Documentos

Homilia do Cardeal-Patriarca de Lisboa no Domingo de Ramos

D. José Policarpo
...

«Este ano celebramos a Páscoa num ambiente de insegurança e de incerteza, provocado pelo terrorismo. No Iraque, na Palestina, em Madrid, uma violência cruel e irracional sacudiu a sociedade»

1. Estamos, de novo, a celebrar a Páscoa. E esta tem de ser, este ano, a Páscoa da confiança e da serenidade. Em cada celebração pascal entrecruzam-se duas dimensões: a memória da morte de Cristo, que com a mansidão de um cordeiro conduzido ao matadouro, se oferece, serena e generosamente, pela salvação da humanidade, e as tensões e sofrimentos da humanidade, em cada tempo e em cada ano, a mostrarem que a Paixão de Cristo continua actual e necessária, como fonte misteriosa da Confiança. Já foi assim naquele ano, em Jerusalém. A serenidade do Senhor, a superioridade que lhe vêem da consciência de ser o Filho de Deus, da natureza da Sua missão e da liberdade com que oferece a própria vida, contrastam com os ódios e tensões daquela Cidade, onde as autoridades religiosas e os representantes do povo, incapazes de reconhecerem em Jesus de Nazaré o Messias prometido, não hesitam em recorrer à violência e à mentira, arrastando as multidões, para terem perante o representante de César uma subserviência que rondava a hipocrisia. O Senhor tinha razão para chorar por esta multidão e pela sua cidade. Naquele ano, em Jerusalém, a festa da Páscoa foi agitada, não foi a festa da libertação, da alegria e da confiança. Foi-o, certamente, para Jesus que Se entrega serenamente e para um grupo de fiéis discípulos, entre os quais estava Maria, Sua Mãe, que em silêncio captam a fecundidade transformadora do sacrifício de um inocente. O ano passado celebrámos a Páscoa em plena invasão do Iraque, decisão que dividiu a comunidade internacional, gerou receios, trouxe sofrimento e violência. Nessa altura, nesta mesma celebração do Domingo de Ramos, disse-vos: “A Páscoa deste ano é ensanguentada pelos horrores da guerra. Quanto sofrimento escusado e inútil. A reacção da Igreja só pode ser a de se unir profundamente ao seu Senhor, numa aliança de amorâ€. Este ano celebramos a Páscoa num ambiente de insegurança e de incerteza, provocado pelo terrorismo. No Iraque, na Palestina, em Madrid, uma violência cruel e irracional sacudiu a sociedade, já habituada a lidar com as suas dificuldades e problemas em ambiente de paz social. A violência choca, a ilógica da estratégia confunde; a própria incapacidade de compreensão do fenómeno, gera medo e insegurança; a superficialidade com que se propagam boatos e se conjecturam ameaças, não facilita a objectividade necessária para solidificar a serenidade. Para nós cristãos, esta Páscoa tem de ser a Páscoa da confiança. 2. Como podemos nós, os cristãos, que celebramos a Páscoa, contribuir para este clima de serenidade e confiança? Antes de mais, ouvindo e acolhendo a Palavra de Deus. É nestes momentos de insegurança humana que podemos perceber melhor como só a Palavra de Deus e a fé podem ser fonte de sabedoria, de serenidade e de paz. Na primeira leitura, o Profeta Isaías, referindo-se ao Servo sofredor, diz: “O Senhor deu-me a graça de falar como um discípulo, para que eu saiba amparar, com uma palavra, os que andam extenuadosâ€. Eis a mensagem desta Páscoa: perante os nossos irmãos dilacerados pela violência, perante multidões extenuadas e assustadas, reagir como discípulos, falar como discípulos de Jesus Cristo. E o que pode isso significar? * Antes de mais, segui-l’O como nosso Mestre. Só a sua Palavra nos pode guiar, ela tem de ser a fonte do nosso discernimento. Ele começa por nos iluminar com o exemplo da sua serenidade no sofrimento. Há uma fecundidade misteriosa no sofrimento inocente. A morte de Cristo foi a maior injustiça de toda a história da humanidade; mas a fecundidade dessa morte salvou o mundo. Só Deus sabe se tantas vítimas inocentes não são sementes lançadas à terra, de onde germinará, dolorosamente, a paz. A morte de Cristo permite-nos ter sobre o drama da história, a visão profunda do mistério. Os inocentes sacrificados, acabarão sempre por triunfar. Estamos a assistir à longa paixão da humanidade, que na morte de Cristo, terá uma fecundidade misteriosa. * Seguir Cristo como discípulo significa também renunciar à violência como solução. O texto de São Lucas recorda-nos que o Senhor, no momento da Sua prisão, não aprova a violência de alguns discípulos, que O querem defender a golpes de espada. Antes cura bondosamente a orelha decepada de um dos soldados. Com esse gesto, o Senhor é Mestre, ensina aos seus discípulos que não se responde à violência com a violência, porque Ele sabe que a violência nunca será caminho para a harmonia da paz. Nos tempos que estamos a viver, é enorme a tentação de responder à violência com a violência, que se tornaria justificável pelo direito que as pessoas e os povos têm de se defenderem. A violência nunca pode ser vingança, e o direito de defesa tem de se exprimir no âmbito da justiça. Se falarmos como discípulos, podemos ajudar muitos dos nossos irmãos a não alimentarem sentimentos de violência e de vingança. * Seguir Cristo como discípulos é aprender a perdoar. Suspenso da Sua Cruz, quando está consumada toda a violência sobre Ele exercida, Jesus perdoa aos que O maltrataram injustamente: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazemâ€. O ensinamento de Jesus sobre o perdão é dos aspectos mais exigentes de quanto comunica aos seus discípulos; é mesmo mais exigente do que o desprendimento dos bens e riquezas materiais. Diz-lhes claramente: se não perdoais aos vossos inimigos, o que é que vos distingue dos pagãos? A Pedro, a quem esse ensinamento parecia incomodar, Jesus diz que não basta perdoar algumas vezes. É preciso perdoar sempre. E ensinou-os a rezar: Pai, perdoai-nos como nós perdoamos. No actual contexto, no quadro do terrorismo, de guerras injustificadas, de represálias que sabem a vingança, esta mensagem do perdão é tremendamente exigente. Mas ele é um caminho indispensável para a paz, paz interior, paz na sociedade, paz entre os Povos e Nações. Tem de haver perdão entre as pessoas, entre os grupos, entre os Povos e Nações. * Ser discípulo de Jesus é estar disposto, sempre e em todas as circunstâncias, a lutar pela justiça. “Bem aventurados os que sofrem por amor da justiçaâ€. E já vimos que o dom generoso de si mesmo e a grandeza do perdão, fazem parte da justiça que Jesus ensina. São atitudes que trazem à justiça a beleza da generosidade e o fermento da bondade, indispensáveis para que seja uma justiça humana, promotora e respeitadora da dignidade do homem. Muitos se interrogam se os sofrimentos presentes da comunidade humana, não são fruto de injustiças praticadas, entre as pessoas e entre os povos. Se assim é, a solução radical não pode passar, apenas, pela vigilância e prevenção de novos actos de violência, aliás justas e necessárias. São precisas políticas lúcidas e corajosas, que sanem essas injustiças e contribuam para a fraternidade entre os Povos. 3. Que esta Páscoa seja a Páscoa da serenidade e da confiança. E se o Espírito de Deus nos deu a graça de falarmos como discípulos, não hesitemos em levar a confiança a quantos o medo perturba e a insegurança tira a serenidade e a paz. Sé Patriarcal, 4 de Abril de 2004 D. José Policarpo, Cardeal-Patriarca


Diocese de Lisboa