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Homilia do Cardeal Patriarca de Lisboa na Missa Crismal

D. José Policarpo
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O Sacerdote na Eucaristia

1. Neste Ano da Eucaristia, em Quinta-Feira Santa, dia que evoca, de modo particular, o sacerdócio ministerial e a sua relação à Ceia Pascal, reunidos em presbitério, proponho-me meditar, convosco, a nossa maneira de estar na Eucaristia, a que presidimos com e para o Povo Santo do Senhor. Pode servir-nos de ponto de partida a afirmação que Jesus faz de Si Mesmo, relendo o Profeta Isaías: “O Espírito do Senhor está sobre Mim, porque Ele Me ungiuâ€. Jesus tem uma consciência viva de que foi ungido pelo Pai, unção que interpreta como uma consagração: “O Pai consagrou-Me e enviou-Me ao mundo†(Jo. 10,36). É essa acção de Deus n’Ele que torna Jesus capaz de realizar a sua missão messiânica. Para nós, tudo começou aí, na unção sacerdotal que em nós realizou o Espírito Santo, raiz do nosso ser profundo, da nossa capacidade de exercer o sacerdócio de Jesus Cristo, e da nossa relação única e peculiar com a Eucaristia. O gesto sacerdotal por excelência de Jesus Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote, sacrifício de expiação e louvor em que Ele próprio é a vítima, que oferece de forma cruenta, na Cruz, mas antecipa na Ceia Pascal, Ele quer realizá-lo, até ao fim dos tempos, com o seu Povo e para o seu Povo. Para todos serem capazes de se unir a Ele nessa oferta, todos são ungidos pelo Espírito, isto é, tornados capazes de oferecerem, com Cristo, o sacrifício da redenção. Mas só o podem fazer tendo Cristo como Sacerdote, pois Ele será sempre, até ao fim, o oferente e a oferta. E esta sua presença sacerdotal em cada assembleia do Povo de Deus que se reúne para oferecer o sacrifício da redenção, o Senhor quis exprimi-la e garanti-la através daqueles que ungiu especialmente para isso, tornando-os capazes de serem a presença de Cristo Sacerdote. Para além de sermos membros de um povo sacerdotal, capaz de se unir a Cristo na oferta sacrificial, nós somos sacramentos de Jesus Cristo, tornando-O presente como Sacerdote que oferece. Nós somos chamados a ter com a Eucaristia a mesma relação de Jesus Cristo que, no seu amor infinito pelo Povo, se oferece ao Pai, e a segui-l’O na atitude de dom pessoal e sem limites à Igreja que servimos. 2. Começo esta meditação referindo um texto do Papa, na Encíclica “Ecclesia de Eucharistiaâ€, particularmente significativo nesta Páscoa, especialmente exigente para esse grande sacerdote que é João Paulo II. Depois de referir a “misteriosa contemporaneidade†com a Páscoa de Jesus Cristo, que a Eucaristia nos proporciona, escreve: “Este pensamento suscita em nós sentimentos de grande e reconhecido enlevo. Há, no evento pascal e na Eucaristia que o actualiza ao longo dos séculos, uma «capacidade» realmente imensa, na qual está contida a história inteira, enquanto destinatária da graça da redenção. Este enlevo deve invadir sempre a assembleia eclesial reunida para a celebração eucarística; mas, de maneira especial, deve inundar o ministro da Eucaristia, o qual, pela faculdade recebida na ordenação sacerdotal, realiza a consagração; é ele, com o poder que lhe vem de Cristo, no Cenáculo, que pronuncia: «Isto é o meu Corpo que será entregue por vós»; «este é o cálice do meu Sangue, (…) que será derramado por vós». O sacerdote pronuncia estas palavras ou, antes, coloca a sua boca e a sua voz à disposição d’Aquele que as pronunciou no Cenáculo, e quis que fossem repetidas de geração em geração por todos aqueles que, na Igreja, participam ministerialmente do seu sacerdócioâ€. Que entende o Santo Padre por enlevo? A palavra sugere encantamento, emoção amorosa, adesão contemplativa do coração. São as experiências que saciam o coração que, normalmente, provocam essa atitude de enlevo. Foi de enlevo a reacção dos Apóstolos, no Tabor, aquando da transfiguração de Jesus: que bom é estarmos aqui. A expressão sugere que a Eucaristia não é algo que se faça, mas mistério de vida a que nos abandonamos, gerando uma plenitude contemplativa. O que é que, na Eucaristia, pode provocar em nós este enlevo? Antes de mais, a misteriosa contemporaneidade com a Última Ceia. Jesus está agora, em cada Eucaristia, a oferecer-se, envolvendo-nos e tornando-nos protagonistas desse gesto máximo da redenção. Na Eucaristia, ao oferecermos Jesus Cristo, quebramos várias fronteiras: a do homem e do divino, pois profundamente humanos, fazemos algo que só Deus pode fazer; a do pecado e da graça, pois sendo pecadores, realizamos o mais puro dos gestos do amor divino; a que separa o passado, do presente e do futuro, pois ao fazer memória da Páscoa de há dois mil anos, realizamos no presente um acto que inaugura a eternidade. Mas, o motivo mais comovedor desse enlevo é a nossa identificação com Cristo na acção eucarística, dizendo nós e fazendo Ele o que só Ele pode fazer. Daqui brota uma exigência de radicalidade no dom da nossa própria vida. Nós dizemos realmente, “este é o meu Corpo, tomai e comeiâ€; não oferecemos apenas a vida do Senhor, mas a nossa própria vida, nós que, desde o baptismo, já formamos, com Ele, um mesmo Corpo. O “Corpo de Cristoâ€, oferecido na Eucaristia, é o Corpo ressuscitado do Senhor, que se tornou, através da fé e do baptismo, corpo místico de Cristo. Esta radicalidade de oferta seria impossível, se não a fizéssemos unidos a Jesus Cristo e em seu nome. Mas n’Ele e com Ele, é realmente oferta da nossa vida, na sua totalidade, tudo o que somos, temos e sabemos. A Eucaristia é a fonte da santidade de vida do sacerdote, é o sacramento da sua conversão contínua, a força da sua fidelidade. A espiritualidade sacerdotal é, inevitavelmente, uma espiritualidade eucarística. 3. Na medida em que o sacerdote se deixa envolver por esse enlevo eucarístico, conduz toda a assembleia celebrante a esse encantamento do mistério e à entrega generosa da vida. O presidente de uma assembleia eucarística transforma um conjunto de pessoas que se congregaram, em assembleia oferente e em povo sacerdotal. É isso presidir à Eucaristia, não apenas porque se garante a eficácia sacramental, pronunciando as palavras da consagração, mas porque em tudo, unção, palavra e gestos, se vai conduzindo aquela assembleia para o âmago da celebração do mistério. Como os antigos profetas sacerdotes, os sacerdotes de Cristo oferecem a Eucaristia numa profunda e comovida oração. Na Eucaristia, o sacerdote é, fundamentalmente, um grande orante, com a fé e a unção que toda a oração exige. Reza, em nome de Cristo, ao Pai; reza com a Igreja e em nome da Igreja, povo crente, a Jesus Cristo; reza em seu próprio nome e em nome da assembleia a que preside, comovido com a dignidade e o privilégio de presidir à acção sagrada: “nós vos damos graças porque nos admitistes à vossa presença, para vos servir nestes santos mistérios†(Oração Eucarística II); ou “não olheis aos nossos pecados, mas à fé da vossa Igreja†(Oração Eucarística). E na medida em que o sacerdote que preside vai conduzindo a assembleia a uma verdadeira atitude eucarística, arrasta a comunidade para a oração e tem a alegria de sentir que toda a oração do sacerdote é sempre oração da Igreja e com a Igreja. Esta densidade eucarística de oração prolonga-se, depois, na oração do sacerdote, na Liturgia das Horas, na adoração, na meditação silenciosa, na celebração dos outros sacramentos, na condução do Povo de Deus nos caminhos de aprofundamento da fé e de prática da caridade. A Eucaristia abraça a totalidade da vida do sacerdote. O mistério da Eucaristia transcende-nos, mergulhamos nele com humildade e confiança, na expectativa da sua completa manifestação. Mas este enlevo eucarístico está ao nosso alcance, desde que presidamos na humildade da fé, na confiança da oração, com a gratidão ao Senhor de nos ter escolhido e consagrado para este ministério. Oxalá, nesta Páscoa, este enlevo inunde o nosso coração a ponto de conduzirmos as nossas comunidades a esse mesmo enlevo, expressão da nossa comunhão de amor com Cristo que, mais uma vez, quer celebrar a Páscoa connosco. Sé Patriarcal, 24 de Março de 2005


Semana Santa