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Homilia do Domingo de Páscoa do Patriarca de Lisboa

D. José Policarpo
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Vencer as ficiduldades da fé

“Vencer as dificuldades da fé” Homilia no Pontifical da Ressurreição do Senhor Sé Patriarcal, 8 de Abril de 2007 1. O discurso de Pedro, resumido nos Actos dos Apóstolos e que lemos como primeira leitura, é um testemunho pessoal de quem acredita na ressurreição de Jesus, onde reconhece a plenitude da missão messiânica de Cristo, pois Ele “foi constituído, por Deus, juiz dos vivos e dos mortos” (Act. 10,42), como tinha sido anunciado pelos profetas. Esta etapa definitiva da fé de Pedro permite-lhe afirmar com convicção: “quem acredita n’Ele recebe, por Seu nome, a remissão dos pecados” (Act. 10,43). Digo etapa definitiva da fé de Pedro, porque acreditar na ressurreição não estava contido na fé com que os discípulos acreditaram em Jesus e na sinceridade com que O seguiram. Certamente houve muitos que seguiram Jesus na sua vida pública e depois não acreditaram na ressurreição. Os próprios Apóstolos e discípulos mais próximos sentiram essa dificuldade. São João, no seu Evangelho, ao confessar que, ele próprio, quando entrou no Sepulcro, “viu e acreditou”, dá a entender que ele e Pedro, num primeiro momento, não acreditaram. Maria Madalena, a grande amiga de Jesus, perante o sepulcro vazio, a sua primeira reacção é pensar que roubaram o corpo. Outros textos mostram-nos as dificuldades do Apóstolo Tomé e dos dois discípulos, a caminho de Emaús, em acreditarem na ressurreição. Apesar de Jesus a ter anunciado, de terem assistido a milagres de Jesus em que Ele ressuscitava mortos, a ressurreição de Jesus foi uma surpresa inaudita de Deus, a exigir uma fé gratuita e desprendida de apoios racionais, só possível com a força de Deus. O aspecto fundamental e decisivo da fé da Igreja enfrentou, no seu início, a dificuldade de acreditar. E descortinamos nos textos sagrados as forças que levaram os discípulos a acreditar, vencendo as dificuldades da fé. Antes de mais o confrontarem-se com factos: o sepulcro vazio, as aparições do Ressuscitado, perante os quais a primeira tentação é a de encontrar, para esses factos, outras explicações: roubaram o corpo do Senhor, é um fantasma. Os encontros em que reconhecem Jesus como ressuscitado são decisivos para a fé. Saía d’Ele uma força, uma luz que os tocava no seu intimo. É essa força que brota de Cristo ressuscitado que os faz acreditar. A fé pascal da Igreja é o primeiro fruto da ressurreição, antecipação da força do Espírito que lhes será dado. Ajudou-os, também, a releitura das Escrituras numa perspectiva nova. 2. Ainda hoje a fé na ressurreição de Cristo é tão crucial como exigente. Continua a supor que se vençam as dificuldades de acreditar. Só Deus conhece verdadeiramente o número daqueles que acreditam na ressurreição de Jesus. Para além do grande número de não cristãos e de descrentes, que não acreditam na ressurreição porque não acreditam em Cristo, há certamente, entre os cristãos alguns que não acreditam na ressurreição ou cuja fé é, frequentemente, sujeita à prova da dúvida. A ressurreição de Cristo não é só mais uma verdade de fé: é a convicção central, a experiência crucial, donde brotam outras convicções de fé: a nossa própria ressurreição, a divindade de Cristo, a Eucaristia como acto presente de Cristo vivo na Sua Igreja, o dom do Espírito Santo. Não acreditar na ressurreição de Cristo é fazer ruir pela base todo o edifício da existência cristã. São Paulo já o afirmava aos cristãos de Corinto, preocupado com o facto de alguns deles, apesar da sua pregação e do seu testemunho, não acreditarem na ressurreição dos mortos: “Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. Mas se Cristo não ressuscitou, então a nossa pregação é vazia, vazia é a vossa fé. (…) Se Cristo não ressuscitou, a vossa fé é vã, estais ainda nos vossos pecados” (1Co. 15,12-19). 3. Tentemos identificar as causas das actuais dificuldades em acreditar na ressurreição de Cristo, que encerra a promessa da nossa própria ressurreição. Antes de mais, a banalização da morte no seu aspecto de fim de vida. Os hábitos da nossa sociedade escondem, cada vez mais, a dramaticidade do mistério da morte. Mata-se facilmente, põe-se, imprudentemente, a própria vida em perigo, a morte tornou-se um fenómeno clínico, a própria dor da morte se dilui em cerimónias fúnebres mais marcadas pelos hábitos culturais do que pela vivência da densidade da vida. Muitos têm uma compreensão da vida, limitada à existência terrestre; outros guardam um vago sentido da vida para além da morte, mas sem referência à ressurreição, participação na vida de Cristo ressuscitado. Sobretudo perdeu-se a consciência de que a vida é um dom de Deus, participação da sua vida divina. Uma outra causa das dificuldades em acreditar na ressurreição de Cristo encontramo-la numa religiosidade sem transcendência, em que Deus aparece como um último recurso e Cristo se dilui na figura simpática do amigo dos pobres, mas que não são proposta de encontro vivo e transformador. Faltam verdadeiras testemunhas da ressurreição, daqueles que vivem assim, porque Cristo ressuscitou e cujo exemplo e palavra são interpelantes e convincentes. Há depois uma cultura ambiente, mais inclinada a conceber a vida no plano do imediato, experiência a fruir agora, sem grande apetência para a dimensão de profundidade e de radicalidade. Mas não acreditar na ressurreição de Cristo mata a fé cristã, embora possa permitir a subsistência de uma religiosidade cristã. 4. É missão de toda a Igreja ajudar os cristãos, com solicitude particular pelos jovens, a vencer as dúvidas e a ultrapassar as dificuldades de acreditar. E os caminhos são fundamentalmente os mesmos que ajudaram os primeiros discípulos a passar da fé no Cristo histórico para a fé pascal. Antes de mais, os factos que anunciavam a ressurreição. Hoje, eles encontram-se, sobretudo, nos frutos da acção do Espírito Santo na Igreja: a radicalidade dos mártires e dos santos, a coragem dos que mudam completamente a vida por causa de Cristo ressuscitado, a alegria luminosa dos que se lhe abandonam no amor. Como para os primeiros discípulos tem uma importância decisiva o encontro com Jesus ressuscitado. Mas ele é possível a todos, na vida da Igreja, sobretudo na vivência pessoal da Eucaristia. Como na aparição aos discípulos de Emaús, Ele continua a fazer-se reconhecer na fracção do Pão. E continua a ser hoje verdade que a fé pascal é o primeiro fruto da ressurreição, através do dom do Espírito Santo. É igualmente importante o testemunho convincente daqueles que acreditam, o testemunho das pessoas mas, especialmente, o testemunho da Igreja. Esta, Povo do Senhor, será sempre a principal testemunha da ressurreição de Cristo. É a fé da Igreja que fortifica a nossa fé. É esse testemunho que a Igreja dá ao celebrar a Páscoa. É esse testemunho que queremos dar aos nossos irmãos, homens e mulheres, a viverem agora a aventura da vida. Cristo que morreu por nós, Deus ressuscitou-O dos mortos e encerra nesse mistério o segredo do homem e da história. † JOSÉ, Cardeal-Patriarca


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