhor, para quem havemos nós de ir? Tu tens palavras de vida eterna†(Jo. 6,68). E aos discÃpulos de Emaús, sentados à mesa com o Senhor ressuscitado, abriram-se os olhos da inteligência pelo sinal da “fracção do pãoâ€. E quando descobriram que eram protagonistas da Eucaristia que Jesus celebrava na sua presença, depois de O comungarem, partiram para a missão de O anunciar mais fortemente no interior da Igreja, e de transmitir a consciência de que Cristo é “sinal e instrumento†não só da união com Deus mas também da unidade de todo o género humano†(L.G. 1). Por esta universalidade, o cristão que participa na Eucaristia deve transformar-se em promotor de comunhão, de paz, de solidariedade, ao serviço dedicado daqueles que precisam, porque o Senhor morreu por todos, ressuscitou para todos, e ficou connosco na Eucaristia, isto é, ficou para se dar a todos na Eucaristia. Que assim seja! Porto, Igreja da SantÃssima Trindade, 26 de Maio de 2005 D. Armindo Lopes Coelho, Bispo do Porto Ano da Eucaristia Share on Facebook Share on Twitter Share on Google+ ...