A um pintor, as três leituras bíblicas da liturgia de hoje poderiam inspirar um quadro tríptico: no painel da esquerda pintaria a criação do homem primordial, protótipo de toda a humanidade; no da direita gravaria a salvação do ser humano pela graça de Jesus, filho de Maria Imaculada; ao centro estamparia os humanos que hoje são beneficiários dessa graça salvífica. Aproximemo-nos dos pormenores de cada painel.
No da esquerda, na leitura do livro do Génesis, emergem os dois protótipos primordiais da humanidade: o ’Adam (em hebraico, homem) e a mulher Hewah, Dadora de vida, “mãe de todos os vivos”. São representativos do regime da vida humana física, cujo sentido a narração de Génesis 2-3 interpreta e exalta pela fé, com uma intuição religiosa expressa num mito de criação. Através do mito, a fé queria dizer que a forma suprema de olhar para a vida seria vê-la em Deus, como proveniente de Deus. Realmente, os mitos de criação são autênticos actos de fé: os seus autores, verdadeiros contemplativos, contemplaram Deus em todas as coisas e viram todas as realidades da existência humana à luz de Deus. Dando-lhes sentido e contando que elas foram criadas por Deus, o mito de criação sugeria que o sentido da vida é Deus! Ou seja, a perda de Deus do horizonte da vida seria a perda do sentido. Ficaria só uma vida sem alma, uma vida desalmada, um deserto insuportável. Deus é o «tudo» de cada coisa e do ser humano. Para sugerir essa sua ideia, o narrador pôs Deus a dar origem ao homem e à mulher, célula fundamental da sociedade humana. E para sublimar a existência de toda a humanidade, ao fim da atribuição das penas a este casal primordial, o narrador pôs o homem a dar à sua mulher o título honorífico e simbólico de Hewah (Dadora de vida), justificando-o com dizer que “ela foi a mãe de todos os vivos” (Gn 3,20). Com este jogo de palavras, a visão religiosa através do mito contemplava toda a humanidade como descendente dessa Mãe prototípica. S. Paulo, relendo este texto do Génesis para fazer a sua nova teologia, dirá que nesse regime de vida física, representado pelas figuras do Homem e da Mulher prototípicos, todos pecavam e morriam: “todos pecaram e estão privados da glória de Deus” (Rm 3,23; 5,12). Segundo Paulo, toda a humanidade até Jesus teve um passado de pecado e de morte (Rm 1,18-3,20). Morrendo espiritualmente, os humanos eram radicalmente incapazes de se salvarem por próprio esforço e pela prática das boas obras estabelecida pela ‘Lei’. A ‘Lei’ dava aos humanos o conhecimento da vontade de Deus, mas não a força interior para a cumprirem. Para se salvarem, tinham necessidade radical do auxílio da graça de Deus (Rm 3,20; 7,7.13; Gl 3,19-22). Este painel é ilustrativo da universalidade do pecado: “reinava o pecado dando a morte” (Rm 5,21).
Mas eis que o painel da direita (Lucas 1,26-38) vem colmatar essa incapacidade humana. O próprio Deus, sem deixar de ser Deus, torna-se humano na pessoa de Jesus, o qual, enquanto homem e Filho de Deus, disponibiliza a graça da salvação para todos os que pela fé se abrem a ela, aderindo ao seu projecto de vida nova. É o regime da vida da graça, que tem como figura central e representativa o Homem novo, Jesus, Ungido de Deus. “Onde proliferou o pecado, superabundou a graça; assim, como o pecado reinava dando a morte, assim também agora reina a graça que concede um indulto para vida eterna, por Jesus Cristo, nosso Senhor” (Rm 5,20-21). Se até Jesus “todos pecaram”, agora todos “são justificados pelo dom da graça, por virtude da redenção realizada por Jesus Cristo” (Rm 3,23-24). Este painel afirma a universalidade da salvação de Jesus Cristo. Ele, protótipo da nova humanidade ou da “nova criação”, “justifica” agora todos os humanos que o acolhem pela fé: estes “reproduzem a imagem do seu Filho, para que ele seja o primogénito entre muitos irmãos” (Rm 8,29-30). A pessoa, unida ao “Ungido” de Deus pela fé e animada do seu Espírito de ressuscitado, é salva gratuitamente e pode viver de acordo com a vontade de Deus: as boas obras são realizadas em resposta à “lei do Espírito que dá a vida em Cristo Jesus” (Rm 8,2.5-13; Gl 5,22-25)
Ora, a profusão de tanta graça passou decisivamente pelo sim dado a Deus por Maria, a mãe de Jesus. Ela está na origem de toda essa riqueza espiritual. A festa litúrgica de hoje projecta um foco de luz sobre a Conceição de Maria no seio da sua mãe, dizendo-a Imaculada. É uma profunda intuição da fé da Igreja sobre o contributo de Maria para o mistério da redenção do ser humano pela graça do Filho de Deus, filho dela. Bento XVI, antes de recitar o Angelus no dia 8 de Dezembro de 2006, declarou que o melhor suporte bíblico para essa expressão da fé “se encontra nas palavras que o anjo dirigiu à jovem de Nazaré: «alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo» (Lc 1,28)”. “Cheia de graça” – continuou o Papa – “é o nome mais belo de Maria, nome que lhe deu o próprio Deus, para indicar que ela é desde sempre e para sempre a amada, a eleita, a predilecta para acolher o dom mais precioso, Jesus, «o amor incarnado de Deus»”. Esse fundamento bíblico do dogma pode continuar a ver-se na Palavra de Deus, representada na figura do anjo que anuncia a Maria a concepção virginal de Jesus: “achaste graça diante de Deus; conceberás e darás à luz um filho a quem porás o nome de Jesus...; o Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; por isso, o que vai nascer será santo e será chamado Filho de Deus” (Lc 1,28-35.42). O dogma poderia fundar-se ainda na resposta de Maria na visita a Isabel: “a minha alma proclama grande o Senhor e o meu espírito alegra-se em Deus, meu salvador…; por isso, desde agora me felicitarão todas as gerações, porque o Todo-poderoso fez em mim maravilhas” (Lc 1,46-49). Com este apoio bíblico, o dogma significa que Maria, por ter sido entre todas as mulheres a única privilegiada a ser escolhida para mãe do Filho de Deus, teve de estar em perfeita comunhão com Ele desde a sua concepção: teve de ser imaculada e toda pura entre todos os humanos. Significa a distinção de Maria por cima de todos, sublimada como “bendita entre as mulheres”, por “Deus ter posto os olhos na humildade da sua serva”. O dogma é a distinta “felicitação” de Maria por parte de todas as gerações da Igreja, pelas “maravilhas” realizadas por Deus graças a ela.
O primeiro painel pinta o Homem primordial, protótipo da humanidade anterior a Jesus; o segundo pinta o Homem novo, Jesus Cristo, filho de Maria Imaculada. O primeiro painel aponta para a vida de pecado que todos cometeram; o segundo, para a vida da graça, a todos acessível. A fé que vê “a Mãe de todos os vivos” como origem da vida humana física também vê em Maria a origem da vida da graça e a Mãe de todos os redimidos. A “Dadora de vida” é a Mulher primordial, imaginada para sublimar a existência humana à luz de Deus; Maria é a imagem sublime da Mulher nova que deu à humanidade o seu Salvador.
Finalmente, no painel central do tríptico de leituras estamos nós, os beneficiários de tanta graça, os salvos. Dirigindo-se aos Efésios (1,3-12), Paulo diz-nos que “antes da fundação do mundo Deus nos escolheu para sermos santos e imaculados diante d’Ele, no amor; elegeu-nos de antemão para sermos seus filhos adoptivos por meio de Jesus Cristo”. Ou seja, para a fé bíblica nascemos criaturas de Deus criador, “à imagem e semelhança” d’Ele (Gn 1); pelo baptismo tornamo-nos filhos de Deus Pai, «filhos no Filho», ao participar da graça do Seu Filho pelo Espírito de ambos. Esse é o valor acrescentado pelo baptismo ao nascido que a fé vê entrar para a existência em estado de relação com Deus, já que o diz criado por Ele. É um renascimento para Jesus (Jo 3,5), uma orientação decisiva da própria vida para o salvador.
Todo este caudal de graça está ao nosso dispor, para dar unção, excelência e máxima dignidade à nossa existência. Não serve de escusa dizer que nascemos num mundo de mal e com tendência radical para o mal moral. O ser humano não é mau fatalmente. Tem tendência para o mal, como a tem para o bem, e exerce-a com a sua liberdade, necessariamente limitada, como limitado é tudo o que o constitui. Para que a tendência para o bem prevaleça sobre a tendência para o mal, é preciso cultivar acuradamente o jardim da alma: numa boa família, com boas companhias, bons amigos, boas leituras (também de textos bíblicos), bons filmes e boa oração. As boas influências geram boas tendências. Sem isto, em vez de plantas com saborosos frutos, nascem naturalmente no jardim do espírito espinhos e abrolhos.
Realmente, o mal moral não é natureza nem fatalidade: é obra humana; e propaga-se segundo a sua própria lógica, como também o bem. Onde há liberdade, há possibilidade de fazer o mal. A pessimista explicação tradicional da origem do mal argumenta que o ser humano, ao nascer, entra num mundo já marcado pelos malefícios que irão abater-se sobre ele, concluindo que o mal nos precede sempre. Mas, para ser objectiva, essa explicação poderia acrescentar com optimismo que igualmente nos precede o bem, ao nascermos num mundo onde se faz tanto bem, por amor gratuito. Se a gente foi habituada pelos meios de comunicação social diários a fixar-se prevalecentemente no mal, não pode esquecer que simultaneamente milhões de pessoas cumprem sacrificadas o próprio dever (o que não é propalado pelos publicistas). Se quiserem dizer que o mal é em larga medida ‘transmitido’, também o é o bem, podendo cada um quebrar a cadeia de transmissão do outro. Se o mal moral é contagioso, também o é o bem.
De facto, por trás do vertiginoso e assustador elenco de males morais, tomados um a um, poderá encontrar-se uma causa bem humana que explica, por partes, a monstruosidade que resulta interactivamente do enleado de uns com os outros; por trás deles está a manipulação de muita gente como elementos de complicados mecanismos, nos quais é enredada e de cujas malhas dificilmente escapa a longo prazo. Há estruturas de maleficência que passam quase imperceptivelmente por práticas habituais e instituídas, por legislações sociais, por poderes estabelecidos e legitimados popularmente, por ódios arraigados e obstinadamente esclerosados ao longo de séculos no coração de certas comunidades e por opções políticas perversas, feitas por outras comunidades, por grupos de exterminação, numa rede de acção perniciosa. Estes males colectivos estruturais, mais do que as más acções individuais, têm tendência a perdurar na sociedade global, pelo lastro e pelo rasto que deixam. São males destruidores, que não se propagam de maneira mágica mas avançam precisamente devido a decisões humanas e a factos identificáveis, embora às vezes dificilmente reconhecíveis.
O Papa João Paulo II confirma-o: “Os pecados dos indivíduos consolidam aquelas formas de pecado social que são precisamente fruto da acumulação de muitas culpas pessoais. As verdadeiras responsabilidades continuam a ser obviamente das pessoas, dado que a estrutura social enquanto tal não é sujeito de actos morais. Como recorda a Exortação apostólica pós-sinodal Reconciliatio et paenitentia, «a Igreja, quando fala de situações de pecado ou denuncia como pecados sociais certas situações ou certos comportamentos colectivos de grupos sociais mais ou menos vastos, ou até mesmo de nações inteiras e blocos de nações, sabe e proclama que tais casos de pecado social são o fruto, a acumulação e a concentração de muitos pecados pessoais... As verdadeiras responsabilidades, portanto, são das pessoas» (n. 16)” (Alocução da audiência geral de Quarta-feira, 25.8.1999: L’Osservatore Romano 30, n. 35 [28.8.1999] 8 [432]).
Para o bem e para o mal, somos seres de relação. A que cultivarmos e desenvolvermos, com maior ou menor abertura à graça do Espírito, ajuda a realizar na vida o projecto de Deus para nós. Maria, concebida Imaculada, a Mulher livre que sempre optou pelo bem, é forte apelo à nossa liberdade fortalecida pela graça de Jesus, para responsavelmente optar, em cada situação, pelo bem em vez de pelo mal. A Igreja, ao contemplar hoje a ‘Toda bela e pura’, sente a espontânea atracção para tanta pureza e é estimulada a aproximar-se o mais possível dela, como afirma o Concílio Vaticano II: “enquanto a Igreja alcançou na santíssima Virgem a perfeição, em virtude da qual não tem mancha nem ruga (Ef 5,27), os fiéis lutam ainda por crescer em santidade, vencendo inteiramente o pecado; por isso, levantam os olhos para Maria, que resplandece como modelo de virtudes para toda a comunidade dos eleitos” (Lumen Gentium, 65).
P. Armindo dos Santos Vaz