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Homilia do Cardeal Saraiva Martins na celebração aniversário do cinquentenário do Cristo Rei

D. José Saraiva Martins
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1. A ideia de erigir sobre Lisboa um monumento à semelhança do Cristo Redentor do Rio de Janeiro, tornou-se projecto nacional com o voto dos Bispos portugueses em Fátima, a 20 de Abril de 1940, segundo o qual se comprometiam, caso Portugal não entrasse na guerra, a mandar erguer sobre a capital “um monumento ao Sagrado Coração de Jesus”. Tendo o nosso país sido poupado à maior, à mais sangrenta e monstruosa guerra da história da humanidade, o voto foi cumprido. Este monumento é, pois, um ex-voto tornado santuário nacional, em preito de gratidão a Deus pelo dom da paz. Construído com a colaboração de muitos — e também graças à renúncia e partilha de milhares de crianças — é um gesto colectivo da Igreja de Portugal, que exprime a comunhão entre todos os seus filhos, pastores e leigos. A este gesto nos associamos também nós hoje, aqui reunidos para celebrar o primeiro cinquentenário da sua inauguração, a 17 de Maio de 1959, então Domingo de Pentecostes. Fazemo-lo numa expressão de reiterada gratidão nacional, mas também de renovado empenho pessoal, comunitário e eclesial, cujo significado nos é indicado pela Palavra de Deus, em especial, pelos textos da presente liturgia eucarística. 2. As leituras que acabámos de escutar situam-nos desde logo no centro da nossa fé: “Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus. Porque Deus é amor” (iJo 4, 7-8). “Deus é amor”. Como é verdadeira, densa de significado esta definição lapidar de Deus! “Amar” “é querer bem ao outro, como o seu maior bem, e querer o bem do outro, como se do próprio bem se tratasse”. “Amar é tudo dar e dar-se a si mesmo”, como dizia Santa Teresa de Lisieux (Poesia 54,22). É assim que Deus ama. Ele tomou a iniciativa de nos fazer participar da Sua vida. Para isso enviou o Seu Filho, a fim de nos comunicar o seu amor, esse amor que Jesus testemunhou até ao fim da sua vida, dando-se por nós na Cruz. Um dom que passa a ser realidade pessoal, íntima e vivificante, do crente no dom do Espírito Santo, tal como afirma São Pedro na primeira leitura (cf Act 10,47). Mas para que o amor seja completo, ele deve ser recíproco. O amor requer uma resposta. Dela nos fala o Evangelho. 3. “Assim como o Pai me amou, também eu vos amei’ Permanecei no meu amor” (Jo 15,9). Jesus começa por apontar o amor do Pai como sendo a fonte, o modelo e horizonte do seu amor. Ora é próprio do amor oferecer comunhão, partilhando a própria vida e intimidade. Jesus chama-nos “amigos”, porque nos faz participantes da sua intimidade com o Pai. E urge connosco para que dela façamos a referência constante da nossa vida. “Permanecei no meu amor”. Tal é o primeiro desejo expresso por Jesus, porque tal é também o primeiro imperativo do amor, do verdadeiro amor, do amor de Cristo, do amor do Evangelho. Não é esta a base da espiritualidade do Sagrado Coração de Jesus: permanecer n’Ele, fazendo da oração contínua, entendida como união perene a Cristo, o alicerce da vida cristã? Assim o compreendeu e fez a grande difusora desta devoção, Santa MargaridaAlacoque, cujas relíquias peregrinas no nosso país se encontram hoje aqui presentes nesta celebração. Deste imperioso dever é símbolo eloquente o monumento a Cristo Rei. Dedicado ao Coração de Jesus, a quem, juntamente com o Imaculado Coração de Maria, o Episcopado português consagrou há cinquenta anos a nação portuguesa, ele foi erguido como “sinal visível de como Deus, através do amor, deseja conquistar para Si toda a humanidade”, segundo o voto expresso pelos mesmos prelados em Fátima, os quais o dedicaram a “Cristo Rei”, designação pela qual é hoje conhecido por todos. E com razão, queridos irmãos e irmãs! Porque Cristo é deveras Rei! Não em sentido político ou triunfalista (cf Jo 18,36), mas no sentido bíblico do termo. Na realidade, na Sagrada Escritura, “Rei” designa o chefe que guiava o povo, o acompanhava nos seus projectos, participando das suas dificuldades, expondo por ele a sua vida, governando-o com amor, justiça e equidade. É neste sentido que Cristo é Rei: porque Ele nos amou, dando a sua vida por nós, nos acompanha e se interessa por nós com real afecto e amor, unindo-se a nós numa íntima comunhão pessoal que, neste caso, nem a morte pode destruir. 4. O símbolo bíblico mais significativo da figura de Cristo Rei é, sem dúvida, o seu Coração. Nos Evangelhos, o Coração de Jesus aparece em dois contextos. É, por um lado, o Coração manso e humilde de Cristo Redentor, trespassado depois de Ele ter consumado na cruz a obra que o Pai lhe confiara, abrindo-se como manancial perene de vida nova para a humanidade; e é, por outro, o Coração de Cristo ressuscitado presente no meio dos seus, mostrando-se aos discípulos como fonte de paz, e comunicando-lhes a sua mesma missão reconciliadora: “Ide e anunciai a Boa Nova a todas as criaturas”. O Coração de Jesus é pois a expressão do amor divino-humano de Cristo; sinónimo da sua Pessoa e missão; síntese da sua paixão e ressurreição; imagem da vida nova que flui do mistério salvífico de Cristo e nos é comunicada pelo Espírito Santo, sujeito primordial da missão reconciliadora da Igreja, que, no tempo, se prolonga até aos confins da terra. A devoção ao Coração de Jesus é, portanto, a devoção ao Amor, a Deus que é Amor. Que grande espiritualidade tem este Santuário! Que dom e que graça Deus e a Igreja lhe concederam: ser sinal visível do amor e dar a conhecer o Coração que ama com amor infinito a todos os que o visitam, colocando-os no Seu Coração e incendiando-os no seu amor, tornando cada peregrino apóstolo da esperança. 5. Tal simbologia está bem patente neste monumento. Elevado às portas de Lisboa, o Cristo Rei saúda diariamente milhões de pessoas que entram e saem da capital, oferecendo a todos, não só a mais bela vista sobre a capital, mas também a mais bela visão a partir da capital e dos concelhos limítrofes! Nele está representado o Coração de Jesus, rasgado, aberto em direcção aos quatro pontos cardeais da terra, para assim abarcar toda a humanidade. É um Coração exposto, propositadamente centrado no peito, para dizer que o amor a Cristo, centro da sua vida e mensagem, só será verdadeiro se, partindo do nosso íntimo, se manifestar ao nosso próximo, levando-nos a sair e a esquecer-nos de nós mesmos para ir ao seu encontro de braços abertos, para o acolher e aceitar incondicionalmente, com amizade, respeito e confiança. 6. É isto mesmo que veio recordar Nossa Senhora ao mundo em 1917. A mensagem de Fátima é, com efeito, essencialmente, uma mensagem eucarística, de amor e de paz. É esta mensagem que a Senhora “mais brilhante do que o sol” nos lembra hoje através da sua imagem, a da Capelinha das Aparições, presente agora aqui como o esteve há 50 anos, quando foi inaugurado este monumento. Maria, de facto, foi a mulher nova, a primeira discípula de Jesus, que ousou viver o mandamento novo do amor, em toda a sua radicalidade, aceitando expor a própria vida pela salvação da humanidade, ao aceitar ser Mãe de Deus, na anunciação do Senhor. Renovemos a nossa fé em Cristo Rei, no seu Sagrado Coração e no da Sua e nossa Mãe. Confiemos-lhes, de novo, o nosso País e toda a humanidade, para que o seu amor reine e o mundo tenha paz: a paz dos corações enfim reconciliados; a paz nas nossas famílias e locais de trabalho; a paz nas nossas comunidades eclesiais e em toda a Igreja; a paz no nosso País e no mundo inteiro. Este é o monumento da paz e lembra-nos que a paz é uma das exigências maiores do tempo actual, deve lembrar-nos que a paz tem de ser construída não pelos canhões, não pelas armas, mas pelo amor, pelo respeito do homem e da sua dignidade, dos seus direitos fundamentais, das suas aspirações. Só assim contribuiremos para construir realmente a paz, fundada na justiça, na verdade, não no ódio, não na desigualdade, não na desconfiança. Esta é uma lição que nos dá hoje o monumento ao Cristo Rei. Peçamos a Cristo Rei que nos fortaleça o coração, para, impelidos pelo seu amor, lutar sempre, com coragem e entusiasmo, para libertar a sociedade do nosso tempo, como se exprimem os bispos portugueses, da escravidão e da injustiça, para ser defensores da vida em todas as circunstâncias, desde o seu início até ao seu fim natural, ser capazes de perdão, estar atentos à salvaguarda da criação, ser construtores da paz e arautos de esperança. Peçamos ao Sagrado Coração de Jesus e ao Imaculado Coração de Maria, em especial, pelos jovens de hoje, para que fortes e generosos na fé, sejam sempre, como recordava João Paulo II, as “sentinelas da manhã” e se comprometam com o Evangelho, aguardando, fortes na esperança, o alvorecer da nova civilização do amor (cf NMI, n.9), aguardando o alvorecer de um mundo novo, mais justo, mais humano e, por isso mesmo, mais cristão. Assim seja! Almada, 17 de Maio de 2009 Cardeal José Saraiva Martins


Santuário de Cristo Rei