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Homilia do Bispo do Porto no ínicio da Quaresma

D. Armindo Lopes Coelho
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Quarta-feira de Cinzas

Quaresma Quarta – Feira de Cinzas 2004 Iniciamos hoje o tempo da Quaresma, tempo de penitência e conversão, projecto e programa sempre necessários à condição humana, e também preparação habitual para a celebração e vivência do mistério pascal. Deus, através do profeta, faz apelo à nossa conversão interior, confiando no mesmo Deus que é “clemente e compassivo, paciente e misericordioso” (Joel 2, 13). E convida-nos a convocar todo o povo, toda a comunidade de pessoas de qualquer idade e condição, para esta disposição e atitude de penitência e conversão, sem dúvida e essencialmente pessoal mas também social e exterior, até por exigências de verdade e razão apologética. Com razão e pertinência a Liturgia da Igreja nos recorda hoje o ensinamento explícito de Cristo para a prática quaresmal: a esmola ou partilha de bens, a oração e o jejum, com discreção, sem afectação hipócrita, com verdade (cf. Mt 6, 1-6. 16-18). Estas práticas são características da vocação cristã, do ideal e vivência de todos os cristãos, e também sem dúvida dos homens em geral, na medida em que sejam capazes de recorrer a estes meios de ascese, perfeição, paz interior e culto da dignidade humana. Mas a Igreja chama-nos a celebrar o tempo da Quaresma na adopção e aceitação destas práticas de modo mais intenso e finalizado: maior atenção afectiva e efectiva aos irmãos que têm direito ao nosso desapego de bens e consequente partilha; mais tempo dedicado à oração e à meditação da Palavra de Deus; mais acentuada renúncia, pelo jejum, não só aos excessos alimentares, mas até àquilo que é habitual e sobretudo mais necessário, mais apetecível ou mais dispendioso. A própria experiência e tradição da Igreja mantém e ensina que por estas vias a pessoa humana se aperfeiçoa e que a solidariedade humana se concretiza. É o bem da pessoa individual para bem da comunidade humana. Para esta Quaresma de 2004 o Papa João Paulo II enviou-nos uma Mensagem, subordinada ao tema “Quem acolher em meu nome uma criança como esta, acolhe-Me a Mim”(Mt. 18,5). Quando os discípulos de Cristo lhe perguntaram quem seria o maior do Reino dos Céus, o Mestre chamou para junto de si uma criança e deu-lhes uma resposta devidamente ilustrada e tipificada: “Quem acolher em meu nome uma criança como esta, acolhe-Me a Mim”. Exorta-nos a reflectir sobre a condição das crianças e estimula-nos a apreciar e imitar a simplicidade, a inocência e confiança que todos devemos cultivar. E a par das crianças Jesus coloca “os mais pequeninos”, “os pobres, os necessitados, os famintos e sedentos, os forasteiros, os nus, os doentes e os presos” (Mensagem nº1). Tornar-se pequeno, acolher e respeitar os mais pequenos, são dois aspectos desta mensagem quaresmal. É obvio que não pode aqui omitir-se uma referência de exemplaridade e louvor às famílias preocupadas em transmitir aos filhos os valores humanos e religiosos que dão sentido à existência, assim vivida com alegria, optimismo e esperança. Nem podem esquecer-se hoje, como se tivessem perdido dedicação e mérito, as instituições que se entregam à tarefa humanitária e carismática de formar crianças, adolescentes e jovens, retirando-os de condições adversas de miséria, perigos e violência, para fazer deles ( e delas) pessoas com dignidade, valor e utilidade para a sociedade a que pertencemos. E apraz-me neste momento dizer umas palavras de apoio, simpatia e gratidão às instituições diocesanas que continuam a desempenhar esta missão, na fidelidade a carismas providenciais de mérito reconhecido, ontem como hoje. Nem a expressão “formação institucionalizada”, que vem sendo usada como estigma depreciativo, é capaz de anular os frutos e méritos de tais instituições e obras que merecem o nosso apreço, compreensão, solidariedade e gratidão. Na sua Mensagem o Papa assinala, a propósito, o grande drama do nosso mundo e do nosso tempo, em termo genéricos de egoísmo e violência, e concretamente nas seguintes expressões e dimensões: “Abusos sexuais, aviamento à prostituição, envolvimento na venda e uso da droga; crianças obrigadas a trabalhar ou alistadas para combater; inocentes marcados para sempre pela desagregação familiar; pequenos sumidos no ignóbil tráfico de órgãos e pessoas. E que dizer da tragédia da sida com consequências devastadoras em África?” (nº 3). Graças à Comunicação Social, todos temos conhecimento dos casos e respectivas dimensões que estes problemas atingiram e marcaram o nosso país. Se de alguns se poderá dizer que são sinais dos tempos, infelizmente, de outros terá que dizer-se que envergonham a sociedade portuguesa, não apenas pela notoriedade já adquirida no estrangeiro (refiro os abusos sexuais e a prostituição) mas sobretudo porque denotam e denunciam uma sociedade que tem necessidade urgente de curar-se, prevenir-se, regenerar-se fazer penitência, emendar-se, converter-se, ser solidária com verdade e autenticidade. Não podemos senão ouvir de novo o Apóstolo da Igreja, S. Paulo, e para esta Quaresma repetir com ele (2 Cor. 5, 20; 6-2): “Nós somos embaixadores de Cristo; é Deus que vos exorta por nosso intermédio”; “Nós vos pedimos em nome de Cristo: reconciliai-vos com Deus”; “Este é o tempo favorável, este é o dia da salvação”. Necessário e urgente. Meus Caros Fiéis: Porque o apelo quaresmal, nos seus vários aspectos, é individual e pessoal, e também social, exterior e comunitário, a Igreja adoptou a prática de cada Bispo indicar no início da Quaresma a finalidade do contributo penitencial ( ou renúncia quaresmal) em cada ano. Nesta diocese do Porto estamos a construir a Casa Sacerdotal, obra da diocese para o clero que dela tenha necessidade. Bem o têm entendido os sacerdotes, e bem o compreenderam os Institutos de Vida Consagrada mais que uma vez. Ainda este ano daremos o mesmo destino ao contributo penitencial dos nossos fiéis, sem deixarmos de lembrar aos sacerdotes diocesanos que tal partilha de bens também lhes é aplicável, até como expressão de comunhão na dupla face, interna e espiritual, e exterior, social e comunitária. A época em que vivemos tem sido caracterizada e classificada como tempo de depressão colectiva e pessimismo generalizado. Com o pensamento na alegria pascal da Ressurreição, iniciemos um itinerário quaresmal de oração mais intensa, de penitência e de atenção ao outro, aos outros. Procuremos recuperar a Esperança com que celebramos o Jubileu do Ano 2000, rezando com mais frequência e atenção o Pai Nosso, voltando-nos para o Pai comum e experimentando quanto é agradável sentir que somos irmãos. E assim haverá menos ressentimentos, mais compreensão e perdão, mais paz, mais alegria e optimismo. Que assim seja. Porto, 25 de Fevereiro 2004 D. Armindo Lopes Coelho, Bispo do Porto)


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