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Homilia do Patriarca de Lisboa na Missa da Ceia do Senhor

D. José Policarpo
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D. José Policarpo esclarece sobre as condições para poder comungar

"O Mistério três vezes santo" 1. Esta solene liturgia da Ceia do Senhor, com que iniciamos o Tríduo Pascal, reveste-se de uma particular densidade, que lhe vem, em primeiro lugar, do facto de ser a “memória†da Ceia Pascal. A Ceia Pascal significou a plenitude da encarnação do Verbo eterno de Deus, num acto de entrega ao Pai, que tem a pureza do amor intra-trinitário entre as Pessoas divinas, expresso agora na radicalidade humana da entrega da própria vida. Naquela Ceia Pascal, Jesus Cristo, Filho de Deus feito Homem, deu a um gesto humano, a profundidade e a santidade do amor entre as Pessoas divinas. A oferta sacrificial de Cristo e o sacramento que a perpetua, estão revestidos da santidade do amor divino. A Eucaristia é, realmente, o “Santíssimo Sacramentoâ€. A santidade da Eucaristia exprime-se, antes de mais, no facto de ela ser o sacramento do amor, e o amor-caridade é o que de mais santo há em Deus, porque o Deus Santo é o Deus que é amor. São João introduz assim a narração da Ceia: “Jesus sabendo que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai, Ele, que amara os Seus que estavam no mundo, amou-os até ao fimâ€, o que quer dizer que, “na Eucaristia Jesus demonstra-nos um amor levado até ao extremo, um amor sem medida†. Na Eucaristia, como sacramento da Páscoa, Jesus continua a amar-nos assim, envolvendo-nos no mistério trinitário do Deus amor; aí exprime-se para nós homens o mistério eterno do amor das Pessoas divinas, pelos caminhos da encarnação. Expressão total do amor do Filho, pelo Pai, a Eucaristia é também o sacramento da efusão do Espírito Santo sobre a Igreja que celebra. João Paulo II afirma na Encíclica “Ecclesia de Eucharistiaâ€: “Através da comunhão do seu Corpo e Sangue, Cristo comunica-nos também o seu Espíritoâ€. E cita S. Efrém: “chamou o pão seu Corpo vivo, encheu-o de Si próprio e do seu Espírito. E aquele que o come com fé, come Fogo e Espírito. Tomai e comei-o todos; e, com ele, comei o Espírito Santo. De facto, é verdadeiramente o Meu Corpo, e quem o come viverá eternamente†. A Eucaristia introduz a Igreja na comunhão de amor própria das Pessoas divinas. Ela é a expressão máxima da comunhão, a “Epifania da comunhãoâ€, chama-lhe João Paulo II . Na Eucaristia, a Igreja experimenta, antecipadamente, a comunhão perfeita e definitiva, na glória. Ouçamos ainda o Santo Padre: “A aclamação do povo depois da consagração termina com as palavras «Vinde, Senhor Jesus», justamente exprimindo a tensão escatológica que caracteriza a celebração eucarística (cf. 1Cor. 11,26). A Eucaristia é tensão para a meta, antegozo da alegria plena prometida por Cristo (cf. Jo. 15,11); de certa forma, é antecipação do Paraíso, «penhor da futura glória». A Eucaristia é celebrada na ardente expectativa de Alguém, ou seja, «enquanto esperamos a vinda gloriosa de Jesus Cristo nosso SalvadorȠ. Na Eucaristia resplandece a santidade do trono de Deus e a adoração é a atitude adequada e exigida à nossa participação em tão grande mistério. É por isso que logo no início da oração eucarística, a assembleia que celebra exclama: “Santo, Santo, Santo, Senhor Deus do Universo. O Céu e a Terra proclamam a Vossa glória. Hossana nas alturasâ€, juntando a sua voz, num uníssono de louvor, à voz dos anjos e dos bem-aventurados. Porque na Eucaristia resplandece a santidade do Deus Altíssimo, o louvor da Igreja tem de estar em uníssono com o louvor dos Santos, no Céu. 2. Que nós, os mortais, ainda na nossa situação de pecadores, possamos ter acesso a esta santidade do trono de Deus, é dom de misericórdia. Pela santidade de que se reveste, a Eucaristia exige a pureza e a perfeição daqueles que a celebram. Na Eucaristia tudo deveria ser puro e perfeito. Já na Páscoa do Antigo Testamento, ténue símbolo da Páscoa definitiva, o cordeiro pascal, verdadeiro “sacramento†de comunhão, deveria ser perfeito: “tomareis um animal sem defeito†(Ex. 12, 5). E o rito de lavar os pés, antes da Ceia Pascal, simboliza essa exigência de pureza, condição para celebrar a Páscoa. O facto de ser Jesus a lavar os pés dos discípulos exprime a infinita caridade de que transborda o coração de Cristo naquele momento. Mas o gesto em si mesmo é um rito de purificação. Jesus leva Pedro a aceitar que quem não se deixar lavar, “não tomará parte com Eleâ€, ou seja, não poderá experimentar aquela comunhão no amor divino, que a Ceia Pascal inaugura. E logo naquela primeira vez Jesus verifica com tristeza: “Vós estais limpos, mas não todos†(Jo.13, 10), lamento que o Senhor, ao longo dos séculos, exprimiu tantas vezes em tantas celebrações da Eucaristia. 3. Porque todos somos pecadores, a santidade da Eucaristia continua a exigir àqueles que se preparam para a celebrar, o rito da purificação, que já não se exprime na lavagem dos pés, mas na graça do sacramento do perdão. Entre o sacramento da reconciliação e a Eucaristia há uma convergência necessária, como escreve o Santo Padre: “A Eucaristia e a Penitência são dois sacramentos intimamente unidos. Se a Eucaristia torna presente o sacrifício redentor da Cruz, perpetuando-o sacramentalmente, isso significa que dele deriva uma contínua exigência de conversão, de resposta pessoal à exortação que São Paulo dirigia aos cristãos de Corinto: «Suplicamo-vos em nome de Cristo: reconciliai-vos com Deus» (2Cor. 5,20). Se, para além disso, o cristão tem na consciência o peso dum pecado grave, então o itinerário da penitência através do sacramento da reconciliação torna-se caminho obrigatório para se abeirar e participar plenamente do sacrifício eucarístico†. O facto de a graça sacramental do perdão nos tornar dignos de participar na Eucaristia, revela-nos a profundidade desse mesmo perdão. É muito mais que um acto de compreensão de Deus a nosso respeito, como se nos dissesse: porque reconheceste o teu pecado, apesar de seres pecador, eu permito que te aproximes do trono santo de Deus. O perdão significa “recriação†do coração, a quem o Senhor restitui a pureza exigida pela santidade de Deus. O Deus Santo nunca poderia exprimir a sua bondade permitindo que corações marcados pelo pecado se abeirassem, sequer, do seu trono santo. Esta exigência de conversão e de purificação do coração para poder participar, plenamente, na comunhão eucarística, é a mais séria interpelação posta à consciência dos cristãos. A avaliação dessa pureza interior, que vulgarmente se designa por “estado de graçaâ€, porque só pode ser fruto da acção do Espírito Santo, fá-la cada um na intimidade da sua consciência. Isso supõe, não apenas a noção da santidade da Eucaristia, mas a formação da própria consciência na sua capacidade de discernir o que é o pecado, ou seja, quais as atitudes livremente assumidas que interrompem a comunhão de amor com Deus, e que deixam marcas negativas no coração, que só a acção de Deus pode recriar. Nesta formação da consciência, conduzida pela confiança no amor de Deus, há extremos a evitar: a atitude facilitante, em que se relativiza a gravidade do pecado, e a atitude escrupulosa, que leva a pessoa a não se aproximar da Eucaristia, mesmo quando nada de grave cortou, na sua vida, a comunhão de confiança com Deus. De qualquer modo é a consciência pessoal o juiz das exigências da santidade da Eucaristia. Como ensina o Catecismo da Igreja Católica, “aquele que tiver consciência de um pecado grave, deve receber o sacramento da reconciliação antes de se aproximar da comunhão†. Aliás o sacramento da reconciliação é elemento importante na formação progressiva da própria consciência. Na sua prática pastoral e litúrgica a Igreja sempre respeitou este santuário da consciência. 4. Mas pode haver casos em que, devido à matéria, a situação de pecado é pública, tornando-se então o acesso à Eucaristia numa profanação pública da santidade desse sacramento. Nesse caso compete à Igreja defender, também publicamente, a santidade da Eucaristia, não admitindo à comunhão eucarística aqueles que se mantêm publicamente numa situação moral, claramente definida nas normas morais, incompatível com a santidade deste sacramento. Esta é uma situação delicada, a ser posta em prática com grande caridade pastoral, pois não pode ser arma de arremesso contra ninguém ou argumento para teses pastorais, mas motivada pela solicitude pastoral pelas pessoas visadas, que precisam de ser esclarecidas e interpeladas, e também pelo respeito por toda a comunidade eucarística, que procura fielmente celebrar dignamente a Ceia do Senhor. O cultivar, na consciência dos fiéis, o respeito pela exigência da santidade da Eucaristia, deve ser feito na confiança, não suscitando qualquer forma de medo de se aproximar deste “santíssimo sacramentoâ€, o que no passado aconteceu, com fortes correntes místicas a inculcarem o “medo†e a contribuírem para que a comunhão eucarística deixasse de ser alimento normal e simples para o nosso crescimento em santidade. Mas evitemos, igualmente, atitudes de compreensão facilitante, sujeitando a Eucaristia à vida das pessoas, e não a vida às exigências do carácter santíssimo deste sacramento. A Eucaristia desafia e transcende mesmo aqueles que a administram pastoralmente. Na Liturgia desta tarde, ressalta, em silêncio recolhido, esta proximidade do Senhor que se nos dá, e esta santidade de todos os gestos de Deus. Sé Patriarcal, 24 de Março de 2005


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