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Homilia do cardeal-patriarca de Lisboa na missa de abertura do Ano Judicial

D. José Policarpo
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“Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça”

Este ano escolhi, como leitura do Santo Evangelho, nesta celebração com que quisestes dar a dimensão crente e orante à abertura do novo Ano Judicial, o texto de São Mateus, mais conhecido como Sermão da Montanha ou Evangelho das Bem-aventuranças (Mt. 5,1-12).

O contexto ajuda-nos a compreender o texto. Jesus está rodeado de uma multidão que O segue para O escutar. Já se tornara claro que a sua mensagem é portadora de uma novidade transformadora, anúncio de uma nova ordem da convivência humana, a que Ele chama o Reino de Deus. Várias passagens dos Evangelhos mostram-nos que Jesus é sensível às multidões, pressente os seus problemas e anseios, comove-se perante elas, porque parecem um “rebanho sem pastor”, alimenta-as miraculosamente com a multiplicação dos pães.

Naquele dia, num monte frente ao lago de Tiberíades, também chamado mar da Galileia, Jesus, como rabino oriental, senta-se no chão e convida a multidão a sentar-se à sua volta, e fala-lhes, tendo em conta a realidade das suas vidas, que O comove, e desafiando-os para um novo horizonte, onde a vitória sobre os problemas presentes ganha um novo ritmo e uma outra projecção. A palavra “bem-aventurados” é a designação escatológica atribuída àqueles que já atingiram a meta, o fim da sua caminhada. Ao designar assim aqueles que estão dispostos a pôr-se a caminho, Jesus anuncia o ritmo de todas as lutas deste mundo pela dignidade e pela plenitude humanas. A palavra hebraica tem esse sentido dinâmico. Livremente, poderíamos traduzi-la assim: vós os pobres ponde-vos a caminho em ordem a uma nova vivência da pobreza.

É neste contexto que Jesus, ao falar àquela multidão, refere duas vezes os sedentos de justiça: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados”. E mais à frente: “Bem-aventurados os que são perseguidos por lutarem pela justiça; a esses pertencerá o Reino dos Céus”. Jesus reconhece que aquela é uma multidão faminta de justiça. E o enquadramento histórico ajuda-nos a situar o problema: Povo ocupado pelos romanos, sobrecarregado de impostos, limitado na sua identidade espiritual. Mas àquela multidão sedenta de justiça, Jesus abre o horizonte da verdadeira justiça, no caso do Israel muito ligada à sua tradição espiritual e religiosa. A justiça na perspectiva religiosa significa o reconhecer a grandeza e a dignidade do homem, como Deus o criou e deseja. É uma vitória sobre o mal, exige a renovação interior do homem, possível com a força de Deus e a sua intervenção na história. É por isso que neste ensinamento de Jesus à multidão, a justiça passa pela renovação do coração, onde todas as realidades humanas passam a ser vistas com um novo olhar. Aquela multidão, sedenta de justiça, Jesus não ignora as injustiças concretas que sofrem, mas desafia-os a irem mais longe, a desejarem a verdadeira justiça, que supõe a redenção.

Uma verdadeira promoção da justiça não pode limitar-se ao horizonte concreto do imediato, supõe um processo cultural e um ideal exigente de humanidade. São Paulo tinha razão quando faz coincidir o conceito de “justificação” com o de salvação. Não basta ser considerado justo, é preciso sê-lo, disposto a lutar e a sofrer pela justiça.

O quadro que Jesus enfrenta naquela multidão, sedenta de justiça, repete-se, vezes sem fim, ao longo da história. A sede de justiça é mobilizadora, pode originar movimentos de transformação da sociedade. Estamos a assistir, no momento presente, a grandes movimentos de transformação da sociedade, originados nessas multidões sedentas de justiça. E entre nós está a criar-se uma consciência colectiva, cada vez mais abrangente, a exigir reformas na justiça. É um erro histórico não ouvir essas multidões, embora sabendo que essas multidões raramente baseiam a sua reclamação em dados analíticos precisos: reagem a acontecimentos e pressentimentos. Mas a sua reivindicação é clara: querem caminhos renovados de construção da justiça.

Um serviço judicial é apenas um meio nesta busca da justiça. Mas não se pode pedir-lhe tudo; a busca da justiça é um processo cultural e espiritual, supõe a educação, a ordem ética, uma sã antropologia. Um Estado de Direito é apenas uma dimensão de uma sociedade justa, onde a dignidade do homem seja respeitada e promovida. Mas este clamor colectivo tem de ser escutado, tem de nos mobilizar a todos para sermos justos, pois só homens justos podem construir uma sociedade justa.

Termino com as palavras de Jesus: Bem-aventurados aqueles que sofrem, que são perseguidos, por causa da justiça. A todos os obreiros da justiça, no nosso País, eu digo: se estiverdes entre esses que sofrem, tende coragem, não desanimeis, porque está-vos destinado o Reino dos Céus.

Sé Patriarcal, 16 de Março de 2011

D. José Policarpo, Cardeal-Patriarca



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