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Ir ao coração da fé

D. António Marto
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Homilia de D. António Marto, na eucaristia da tomada de posse como bispo de Viseu

“Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo” (Mt 16,6) “Cristo é tudo para nós” (St. Ambrósio) Salvé, povo santo e amado de Deus, que constituis a querida Igreja Diocesana de Viseu! Eu te saúdo, servindo-me das palavras com que S. Paulo saudava os fiéis da Igreja de Corinto: “À Igreja de Deus que está em Viseu, à venerável Igreja viseense, àqueles que foram santificados em Cristo Jesus, chamados a ser santos com todos os que em qualquer lugar invocam o nome de N. S. Jesus Cristo: a vós, graça e paz da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo. Dou continuamente graças ao meu Deus por vós, pela graça divina que vos foi dada em Jesus Cristo, porque n’Ele fostes enriquecidos com todos os dons” (1 Cor 1,2-5). 1. - Tocarei a pedra e rezarei… Chegou o dia em que o desejo de ver os vossos rostos, desde a data da minha nomeação, finalmente se realiza. Chegou o dia em que o novo bispo entra nesta Catedral de Santa Maria para tomar posse da sua cátedra de bispo de Viseu. Juntamente convosco, que para aqui convergistes de todos os ângulos da Diocese, sinto-me peregrino, tal como o salmista que converge com o povo para o templo de Jerusalém. À entrada da vetusta catedral aflorou-me à memória um sugestivo poema de Sofia de Mello Breyner: “A São Tiago não irei como turista. Irei – se puder – como peregrino. Tocarei a pedra e rezarei Os padre-nossos da conta como um campesino!” Tocarei a pedra e rezarei… Por isso, quis fazer meu um gesto típico de João Paulo II: ajoelhei-me neste lugar e beijei as pedras do limiar deste templo que, desde há séculos, é “morada de Deus com os homens” (Apoc 21, 3): Deus – Salvador com o povo de Viseu. E com todos vós rezo as palavras do Salmo 122, com a forte emoção e alegria do peregrino que chega à meta: “Que alegria quando me disseram: iremos para a casa do Senhor. E agora os nossos pés se detêm às tuas portas, Jerusalém… Para lá sobem as tribos do Senhor, para louvar o nome do Senhor. Pelos meus irmãos e amigos pedirei “a paz esteja contigo”. Pela casa do Senhor, nosso Deus, pedirei todo o bem para ti”. Para ti, Diocese de Viseu, invoco todas as bênçãos de Paz e de Bem! Tocarei a pedra e rezarei… Este gesto convida-nos a fazer memória da história da nossa Igreja, da fé que nos foi transmitida ao longo dos séculos. Convida-nos a unirmo-nos às gerações de fiéis viseenses, aos santos da nossa Igreja, particularmente S. Teotónio, seu padroeiro, como também às gerações de bispos de Viseu desde o séc. VI até hoje. Uno-me a todas estas gerações como novo bispo de Viseu. Detenho os meus passos no limiar deste templo e peço-vos que me acolhais no nome do Senhor. Acolhei-me tal como acolhestes, ao longo dos séculos, os meus predecessores, o último dos quais foi o nosso tão amado senhor D. António Monteiro. Dele quero fazer aqui memória viva e grata pela sua dedicação, pelo seu serviço incansável, pelo seu testemunho evangélico até ao fim. E desde já vos agradeço o caloroso acolhimento que me reservastes e, estou certo, me continuareis a dar. 2. - Uma saudação para todos. Ao mesmo tempo exprimo a minha saudação cordial a todos. Antes de mais, na pessoa do Sr. Núncio Apostólico, saúdo o Santo Padre a quem testemunho o afecto e a plena comunhão na fé católica e no ministério apostólico. Saúdo, fraternalmente, Sua Eminência o senhor Cardeal Patriarca, Presidente da Conferência Episcopal, e os demais irmãos no episcopado que quiseram participar nesta celebração; o Rev.mo Mons. Vigário Geral - a quem agradeço a calorosa saudação -, o Il.mo Cabido e os estimados sacerdotes desta minha diocese; os caros seminaristas, os membros dos Institutos seculares e das Ordens Religiosas, a Universidade Católica, os Movimentos Laicais e os mui dignos representantes das outras Confissões Cristãs. Saúdo com deferência as Ex.mas Autoridades civis, militares, académicas e administrativas que, com tanta cortesia, responderam ao convite feito e aqui representam todos os cidadãos do território da Diocese. Reitero-lhes o voto de uma leal e generosa colaboração. Saúdo ainda os meus familiares e tantas pessoas aqui presentes, que encontrei ao longo do caminho do meu ministério presbiteral e episcopal, com uma recordação explícita para as Dioceses de Braga, Vila Real e Porto e para o Centro da Universidade Católica no Porto, de cujo corpo docente fiz parte. Enfim, saúdo-vos a todos e a cada um em particular. Mesmo se não pronuncio os vossos nomes um a um, é minha intenção saudar cada um de vós, chamando-o pelo nome. 3. - Ir ao coração da fé: contemplar a Beleza do rosto de Cristo. Venho até vós como o último dos pastores que, através dos séculos, presidiram e orientaram esta Igreja particular. Hoje, nesta catedral, é-me dado contemplar e admirar esta entusiasmante Igreja de Viseu, este povo maravilhoso que veio ao meu encontro de coração aberto. É uma Igreja viva, rica de fé, herdeira de um património espiritual, enraizada numa tradição religiosa secular. É para mim uma graça e motivo de são orgulho estar inserido nesta árvore frondosa e poder participar da sua linfa vital. Esta riqueza e vitalidade de fé é, certamente, um dom pelo qual nunca estaremos suficientemente gratos aos que nos precederam. Mas é também uma tarefa, um património posto nas nossas mãos, para ser zelosamente guardado e continuamente renovado. Estamos a assistir ao “fim de um mundo”, isto é, a uma viragem epocal, marcada por mutações culturais profundas que levam a viver a fé num contexto novo e, nalguns aspectos, inédito, como sejam: o pluralismo social, cultural e religioso, a confusão de valores, a cultura do vazio e do efémero, a indiferença religiosa, a perda da memória cristã, o analfabetismo religioso. Tudo isto tem provocado a erosão interna da fé de muitos cristãos, reduzindo- a a uma religiosidade vaga e superficial, a uma realidade repetitiva, sem encanto nem beleza, sem frescura, sem alegria, sem entusiasmo. O pior que pôde acontecer ao cristianismo foi ter-se perdido a dimensão mística da fé, reduzindo-a a um moralismo, a uma lista de deveres, obrigações e proibições ou a um mero humanismo simpático. Ora, quando se resume a fé a coisas ou a um fardo não se lhe encontra beleza nem se lhe descobre encanto. Esta situação nova torna-se para nós um desafio, um convite a ir ao coração da fé, contemplando a beleza do rosto de Cristo. Neste contexto ressoa, aqui e agora, em toda a sua novidade, profundidade e beleza, a primeira confissão de fé do apóstolo Pedro, referida no evangelho de hoje: “Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo”. O seu conteúdo abre aos nossos olhos e ao nosso coração o mistério do Deus vivo que o Filho conhece e tornou próximo de nós. Ninguém o revelou como só Ele o faz enquanto o Filho feito homem: “Deus amou de tal modo o mundo que lhe entregou o Seu Filho único, para que todo o que crer n’ Ele tenha a vida eterna”(Jo.3,14). Estas são as palavras mais belas, mais comoventes e mais importantes para a vida dos homens e do mundo que jamais alguém pronunciou como Ele. Jesus Cristo excede tudo quanto a humanidade pode esperar! Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo! Nestas palavras está a Beleza do rosto de Cristo: a Beleza do amor eterno e santo de Deus que se fez carne humana, que tomou rosto humano no rosto de Jesus, coração humano no coração de Jesus, voz humana na palavra de Jesus para contagiar os nossos corações e os nossos dias. Esta é a Beleza do amor que salva e embeleza a vida e o mundo dos homens. Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo! Nestas palavras está a fé da Igreja, o coração da fé cristã, que é um encontro sempre novo com Cristo. N’ Ele, Deus vem ao nosso encontro e nós encontramos Deus que fala connosco, se aproxima de nós, se torna nosso amigo, se faz nosso contemporâneo para construir connosco uma história de salvação e não de perdição. Se não se realiza este encontro, se este acontecimento de graça não toca o coração do homem e o atrai e salva, tudo o resto é um peso, um fardo, um absurdo. Não se conhece verdadeiramente a Jesus, se não se reconhece Jesus como o Salvador. Não é uma fórmula ou uma doutrina que nos salva, mas a Pessoa viva de Cristo. Sem Jesus Cristo, o cristianismo torna-se uma ideologia, uma gnose. Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo! Nestas palavras está, enfim, a verdade mais profunda sobre a infinita dignidade de cada homem: filho de Deus vivo e, por isso, irmão de todos em Cristo irmão. Despertar a fé viva em Cristo vivo e torná-lo inesquecível é a missão primeira e mais sagrada dum bispo. Esta é a paixão que o vosso bispo traz no coração. Esta é a razão do lema do seu ministério: “servidores da vossa alegria” - a alegria do Evangelho! 4 . - Confissão de fé e de amor Neste momento, ao contemplar convosco a beleza do rosto de Cristo, sinto a necessidade de proclamar, com todas as forças da alma, a minha fé n’Ele. Em meu nome e no vosso repito, uma vez mais, as palavras de Pedro: “Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo”. Com a fé desejo também confessar todo o meu amor por Jesus. Ao iniciar o meu ministério no meio de vós e para vós sinto ressoar em mim as palavras de Cristo ressuscitado a Pedro: “Tu amas-me? Amas-me mais do que estes?” (Jo.21,15-17). Que o Senhor me dê o coração penitente, sincero e generoso do Apóstolo, para poder fazer minha a sua confissão: “Senhor, Tu sabes tudo; sabes que Te quero bem”. E creio que, neste momento, as mesmas palavras de Jesus são dirigidas a todos nós seus discípulos e amigos. Porque esta é a questão fundamental que Jesus me coloca a mim, bispo, como também a cada presbítero, a cada pessoa consagrada, a cada homem e mulher, de qualquer idade ou condição: “Sabes amar? Amas-me? És verdadeiramente meu amigo?” Não há fé sem amor. E, no final, seremos julgados pelo amor, como diz S. João da Cruz. 5. - Igreja, comunidade da Beleza que salva Na contemplação da Beleza do rosto de Cristo, a Igreja contempla o seu tesouro e a sua alegria. Toma consciência do que ela é e da sua missão: a comunidade da Beleza que salva. E sente-se chamada a reflecti-la no mundo, tal como a lua reflecte a luz do sol. Trata-se da beleza da vida com Cristo e em Cristo, beleza da graça divina transfiguradora do humano, que se traduz em cultura de santidade de vida: uma verdadeira santidade popular, oferecida a todos, possível e acessível a todo o povo, para todas as idades e para todos os estados e condições de vida; uma santidade que impregna e plasma a vida quotidiana e as suas relações, que transforma o mundo, a história e a cultura, que preserva a humanidade da auto-destruição e das guerras e prepara caminhos de justiça, de reconciliação e de paz. Não são as análises pessimistas que melhoram o mundo. Nem basta um apelo genérico aos valores, à legalidade e à educação para a cidadania para fazer com que as coisas corram melhor. É preciso uma visão (pro)positiva e uma vida rica de qualidade espiritual para enfrentar com energia e coragem os problemas do quotidiano e as inquietações da humanidade no início deste novo milénio. Não há qualidade de vida sem vida espiritual de qualidade. Por isso, a santidade de vida é a realidade mais necessária para a qualidade humana da sociedade, das relações entre as pessoas e os povos, para uma autêntica humanização do mundo. A espiritualidade é uma realidade profunda que move a história. O homem é aquilo que é o seu coração. E a nossa história é a projecção visível do que acontece no íntimo das consciências. A própria saúde do cristianismo (da fé e da Igreja) depende da santidade dos cristãos. E a saúde do mundo depende, em boa parte, da saúde do cristianismo. O cristianismo do séc. XXI não poderá ser um moralismo nem um pietismo; terá de ser, antes, o anúncio da graça de Cristo que nos chama a uma santidade criadora de um coração novo e de um mundo novo; e, por isso mesmo, anúncio da graça vitoriosa sobre a cultura de morte e o inferno do mal. A Igreja é chamada, hoje, na sua missão, a recomeçar a partir de Cristo, do Seu Evangelho, da pessoa humana e da sua dignidade e liberdade, tal como fizeram os primeiros cristãos. Da contemplação de Cristo Senhor e Salvador – que é tudo para nós - surgem os traços de uma Igreja que há - de reflectir a beleza do Seu rosto: - uma Igreja que vive sob o primado da Graça e da santidade, que se renova e retempera constantemente nas fontes da Palavra que salva e da Eucaristia, a maravilha das maravilhas do Deus - connosco, em que o coração de Cristo se une ao nosso e o nosso ao Seu, para formar um só povo em comunhão; - uma Igreja que testemunha com entusiasmo e sem complexos de inferioridade o Evangelho de Cristo, esperança da humanidade; - uma Igreja casa e escola de comunhão, casa do encontro com Deus e com os homens, que acolhe igualmente jovens e idosos, que educa todos os seus filhos na fé e na caridade, que deseja valorizar todos os carismas e ministérios para viver e servir a alegria da comunhão; - uma Igreja humilde de coração, rica de misericórdia, unida na sua disciplina, em que só Deus tem a primazia; - uma Igreja que ama o mundo do nosso tempo com as suas belezas e potencialidades e também com as suas crises e misérias; uma Igreja que com a luz da fé, o dinamismo da esperança e o calor da caridade oferece ao mundo aquele ”suplemento de alma” que se torna fonte de nova cultura social e de cidadania responsável, de promoção da dignidade e dos direitos fundamentais da pessoa, de diálogo com a cultura e a ciência, através da presença de leigos qualificados nos vários ambientes e de instituições apropriadas, como a nossa universidade católica e outros movimentos e associações de formação laical; - uma Igreja próxima do caminho árduo e difícil das gentes de hoje, dos sofrimentos quase insuportáveis de grande parte da humanidade e desejosa de levar a todos a consolação, a alegria e a paz do Evangelho; - uma Igreja que aprende a usar a linguagem da beleza como porta de acesso ao mistério de Deus e ao mistério da interioridade do homem; promotora de uma nova civilização da Beleza e do Amor. Esta é a perspectiva em que se deve colocar o nosso caminho pastoral como nos recorda o Santo Padre ao olhar o novo milénio (cf. NMI 30). Nesta linha, uma primeira tarefa que nos deve empenhar a todos é renovar e aperfeiçoar a vitalidade da fé da nossa Igreja. Igreja de Viseu, renova a vitalidade da tua fé! Não tenhas medo! Acompanha-nos no caminho, Maria, Mãe do Amor perfeito e belo, a estrela da nova evangelização. Com Maria, contemplemos o rosto de Cristo. À sua intercessão materna confio o presente e o futuro da nossa Igreja diocesana. E termino com uma bela oração de S. Carlos Borromeu pela Igreja, a vinha do Crucificado: «Olha, Senhor, do céu a tua vinha, a santa Igreja plantada, adornada e feita crescer pelo preciosíssimo sangue do Teu Filho para que se torne uma só coisa com a Igreja do céu. Olha propício para o Teu servo, o Papa, pastor da Tua Igreja universal E concede-lhe ajudá-la com a palavra e o exemplo E chegar, com o rebanho confiado, à vida eterna. Olha todos os bispos e sacerdotes e clero Para que amem o seu rebanho como Cristo nos amou, Para que estejam prontos a oferecer a vida e dar o sangue Pelas almas confiadas à sua guarda E se considerem ministros e dispensadores dos Teus mistérios. Olha, finalmente, Através do rosto, corpo, chagas, sangue e morte de Cristo, Teu Filho unigénito, Todos os homens de todo o género, grau e condição, Porque por todos e cada um foi derramado aquele sangue, A fim de que eles não deixem de santificar o Teu nome, Difundir o Teu reino e se faça enfim a Tua vontade no céu e na terra». Amen! + António Marto, Bispo de Viseu


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